O STF no poder

STF: Leia a íntegra da saudação de Celso de Mello a Marco Aurélio.

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3 de junho de 2001, 0h00

Tivesse prestado mais atenção, na solenidade de posse do novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Fernando Henrique Cardoso veria mais motivos para se preocupar no discurso do ministro Celso de Mello que no discurso do representante da OAB.

Falando em nome dos ministros do STF, Celso de Mello foi encarregado de saudar o novo titular da Corte, Marco Aurélio e seu vice, Ilmar Galvão.

Em sua manifestação, Celso de Mello aproveitou para destacar que, com a promulgação da Constituição de 1988, o Judiciário “tornou-se um dos atores políticos mais relevantes” do país. Vale dizer: hoje o STF também governa.

A constatação, no momento em que assume a titularidade do STF um ministro menos preocupado em ajudar o governo a se dar bem em suas políticas eventuais que com o cumprimento da Constituição, é um recado terrível para quem acha o contrário.

Ainda não se sabe se as divergências internas do Tribunal facilitarão mais os objetivos pregados por Celso de Mello ou a ação obsessiva do seu colega Nelson Jobim. Ainda assim, o ministro paulista apelou aos integrantes da Corte para que haja “diálogo, com o respeito à diferença, com o acolhimento do pluralismo de idéias e com a coexistência harmoniosa entre as diversas correntes de ação e de pensamento, pois o Poder Judiciário, em nosso País, não pode ser uma Instituição dividida e, muito menos, fragmentada por eventuais dissensões que se registrem em seu corpo orgânico.”

Leia a íntegra do discurso de Celso de Mello

Hoje é dia de renovação. E é, também, dia de confirmação de nossa fé em valores que jamais poderão ser desrespeitados ou esquecidos. Esta solenidade, tão impregnada de sentido histórico, mais do que o exercício ritual da transmissão de poder, permite, na incomparável importância que assume a posse do eminente Ministro MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, no elevadíssimo cargo de Presidente do Supremo Tribunal Federal, um momento de grande reflexão sobre os destinos institucionais do Poder Judiciário brasileiro, hoje tornado fiel depositário das legítimas aspirações de um povo que deseja preservar o sentido democrático de suas instituições, e, mais do que nunca, quer ver respeitada, em toda a sua plenitude, a autoridade magna da Constituição da República.

A honrosa investidura do Ministro MARCO AURÉLIO, na Presidência do Supremo Tribunal Federal, presta reverência a um magistrado que se qualifica, no âmbito da comunidade jurídica, como figura respeitável, como homem probo e como pessoa digna, inquestionavelmente à altura das melhores tradições do Poder Judiciário de nosso País.

A posse, a que hoje assistimos, representa, na tradição histórica que tem sido invariavelmente observada no Supremo Tribunal Federal, um ato de reafirmação de nossa esperança – que se renova a cada sucessão na Presidência desta Corte Suprema – de que o Poder Judiciário brasileiro manter-se-á fiel à sua alta missão constitucional, continuando a ser uma instituição livre de injunções marginais e imune a pressões ilegítimas, em condições de cumprir, com incondicional respeito ao interesse público e com absoluta independência moral, os elevados objetivos para os quais foi ele concebido pelos fundadores da República.

Este momento, no qual se dá a posse solene de Vossa Excelência, na Presidência do Supremo Tribunal Federal, representa, Senhor Ministro MARCO AURÉLIO, o prosseguimento de uma jornada na busca e realização do propósito maior do Poder Judiciário brasileiro, que é o de servir, com integridade e respeito, ao que proclamam a Constituição e as leis da República.

Cabe registrar, neste ponto, que o eminente Ministro CARLOS VELLOSO – magistrado notável, jurista de sólida formação doutrinária e professor de impecável reputação acadêmica – mostrou-se fiel ao grave encargo que lhe foi confiado por esta Corte Suprema, havendo exercido, com dignidade e plena independência, as funções de Juiz e de Presidente do Supremo Tribunal Federal, a que dedicou, com o talento que lhe é próprio, o melhor de seus esforços, de que é exemplo o processo de modernização administrativa que objetivou preparar o Tribunal para os desafios do novo milênio.

