Camisa de força

Hugo Melo rejeita incidente de constitucionalidade

Autor

  • Hugo Melo Filho

    é juiz do Trabalho mestre em Ciência Política membro do Conselho Nacional do Ministério Público e presidente da Comissão de Planejamento Estratégico e Acompanhamento Legislativo do órgão.

21 de julho de 2001, 11h39

Enquanto prevaleceu o absolutismo monárquico, os juízes não passavam de “longa manus” do Poder Político. Os magistrados se prestavam ao papel de agentes políticos arbitrários, absolutamente fiéis aos interesses do monarca. Esse quadro gerou imagem tão negativa da magistratura que a Revolução Francesa proibiu aos juízes qualquer espécie de exercício interpretativo das leis, sob nítida inspiração de Montesquieu, para quem “os juízes de uma nação não são, como dissemos, mais do que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor”.

Pela mesma senda trilharam os articulistas federalistas, em quem a influência de Montesquieu, “o oráculo sempre consultado e citado”, é óbvia, no que respeita à idéia de independência e autonomia do Judiciário em face dos demais poderes. Ainda que a experiência francesa posterior à Revolução tenha efetivado a concepção de um juiz sem qualquer independência, vinculado aos interesses do estado e distrito a letra fria da lei, feição que pautou a tradição da Europa continental de redução do juiz à condição de burocrata, pela percepção da fragilidade do Poder Judiciário, os norte-americanos construíram o “Poder Judiciário mais gigantesco já constituído por qualquer povo”, no dizer de Alexis de Tocqueville.

Com efeito, à arguta visão de Tocqueville não passou despercebido o fato de que nenhuma “nação do mundo tenha constituído o Poder Judiciário da mesma maneira que os americanos”. Foi nos Estados Unidos da América que o Judiciário foi alçado, de fato, à condição de Poder da República. Inicialmente pela luta dos constitucionalistas em observar, com rigor lógico, o princípio da separação dos poderes, atribuindo-se ao Judiciário a função precípua de controle.

Depois, pela titularidade que se atribuiu do controle de constitucionalidade das leis, alcançada a partir da obra do então presidente da Suprema Corte, Justice John Marshall, na notável sentença de 1803, proferida no caso Marbury versus Madison. A decisão de Marshall, vencendo a oposição do Presidente Jefferson, deu início à era do constitucionalismo, em detrimento do legalismo.

E foi justamente a titularidade do controle de constitucionalidade das normas que provocou em Tocqueville imenso espanto, quando do exame do Poder Judiciário norte-americano, em sua obra “A Democracia na América”. Para ele, apesar de o Poder Judiciário americano conservar todas as características que comumente se lhe reconhecem (a de servir de árbitro, a de atuar no caso concreto, e a de somente atuar quando provocado), a ele foi atribuído um imenso poder: “A causa está neste simples fato: os americanos reconheceram aos juízes o direito de fundar suas decisões na constituição, em vez de nas leis. Em outras palavras, permitiram-lhes não aplicar as leis que lhes pareçam inconstitucionais”.

No Brasil, a chamada judicial review foi introduzida com a República, admitindo duas vertentes: o controle concentrado e o controle difuso. O primeiro é atribuído ao órgão de cúpula do Judiciário. O outro é competência pulverizada entre os milhares de magistrados brasileiros. A difusão da competência para o controle de constitucionalidade das leis é, talvez, o elemento de tutela e de garantia de direitos individuais mais eficaz. Por isso, essencial. Ao mesmo tempo, constitui ameaça à previsibilidade jurídica, tão cara aos interesses do poder político e da especulação econômica.

Assim é que diversas têm sido as iniciativas no sentido de limitar o controle difuso, ampliando-se os instrumentos de concentração. A proposta de criação do denominado incidente de constitucionalidade é mais uma delas.

Não se pode perder de vista que a Constituição de 1988 já sofreu alterações significativas, no que pertine ao controle de constitucionalidade. Com a Emenda nº 3/93 foi acrescentado à competência do Supremo Tribunal Federal o julgamento de ação declaratória de constitucionalidade, com efeito, vinculante. Foi aprovada também a argüição de descumprimento de preceito fundamental, que veio a ser regulamentada em dezembro de 1999, pela Lei nº 9.882/99.

Na reforma do Judiciário, a proposta de instituição da chamada súmula vinculante já foi aprovada, na Câmara. Tudo indica que também passará no Senado. Agora, busca-se a implementação de alteração que viabilize a suspensão de qualquer processo em curso, em face de incidente de constitucionalidade proposto “em casos de reconhecida relevância”.

Todas as providências adotadas deságuam no intuito último de limitar a ação da base da magistratura, pela verticalização do Poder Judiciário, como forma de facilitar a implantação da estrutura neoliberal, a sobre determinação econômica que a crise do capitalismo impõe aos países periféricos. Vê-se, claramente, que o propósito é impor limites ao funcionamento do Poder Judiciário. A proposta agora apresenta deixa evidenciada a urgência do poder político em mitigar o exercício da função jurisdicional pelas instâncias inferiores.

A ampliação do controle de constitucionalidade pelo órgão de cúpula e a prevalência de sua jurisprudência sumulada sobre as decisões das instâncias inferiores são caminhos abertos para se atingir a certeza jurídica objetivada pelo Governo.

Mais uma vez, e sem qualquer escrúpulo, negam-se os princípios do juiz natural e do duplo grau de jurisdição. Permite-se o exame pelo STF, com supressão de instâncias, de matéria de competência, inclusive, do primeiro grau de jurisdição, em óbvio atentado contra a liberdade jurisdicional da magistratura.

Reafirma-se, ainda uma vez, a impressão de Publius: “o Judiciário é incomparavelmente mais fraco que os dois outros poderes; (…) [por isso] todo o cuidado possível é necessário para capacitá-lo a se defender contra os ataques dos outros”.

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    é juiz do Trabalho, mestre em Ciência Política, membro do Conselho Nacional do Ministério Público e presidente da Comissão de Planejamento Estratégico e Acompanhamento Legislativo do órgão.

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