Débito de cidadania

'Maioria de brasileiros não tem acesso à Justiça'.

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27 de julho de 2001, 15h25

O Judiciário é, dentre os Poderes da República, aquele que trabalha mais junto ao povo, mais rente à sociedade, pois não lida ele com o conflito descarnado, na abstrata universalidade do legislador. Tratamos nós, juízes, das questões concretas, da realidade da vida de seres humanos de carne e ossos, espírito e consciência, que batem às nossas portas para encontrar aqui o seu último refúgio contra o direito violado, a liberdade perdida, a cidadania ultrajada.

Sempre ouvi a crítica – correta, aliás – de que o Judiciário é moroso. Porém, a realidade que bate à porta dos juízes é mais dura do que se possa imaginar. Recebemos da sociedade o conflito humano mais doloroso e, com ele, homens e mulheres divididos pela disputa com seus semelhantes. Nos processos judiciais apresentam-se muitas vezes as piores misérias do homem.

Carece o Judiciário, contudo, de melhores instrumentos de trabalho. A legislação nacional que temos de aplicar, além da técnica deficiente, é hoje de produção verdadeiramente caótica. A edição de medidas provisórias, pelo Executivo, é quase sempre ilegal, pois, em grande parte, estão elas despidas dos requisitos constitucionais mínimos de validade jurídica. Tal atividade, a par disso, é febril e anárquica, contribuindo enormemente para a insegurança jurídica da população. É ela, por fim, a indisfarçável expressão do apetite autoritário que cresce no governo federal.

Ao Judiciário também cabe o mea-culpa, porque a Corte Suprema não refreou, como lhe competia, tal expediente arbitrário e, no mais das vezes, inconstitucional de balizamento da vida da Nação.

Por outro lado, deficientes são os instrumentos de que dispomos, porque já não se aceita mais a verdadeira liturgia do processo, o amor desmedido pelos ritos, que quase passaram a ter fim em si mesmos, numa inversão de valores que não ajudamos a coibir. Deve ser urgentemente revalorizado o direito material, voltando a ter o processo, se verdadeiramente algum dia teve, caráter meramente instrumental.

Impõe-se hoje à magistratura, como débito para com o povo brasileiro, antes de tudo lutar contra o pretendido amesquinhamento do Poder Judiciário, a quebra de sua expressão político-institucional, a sua fragilização frente ao Poder Executivo.

No Brasil, o Judiciário tem um dos melhores desenhos constitucionais de que se tem notícia. Está ele aparelhado para o exercício de efetivo controle da constitucionalidade das leis e da legalidade dos atos dos demais Poderes, inserindo-se no sistema de freios e contrapesos com elevada expressão de poder político que é e com dignidade constitucional singular no concerto das nações.

Para um Executivo hipertrofiado, que manobra com o Legislativo usando de expedientes fortemente contestados pelo padrão ético mínimo do povo, e que se arvora, quase sempre, em ser o juiz de seus próprios atos, é lícito supor que pretenda a existência de um Judiciário com menor independência, despido da digna e elevada expressão constitucional que lhe outorgou a Nação brasileira.

Poder Executivo cujas propostas de governo, que permanentemente sobrepõem o econômico ao social, contam com o aplauso entusiástico de setores econômicos internacionais, sobretudo dos grandes investidores, que obtêm aqui lucratividade sem par para seu capital, que adquirem o patrimônio nacional através de licitações que estão a merecer ampla investigação, e para quem deve ser o Judiciário mero parceiro do desenvolvimento econômico, singelo auxiliar da atividade econômica, tudo sob a égide da lei do mercado. Para isso, a palavra de ordem não é a aquela que trazemos gravada na formação de nossas consciências, ou seja, a justiça das decisões, mas sim a mera previsibilidade dos julgados, do que é exemplo claro a proposta de súmulas vinculantes, dentre outros institutos que visam a uma insólita verticalização do Judiciário nacional, com visível perda de poder na base do sistema.

O Judiciário não produz e não deve produzir desenvolvimento econômico. Isto é tarefa da iniciativa privada. O Judiciário produz e deve produzir justiça, seja ela ou não condizente com os interesses do capital.

E tais interesses, ironicamente apresentados como modernidade, que atacam o Judiciário e o que resta de soberania nacional, pretendem impingir ao Poder substantiva parcela da responsabilidade pelo chamado “custo-Brasil”, no qual estaria incluído, por certo, o “custo-Judiciário”.

Já foi dito pelo ministro Sepulveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, com total razão, que todos os cidadãos devem suportar o custo das instituições democráticas, que está ínsito não na expressão “custo-Brasil”, mas no republicano e indispensável conceito de “custo-Democracia”.

É o custo que os espíritos democráticos enfrentam com satisfação e civismo para não voltarmos à lei das selvas, ao império da força, onde fenecem o direito e a justiça.

A história está a indicar que, de fato, se os dois últimos séculos foram, primeiramente, do Legislativo e, após, do Executivo, o século XXI será o tempo do Judiciário.

Temos, no entanto, a obrigação de nos habilitar para isso, para essa imensa tarefa social, antes de tudo reconhecendo e tratando das nossas próprias feridas e mazelas, que não são poucas ou pequenas. Para tamanho desafio, não há fórmula pronta. Com Antonio Machado pode-se dizer: “Caminante no hay camino/Se hace el camino al andar…”

Andar, para mim, significa estar sempre disposto para a luta por mais independência interna e externa do Poder. Significa, sempre e antes de tudo, sermos juízes rigorosos de nossa própria consciência, para que não logre ela nos trair pela comodidade das soluções mais fáceis, inclusive junto à opinião pública, mas menos justas.

Não nos deixar impressionar pela facilidade da adoção da jurisprudência pronta, ainda que respeitável e justificadora, mas que não esteja de acordo com a lei ou com a Constituição Federal segundo a nossa própria – ainda que modesta – compreensão das coisas e do direito.

Significa não imaginar, por soberba, que todos os conflitos chegam a nossa mesa de trabalho, quando devemos saber que a maior parte dos brasileiros não tem qualquer acesso à Justiça e, quando tem, por vezes aqui chega com quase nula capacidade de êxito, por não conhecer proteção jurídica prévia para seus atos, já que não detém cultura de acautelamento de seus legítimos direitos.

E também significa saber que nos incumbe, como cidadãos e como magistrados, ajudar a reverter esse débito de cidadania.

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