Estamos aqui unidos, Senhor Ministro MARCO AURÉLIO, em comunhão com Vossa Excelência, para celebrar um rito de passagem, conscientes de que o exercício do poder somente se legitimará com o diálogo, com o respeito à diferença, com o acolhimento do pluralismo de idéias e com a coexistência harmoniosa entre as diversas correntes de ação e de pensamento, pois o Poder Judiciário, em nosso País, não pode ser uma Instituição dividida e, muito menos, fragmentada por eventuais dissensões que se registrem em seu corpo orgânico.

Um Poder Judiciário independente e consciente de sua missão histórica e do elevadíssimo papel institucional que lhe cabe desempenhar, em plenitude, no seio de uma sociedade aberta e democrática, constitui a certeza e representa a garantia da intangibilidade dos direitos, da ampliação do espaço das liberdades públicas, da essencial superioridade da Lei Fundamental da República e do prevalecimento da supremacia do interesse social, especialmente em um País em que se evidenciam – num plano de quase insuperável polaridade dialética – relações antagônicas e conflituosas que submetem pessoas indefesas ao arbítrio do Estado onipotente ou que expõem essa massa enorme de explorados e despossuídos à avidez predatória daqueles que desprezam, com insensível desrespeito às leis, à consciência moral, à solidariedade social e à Constituição, os valores básicos sobre os quais se funda qualquer sociedade digna, justa e fraterna.


Neste particular momento histórico, Senhor Presidente, em que a magistratura brasileira se situa entre o seu passado e o seu futuro, cumpre dar relevo – ante a inquestionável importância de que se reveste – à luta pelos direitos humanos.

Essa luta – que há de ter o significado de um processo contínuo e permanente na vida de nosso povo e de nosso País – deve também refletir um compromisso ético e político irrenunciável dos juízes brasileiros.

Cabe reconhecer o significado extremamente positivo da existência, em nosso País, do Plano Nacional de Direitos Humanos e da legislação que define e pune o crime de tortura, o que revela a alta sensibilidade da Presidência da República e do Congresso Nacional, no tratamento de questões tão importantes para a nossa consciência de pessoas comprometidas com a causa dos direitos humanos.

Os juízes brasileiros, no entanto, não podem permanecer alheios a denúncias – como as divulgadas, na data de ontem, pela Anistia Internacional, cujo relatório (Informe 2001), sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, mostra que, lamentavelmente, em nosso País, ainda ocorrem, com preocupante freqüência, torturas, mortes de pessoas sob custódia policial, tratamento cruel e degradante dispensado a adolescentes presos, execuções sumárias e prática de violência arbitrária por agentes do Estado.

Ao Magistrado, Senhor Presidente, incumbe o desempenho incondicional de um dever que lhe é inerente: o de velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas, o de repelir condutas governamentais abusivas, o de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, o de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a práticas discriminatórias e o de neutralizar qualquer ensaio de opressão estatal.

O fato irrecusável é um só, Senhor Presidente. Com a restauração da ordem democrática, o Poder Judiciário – especialmente após a Constituição de 1988 – tornou-se um dos atores políticos mais relevantes no âmbito do processo institucional em curso no Brasil.

A crescente demanda de jurisdição passou a representar um dos sinais mais positivos da posse consciente e militante da cidadania, estimulando o exercício pleno dos direitos e garantias fundamentais, notadamente naquelas situações de antagonismo entre os indivíduos e os grupos sociais, de um lado, e o Poder Público, de outro.

A possibilidade de solução jurisdicional dos conflitos sociais representa índice revelador do grau de desenvolvimento cultural dos povos e significa, por isso mesmo, a diferença fundamental entre civilização e barbárie, pois, onde inexiste a possibilidade do amparo judicial, há, sempre, a realidade opressiva, sombria e intolerável do arbítrio do Estado.

É também chegado o momento de intensificar a discussão em torno da reforma do Poder Judiciário, hoje em tramitação perante o Senado da República, ampliando o círculo dos protagonistas centrais desse debate, para, nele, incluir, democraticamente, de maneira cada vez mais ampla, todos os segmentos da sociedade civil, em ordem a conferir, às decisões que venham a ser tomadas pelo Congresso Nacional (que é a instância formal de poder, competente para a adoção de tais medidas), o necessário coeficiente de legitimidade político-social.

