Nervos à flor da pele

FHC irritou-se com discurso que não ofendeu ninguém

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3 de junho de 2001, 0h00

Quem apenas ouviu falar, acabou acreditando que o discurso do presidente da OAB Nacional, Rubens Approbato Machado, ofendeu o presidente da República, durante a posse do ministro Marco Aurélio no comando do Supremo Tribunal Federal.

Quem se der ao trabalho de ler o discurso de Approbato pode chegar a conclusão diferente. Palavra por palavra, o pronunciamento traz constatações públicas e notórias do que já se sabe. “Foi a repetição das teses já conhecidas da OAB”, concluiu o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Paulo Costa Leite, um juiz que se tem notabilizado pelo bom senso na discussão dos temas nacionais que envolvem a Justiça no país.

Na verdade, o que parece ter dado eco à manifestação de Approbato não foi o seu conteúdo, mas o estardalhaço feito pelo presidente da República, que passou a impressão de estar com os nervos à flor da pele, por outras razões.

O fato é que a repercussão, mais da reação do governo que do discurso em si, espantou até mesmo o presidente da OAB que, no dia seguinte à solenidade ainda perdeu tempo tentando se explicar.

Vozes mais céticas, de dentro do próprio governo, têm interpretação diferente para a irritação de FHC. Não foi o discurso que o magoou, mas o fato de a manifestação ter sido aplaudida, repetida e estusiasticamente pela platéia que lotava o auditório do STF.

Leia o discurso de Rubens Approbato, na íntegra:

Minhas Senhoras, Meus Senhores:

Em seus Pensamentos, discorrendo sobre o caráter do homem, MONTESQUIEU dizia que “é preciso ter opiniões, paixões, pois só assim estamos em uníssono com todo mundo. Todo homem que tem sentimentos moderados, aduzia, não está em uníssono com ninguém”.

Permitam-me, Senhores Ministros, trilhar pelos caminhos do grande filósofo, se não com a mesma destreza do autor do Espírito das Leis, pelo menos com a intenção de deixar registrada a expressão da Ordem dos Advogados do Brasil, nesta quadra particularmente polêmica e tensa da vida político-institucional do país.

E por quê é polêmico e tenso o momento que estamos atravessando? Pela razão, Senhora Ministra, Senhores Ministros, de que estamos na iminência de abrirmos um ciclo de mudanças fundamentais para o revigoramento de nossas instituições. E também, porque forças do atraso teimam em querer segurar a dinâmica do tempo, como se isso fosse possível e, por conseguinte, perpetuar o estado das velhas práticas e de uma ordem política compromissada com o passado.

Não é de se estranhar que estejamos vivenciando, de maneira particularmente intensa na área política, o entrechoque de grupos antagônicos.

A sociedade, pela vontade de suas maiorias, pela arregimentação de suas entidades civis, pela força expressiva de figuras ilustres e de comportamento ilibado, tem sinalizado no sentido da modernização institucional e política, cujos eixos repousam numa base moral e ética. Base moral e ética que implicam:

na investigação das denúncias de corrupção que mancham a vida de setores da administração pública, de dirigentes, governantes e políticos;

na punição dos culpados;

no restabelecimento do império da lei e da ordem, freqüentemente vilipendiado pela usurpação das funções do Poder Legislativo por outro e por violações a direitos fundamentais retratadas em despótica forma de legislar;

na vontade política de combater a criminalidade, que se expande por todas as regiões;

na necessária e premente reforma política, ferramenta indispensável para a moralização de práticas e costumes, para a densidade doutrinária dos partidos, para o aperfeiçoamento da sistemática eleitoral;

no planejamento ordenado de nossas políticas e de nossa infra-estrutura social e econômica, para não sofrermos com a improvisação, pelo terror das incertezas, provocadas por ameaçadores “apagões”, enfim, pelo medo do futuro;

na eqüitativa distribuição das riquezas nacionais, única condição para que o nosso sistema democrático seja enriquecido de conteúdo social;

na recriação e multiplicação dos espaços dos cidadãos, de forma a motivá-los a inaugurar o ciclo da democracia participativa em nosso país;

no conceito de Nação em que o espaço do povo ocupe o lugar central, lugar hoje tomado pelos privilégios de grupos;

na subordinação, enfim, do modelo econômico ao projeto maior de desenvolvimento social, rejeitando-se a política argentária de se privilegiar a moeda em detrimento da dignidade humana.

Senhor Ministro CARLOS MÁRIO VELOSO:

Saiba Vossa Excelência que a sua missão à frente do Supremo Tribunal Federal, na gestão que ora se encerra, ganhou, por Justiça, o reconhecimento de todos os setores da vida brasileira. E a este reconhecimento, deve-se somar um conjunto apreciável de qualidades de que Vossa Excelência é portador, dentre as quais se podem ressaltar o espírito de moderação, a solidariedade que se faz presente em seus gestos de amizade, na acolhida franca aos pleitos que lhe são submetidos, na magnanimidade de seus atos, marca própria dos mineiros de grande têmpera. Levamos, todos nós, a certeza de que o preceito de Pascal ilumina sua existência – “o prazer dos grandes homens consiste em poder tornar os outros mais felizes”.


