Controle

'Incidente de constitucionalidade deve ser discutido no Judiciário'.

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26 de julho de 2001, 15h14

Imagine o ministro da Fazenda de plantão levando ao presidente da República uma emocionante exposição de motivos para justificar a reedição (muito provavelmente por medida provisória) do bloqueio da poupança e dos reais depositados em contas-correntes de todos os cidadãos brasileiros.

Pense, agora, no presidente da República, em rede nacional de televisão e rádio, dizendo emocionado à população que, sem esse sacrifício, o país não honrará suas dívidas, a inflação voltará galopante, a comida sumirá das prateleiras dos supermercados, vai quebrar, se tornará ingovernável. O caos. Por fim, imagine a mais alta Corte de Justiça, diante de tão impressionantes argumentos, tendo de decidir, de pronto, que tais medidas encontram amparo nas leis e que, portanto, ipso facto, ninguém mais pode contestá-las.

Para que o leitor não fique apenas no pesadelo, imagine que os cidadãos lesados por esse confisco buscaram seus direitos. E tudo aconteceu assim: primeiro, um tribunal concedeu ganho de causa; depois outro; e muitos outros mais. Todos demonstrando que os economistas do governo estavam, no mínimo, equivocados, e permitindo o desbloqueio dos reais – para alívio da economia e dos investidores que esperam, da Justiça, a garantia de que seus contratos serão cumpridos.

O confisco das contas ocorreu no governo Collor e o seu desbloqueio foi resultado de um sem-número de ações que os tribunais de instâncias inferiores proferiram, desnudando a insanidade daquela medida. O Brasil não quebrou por isso, nem o mundo acabou. Em suma: a recuperação de uma situação de Direito só foi possível porque houve tempo para amadurecer uma idéia que, embora se tentasse mostrar indispensável, era oca por dentro e logo desmoronou.

Esta é uma lição básica: o momento crítico de qualquer julgamento está no início dos fatos, quando as emoções se põem à frente da lógica e da razão. Sem uma discussão ampla, jamais se poderá ter uma decisão judicial que não seja, no mínimo, precipitada.

Se no confisco dos cruzados o assunto fosse discutido unicamente no STF e este decidido favoravelmente ao governo, não se poderia nem ao menos criticar os membros da cúpula do Judiciário, a não ser acatar a sua decisão. Como seres humanos, os juízes teriam decidido ao som das trombetas oficiais, ocupando maciçamente todos os meios de comunicação, segundo as quais deixar de atender o que o Executivo Federal, direta ou indiretamente, legislou, seria, no mínimo, impatriótico.

É oportuna a comparação em um momento em que o governo incluiu, na mini-reforma tributária enviada ao Congresso Nacional, no final de junho, o incidente de constitucionalidade, acrescentando um parágrafo ao Artigo 103 da Constituição. Significa dizer que o governo pode propor ação ao Supremo Tribunal Federal, com efeito de suspender todas ações, inclusive liminares, em andamento nas instâncias inferiores.

O dispositivo é semelhante ao que foi proposto no texto original da proposta da Reforma do Judiciário, com o nome de “avocatória”, que começou a ser discutido na Câmara dos Deputados e foi retirado por acordo das lideranças dos partidos. Aliás, a sua origem está no famoso “Pacote de Abril” do governo Geisel, o que mostra a vocação autoritária desse instrumento.

O impacto que o incidente de constitucionalidade provocará no sistema judiciário, caso seja aprovado, é muito grande para ser tratado sorrateiramente, em meio a uma reforma tributária. Seu foro de discussão é a própria reforma do Judiciário.

A Justiça brasileira tem hoje um controle misto da constitucionalidade, com parte dele concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade e Ações Declaratórias de Constitucionalidade, e outra parte difusa: qualquer instância da Justiça pode se manifestar sobre a constitucionalidade de determinada regra legal. A proposta do governo, porém, reforça a tendência do controle concentrado do STF nessas matérias, sob o argumento de que irá desobstruir o Judiciário e aniquilar com a chamada “indústria de liminares”. Comete-se, assim, mais um equívoco, pois monopoliza a Justiça em seu órgão máximo e impede o amadurecimento das discussões a partir do juízo natural, que, no caso, é o do primeiro grau no início da apreciação da matéria. Um País só é civilizado na medida em que a cidadania se perfaz integralmente. E isso só existe se a cidadania for exercida com liberdade, que deve ter por base o respeito aos direitos, principalmente pelo Poder Público.

Quando a Ordem dos Advogados se posiciona contrária a esse mecanismo não está sendo corporativa, até mesmo porque, quando defende interesses individuais de seus clientes, o advogado tem por finalidade concretizar, de maneira efetiva, os direitos – inclusive os fundamentais – assegurados na Constituição. Sem o advogado, tais direitos seriam meros ornamentos, sem exeqüibilidade; e a cidadania, simples conceito abstrato.

O exemplo utilizado no início deste artigo não aconteceu porque, felizmente, o Judiciário, em todas as instâncias, deu as respostas que os cidadãos esperavam e não se verificava, nos anos Collor, o mesmo impulso legislativo como no atual governo. Mas quem garante que não venha a ocorrer? É aqui que a ficção acaba.

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