Na realidade, a reforma judiciária, para legitimar-se plenamente, deverá instituir um sistema de administração da justiça que se revele processualmente célere, tecnicamente eficiente, politicamente independente e socialmente eficaz.

A questão do Poder Judiciário revela-se impregnada de forte componente político-institucional. Por isso mesmo, a reforma judiciária é demasiadamente importante para ser apenas discutida pelos operadores do Direito. É por tal razão que se impõe a ativa participação de todos os cidadãos nesse debate, pois a possibilidade de ampla reflexão social em torno da questão judiciária – que hoje constitui dado revelador da própria crise do Estado -, além de dar significado real à fórmula democrática, terá a virtude de atribuir plena e essencial legitimação ao processo decisório instaurado perante o Congresso Nacional.

É particularmente significativo o momento histórico em que Vossa Excelência, Senhor Ministro MARCO AURÉLIO, chega à Presidência do Supremo Tribunal Federal, especialmente se considerarmos que, no Brasil, as reformas, mais do que nunca, são necessárias, porque é intenso o desejo de transformação manifestado pelos cidadãos deste País.

Sabemos todos que não pode haver ordem e nem democracia, onde as desigualdades imperam, onde a justiça falha e onde a opressão sufoca os anseios de liberdade.

Nesse contexto, em que as reformas se tornam imperiosas e em que o processo de modernização do Estado se faz necessário, cabe ter presente a gravíssima responsabilidade que se impõe ao Poder Judiciário, e que Vossa Excelência, quando de sua eleição para a Presidência deste Tribunal, sintetizou em fórmula lapidar: fazer prevalecer, sempre, “sejam quais forem os ventos com que nos defrontarmos“, a autoridade suprema da Lei Fundamental da República.


Esse compromisso, Senhor Presidente, é também o compromisso do Supremo Tribunal Federal, pois, no Estado Democrático de Direito, não há – e nem pode haver – margem de tolerância para com interpretações jurídicas, que, longe de se ajustarem à ordem constitucional, culminem, paradoxalmente, por deformar o significado da própria Constituição da República.

O Supremo Tribunal Federal – que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do Poder Constituinte – não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas.

Nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental.

Nenhum dos Poderes da República, Senhor Presidente, pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios e a avaliações discricionárias fundadas em razões de conveniência política ou de pragmatismo institucional, eis que a relação de qualquer dos três Poderes, com a Constituição, há de ser, necessariamente, uma relação de respeito incondicional, sob pena de juízes, legisladores e administradores converterem o alto significado do Estado Democrático de Direito em uma palavra vã e em um sonho frustrado pela prática autoritária do poder.

Sob tal perspectiva, Senhor Presidente, cumpre observar o itinerário histórico do Supremo Tribunal Federal, cujas decisões – muitas vezes proferidas em momentos críticos de declínio agudo das liberdades civis e políticas em nosso País – devem representar valioso paradigma de reflexão no esforço de construção da cidadania e da ordem democrática no Brasil.

E, nesse contexto, Senhor Presidente, torna-se imperioso relembrar a alta significação política e jurídica de que se revestiram, no processo de edificação da República, de construção da Federação e de consolidação da prática dos direitos fundamentais, os votos vencidos, proferidos em memoráveis julgamentos, por juízes eminentes desta Corte Suprema, cujas lições ainda iluminam os nossos caminhos, ajudando-nos a forjar, em nossos espíritos, a consciência superior da liberdade e da cidadania.

Aquele que vota vencido, Senhor Presidente, não pode ser visto como um espírito isolado nem como uma alma rebelde, pois, muitas vezes, é ele quem possui o sentido mais elevado da ordem e da justiça, exprimindo, na solidão de seu pronunciamento, uma percepção mais aguda da realidade social que pulsa na coletividade, antecipando-se, aos seus contemporâneos, na revelação dos sonhos que animarão as gerações futuras na busca da felicidade, na construção de uma sociedade mais justa e solidária e na edificação de um Estado fundado em bases genuinamente democráticas.

Aquele que vota vencido, por isso mesmo, Senhor Presidente, deve merecer o respeito de seus contemporâneos, pois a história tem registrado que, nos votos vencidos, reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações.

Poderia mencionar, neste passo, o nome do Juiz Oliver Wendell Holmes Jr., que se notabilizou, na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, nos longos anos que ali permaneceu (1902-1932), por suas dissenting opinions, por seus votos vencidos, que, mais tarde, viriam a converter-se em expressão da jurisprudência predominante naquele alto Tribunal.