A OAB lhe transmite, de coração, um MUITO OBRIGADO!

Senhor Presidente Ministro MARCO AURÉLIO:

Vossa Excelência assume a presidência da mais alta Corte de Justiça do país em um momento em que grandes interrogações pairam sobre nossas cabeças. Interrogações de toda a ordem e disparadas em todas as direções. Há tantas incertezas e indagações afloram: teremos condições de superar o crescente quadro de dificuldades que ameaça romper a estabilidade cada vez mais tênue para nossas visões? Teremos condições de sustar o processo de ruptura constitucional, que desfila aos nossos olhos pela passarela aviltante das Medidas Provisórias, agora invadindo e negando os direitos fundamentais? Teremos condições de assegurar as reformas indispensáveis ao desenvolvimento da ordem política, da ordem jurídica, da ordem econômica e da ordem social? Teremos condições de garantir ao país um programa de desenvolvimento auto-sustentável, sério, comprometido com a sociedade?

Senhor Presidente:

A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, ao interpretar os sentimentos de parcela ponderável do pensamento nacional, tem as suas dúvidas, as suas interrogações, as suas angústias, mas também conserva algumas certezas.

A certeza, por exemplo, de que qualquer passo do país na trilha dos avanços institucionais passa, necessariamente, pelo fortalecimento do Poder Judiciário. E por sabermos que os momentos difíceis que a nação passa têm trazido dissabores a este Poder, queremos, neste momento, reafirmar a nossa crença, a nossa firme disposição, a nossa vontade de estar à frente das lutas que se fizerem necessárias para preservar a dignidade da mais alta Corte de Justiça do país, cuja missão, de maneira eloqüente e exuberante, foi proclamada por nosso patrono RUI BARBOSA, em seu célebre discurso sobre o Supremo Tribunal Federal:

“A garantia da ordem constitucional, do equilíbrio constitucional, da liberdade constitucional, está nesse templo da Justiça, nesse inviolável sacrário da lei, onde a consciência jurídica do país tem a sua sede suprema, o seu refúgio inacessível, a sua expressão final”.

Se, naquele famoso 19 de novembro de 1914, quando tomava posse no cargo de presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, berço da OAB, o grande tribuno e jurista verberava contra a investida reacionária da nulificação da justiça, esboçada em grandioso projeto de castração do Supremo Tribunal Federal, hoje, aqui estamos, na condição de presidente da entidade maior dos advogados, para dizer ao presidente que toma posse, que a missão da Suprema Corte, nestes momentos conturbados, é de extraordinária significação para a paz social. Como lembrava RUI, “os tribunais não usam espadas. Os tribunais não dispõem do Tesouro. Os tribunais não escolhem deputados e senadores. Os tribunais não fazem ministros, não distribuem candidaturas, não elegem e deselegem presidentes. Os tribunais não comandam milícias, exércitos ou esquadras. Mas é dos tribunais que se temem e tremem os sacerdotes da imaculabilidade republicana”.

Temem os tribunais, sim, os governos arbitrários, as ditaduras, os poderes discricionários. Se formos examinar a história do Supremo Tribunal Federal, desde a sua criação até os nossos dias, vamos nos deparar com algumas das mais belas páginas de civismo e de cidadania, como bem o demonstra a professora EMÍLIA VIOTTI DA COSTA, em seu recente livro O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. Confrontos históricos com o Executivo, sublevações e golpes de Estado, sucessivas constituições, atos institucionais vilipendiosos, suspensão de garantias constitucionais, desobediência às decisões emanadas dos Tribunais têm sido uma constante na história do STF. Mas, a dignidade desta Excelsa Corte de Justiça se manteve e se mantém, mesmo em momentos de grande tensão e contrariedade.

Algumas passagens são emblemáticas. No nascer da República, desgostoso com o desempenho do Supremo Tribunal, o presidente Floriano Peixoto nomeia um médico e dois generais para preencher suas vagas, o que mostra como essa Corte teve de suportar, não raro, com galhardia, a ira dos governantes.

A defesa das liberdades civis, o estabelecimento da jurisprudência, a recorrente reafirmação da inviolabilidade dos direitos constitucionais de reunião e livre manifestação do pensamento passaram a ser, dentre outros, os alicerces que, ao longo do tempo, transformaram o STF de poder subordinado, como na época do Império, em um poder independente. Não foram poucos os constrangimentos, não foram poucas as humilhações. No governo autoritário do Estado Novo, conforme conta a professora Emília Viotti, os ministros desta Casa passaram por situações extremamente difíceis. O ministro PRADO KELLY, em 1952, durante homenagem ao ministro Laudo de Camargo, assim descreveu a época:

“O Supremo Tribunal Federal sofria a pior condenação – de viver cerceado em um mundo de ficções remanescentes; em derredor dele, haviam ruído todas as colunas da sociedade livre. Dentro das contingências em que passou a operar, cada ministro possuía apenas o escudo de sua consciência para opor ao mando incontrastável e triunfante. Resguardar a dignidade, a fim de acudir, ao menos à dignidade alheia; manter a independência, para não se anular na submissão geral; desempenhar uma função diminuída, para que os restos dela não desaparecessem; dar um mínimo de satisfação aos que aspiravam ao máximo de amparo, de modo que não lhes faltasse tudo”.


Que bela página de civismo escrita sob o rigor das práticas autoritárias, tal como, recentemente, escreveu ao enfrentar a fúria do regime militar. E assim, açoitada tantas vezes, vergada, jamais, esta Corte cravou suas marcas nos ciclos sucessivos da cultura jurídica, institucional e política do país. São marcas profundas deixadas nos períodos da liberalização do Estado Novo, no ciclo da redemocratização e nas décadas mais recentes. Uma conclusão se faz necessária: a modelagem do nosso sistema político-institucional deve, e muito, à ação do Supremo Tribunal Federal.

Por isso mesmo, precisamos realçar a missão política desta Corte. Missão, às vezes, incompreendida e até questionada. Não tenhamos dúvida, porém, que integra a sua identidade. Ao avaliar e descrever as funções do Poder Judiciário, nos Estados Unidos, na viagem que fez, em 1831, ALEXIS DE TOCQUEVILLE, em seu famoso testemunho A Democracia na América, reconhecia: “as instituições judiciárias exercem uma grande influência sobre o destino dos anglo-americanos; têm um lugar muito importante entre as instituições políticas propriamente ditas”.

A observação se faz oportuna para entendermos a função política do Supremo Tribunal Federal, função ainda mais aceitável quando compreendemos que a democracia não se restringe a uma técnica de organização e administração do poder, completamente dissociada de fins e valores, e das condições sociais, políticas e econômicas do país. TOCQUEVILLE, ROUSSEAU e ARISTÓTELES jamais concordariam que a democracia fosse considerada apenas como sistema de observância de regras técnicas formais. A DEMOCRACIA se alimenta do espírito do tempo, dos valores éticos e morais, da dinâmica das circunstâncias, das demandas sociais, das pressões e contrapressões, enfim, da cadeia que une os elos dos sistemas sociais, econômicos e políticos. E ao colocar os seus traços nessa moldura democrática, o Supremo Tribunal Federal está, efetivamente, desempenhando um papel que transcende o escopo técnico de suas funções constitucionais. Reside aí seu papel político. O Poder Judiciário deve se impor como PODER que é, verdadeiro bastião do império da cidadania.

Senhor Ministro MARCO AURÉLIO:

Os advogados brasileiros aplaudem sua eleição para presidir a mais Alta Corte de Justiça do país, bem assim do Ministro ILMAR GALVÃO, acreano ilustre e excelso Magistrado, para o cargo de Vice-Presidente desta Augusta Corte. Posso garantir que o ânimo dos advogados está em festa. E se está em festa, é porque Vossa Excelência encarna um elevadíssimo conceito perante todos nós.

Temos a mais sincera convicção de que saberá exercer com dignidade, competência, destemor e altanaria a Presidência da mais Elevada Corte de Justiça do país. Conhecemos e admiramos a grandeza de suas atitudes, a postura independente do magistrado imanente a seus atos, a integridade de uma personalidade irreprochável, mesmo que possa parecer polêmica.

Não podemos deixar de registrar, mais uma vez, o fato de que sua posse na presidência do STF ocorre em um momento particularmente agudo de nossa história. O Brasil que se descortina está a exigir do Poder Judiciário grandes responsabilidades e uma atenção toda especial para o conjunto das complexidades e demandas em praticamente todos os campos da vida política e institucional. O espírito de independência, encarnado por Vossa Excelência, se ajusta plenamente aos desafios das novas realidades institucionais.

Também é nossa crença de que filigranas de natureza administrativa que, seguramente há de encontrar, algumas até com intenção de restringir o escopo administrativo da presidência da Corte, não serão obstáculos à eficácia da gestão, porque, há de se lembrar, o estilo é o homem. Diz a Sagrada Escritura que “nenhum homem, por maior esforço que faça, pode acrescentar um palmo à sua altura” e alterar o pequeno modelo que é o corpo humano. Esta sábia lição quer significar também que força externa alguma conseguirá alterar a grandeza de um caráter.

Ministro MARCO AURÉLIO: em homenagem final, desejando-lhe todo sucesso em sua grandiosa missão, permita-me fazer minhas as palavras de PROUST: “Os que produzem obras geniais não são aqueles que vivem nos meios mais delicados, que têm a conversação mais brilhante, a cultura mais extensa, mas os que tiverem o poder, deixando subitamente de viver para si mesmos, de tornar a sua personalidade igual a um espelho, de tal modo que a sua vida aí se reflita”.

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