Revela-se mais importante, no entanto, Senhor Presidente, relembrar, a propósito dos votos vencidos, a própria experiência histórica do Supremo Tribunal Federal brasileiro.

Para tanto, e sem prejuízo de outros casos de grande relevância, basta-me recordar o memorável julgamento do Habeas Corpus nº 300, impetrado, perante este Supremo Tribunal Federal, por Rui Barbosa, patrono dos Advogados Brasileiros, em favor de oficiais generais, de senadores da República, de deputados federais, de jornalistas, como José do Patrocínio, e de poetas, como Olavo Bilac, atingidos em seus direitos e em suas liberdades, por atos prepotentes e arbitrários do Marechal Floriano Peixoto, então no exercício da Presidência da República.

No histórico julgamento desse habeas corpus, denegado pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento ocorrido em 23 de abril de 1892, destaca-se, até hoje, o luminoso voto vencido proferido pelo Ministro Pisa e Almeida, que não hesitou em sustentar a tese – que, embora solitária, viria a transformar-se, alguns anos depois, no núcleo da jurisprudência dominante nesta Suprema Corte, chegando, até mesmo, a ser consagrada em textos constitucionais posteriores – na qual acentuava que os abusos, mesmo quando praticados na vigência do estado de sítio, pela Presidência da República, estão sob a jurisdição imediata do Supremo Tribunal Federal, cuja competência, em tal matéria, pode e deve ser exercida, ainda que o próprio Congresso Nacional não se tenha pronunciado sobre a adoção dessa medida extraordinária de defesa do Estado, eis que os poderes de crise, atribuídos ao Chefe do Executivo, não são ilimitados e nem se revelam superiores à autoridade da Constituição.

Afirmou-se, ainda, nesse histórico voto vencido, que a cessação do estado de sítio importava em restabelecimento imediato das garantias constitucionais, pois a prisão e o desterro, por ordem meramente administrativa, não poderiam prolongar-se indefinidamente, sem processo e sem possibilidade de controle jurisdicional.

Essa tese, Senhor Presidente, tão cara à preservação das liberdades individuais, apenas veio a prevalecer alguns anos depois, por efeito da irresistível força fecundante de que pode revestir-se um simples voto vencido.

Tem inteira razão, pois, Raymundo Faoro, quando enfatiza que o voto vencido, muitas vezes, “representa a honra de um corpo político, alicerce da opinião vencedora num passo subseqüente. É o voto da coragem, de quem não teme ficar só…” (apud Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, “Quem tem medo da Constituinte”, prefácio, 1986, Paz e Terra).

É tempo de concluir, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, devo registrar que Vossa Excelência, ao longo de sua administração, contará com a valiosa experiência e com a importante colaboração do eminente Ministro ILMAR GALVÃO, Juiz exemplar que dignifica esta Corte Suprema, honrando-a com a integridade de seu caráter, com a excelência de sua vasta cultura jurídica e com a alta responsabilidade com que exerce o ofício jurisdicional, associando, a seus atributos de magistrado, não só os predicados que o distinguiram em profícua carreira de professor universitário, como, também, a condição de quem já presidiu, com brilho, a mais Alta Corte de Justiça Eleitoral de nosso País.

O Supremo Tribunal Federal, em cujo nome tenho o privilégio de discursar, saúda Vossas Excelências, Senhor Presidente, Ministro MARCO AURÉLIO, e Senhor Vice-Presidente, Ministro ILMAR GALVÃO, desejando-lhes gestão profícua, assegurando-lhes apoio solidário na superação dos graves desafios que certamente surgirão ao longo do desempenho de suas novas e elevadas funções e estendendo, em saudação especial, os respeitosos cumprimentos desta Corte às Excelentíssimas Senhoras Sandra de Santis Mendes de Farias Mello, ilustre Magistrada integrante do Poder Judiciário do Distrito Federal, e Teresinha Sílvia Lavocat Galvão, eminente Procuradora de Justiça aposentada do Ministério Público do Distrito Federal, dignas esposas dos homenageados, com quem partilhamos, ao lado de seus filhos e familiares, este momento tão pleno de significação em suas vidas e, também, na história desta Suprema Corte.

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