Acesso à Justiça

'Gratuidade judiciária não está restrita às pessoas físicas'.

Autor

16 de julho de 2001, 14h56

O vetusto brocardo, cura pauperis clausula est (1) está, pouco a pouco, começando a ceder. Ainda quando do advento da Lei nº 1.060, de 05 de fevereiro de 1950, estabelecendo as normas de assistência judiciária aos necessitados, entendia-se como aptos, para atuar in forma pauperis, apenas as pessoas físicas, inobstante inexistir no texto legal supra qualquer distinção, como não a faz o inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição da República, calcado no princípio universal de que todos são iguais perante a lei (2).

De conseguinte, a pessoa jurídica de direito privado (firma individual, pequena e microempresa) não está excluída e nem impedida de almejar a gratuidade judiciária (3), desde que prove seu enquadramento como “necessitada” e sua “situação econômica” não lhe permita pagar as custas do processo. Visível nesse sentido, a tendência para conceituar a expressão “situação econômica” como “situação financeira”. Basta que o interessado não tenha recursos para atender as despesas legais, para a busca ou defesa gratuita de seus direitos.

O acesso à Justiça gratuita, por parte das pessoas jurídicas, foi de caminhar moroso até a CF/88. Os primeiros são referidos na clássica obra do professor mineiro, José Roberto de Castro (4), coletando, então, valiosos entendimentos Pretorianos. O primeiro é de 1963, e o segundo, que ora mais se afeiçoa, ao apontar “Admite o processo Civil a solução analógica (CPC, art. 126). A gratuidade de Justiça não é benefício restrito às pessoas físicas, pode ser reconhecido às sociedades civis de fins humanitários que vivam de verbas e contribuições e que não buscam o lucro ou o próprio crescimento econômico” (Ac. Da 4ª Câmara do TJ-RJ, de 19-05-79, na Ap. 7.888, Rel. Des. Hamilton de Moraes e Barros, ADCOAS, 1980, verbete nº 71.079).

Outra fundamental inovação foi, posteriormente, contemplada através da Lei Federal nº 9841, de 06.10.1999, permitindo que a microempresa tenha acesso direto, ou legitimidade para postular, perante os Juizados Especiais Cíveis (Pequenas Causas)(5), destacando-se, novamente, o pioneirismo do Tribunal de Justiça do RS, garantindo a aplicação do benefício independentemente da Regulamentação.

A excessiva carga tributária, adicionada a um mercado restritivo, impostos pelo neoliberalismo, além das elevadas taxas de juros, determinam que as empresas, principalmente as pequenas, apresentem estreitíssima margem de lucro, e, ainda, na maior parte das vezes, prejuízos acumulados, impossibilitando a utilização pecuniária para qualquer despesa não cogitada.

Na verdade, dificilmente alguém se antevê ou imagina ser compelido a uma disputa judicial, acontecimento que refoge da previsão normal, tanto da pessoa física quanto da jurídica, não aparecendo no orçamento pessoal ou empresarial as expensas judiciais que decorrem de uma lide, mesmo porque menos 02% dos 160 milhões de brasileiros, incluindo-se as pessoas jurídicas, têm condições de atender as onerações de custos de uma causa.

Destarte, urge eliminar as últimas barreiras do acesso à Justiça, em prol das micro e pequenas empresas e firmas individuais, utilizando-se, para tanto, os próprios critérios insculpidos na lei em vigor, sobre a exata concepção da terminologia “necessitado” e a da falta de “condições econômicas”, que bem podem socorrer aqueles empresários nos feitos em que figuram como autor ou réu, não abrangidos pela competência dos Juizados Especiais.

Veja-se, neste talante, a moderna exegese concebida e adotada para o atual momento econômico, revigorando a garantia do acesso à Justiça, pela falta de liquidez da pessoa jurídica. Sobre o artigo 2º da Lei 1.060, tão bem interpretado pelo Insigne Desembargador, Doutor Luiz Ary Veccini de Lima(6), em palpitante Acórdão, de cujo corpo se extrai: “Esse diploma legal (referindo-se a Lei de Assistência Judiciária), em seu artigo 2º, parágrafo único, conceitua como necessitado” todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagas as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Ora, “sustento próprio” equivale à sobrevivência da pessoa jurídica e a expressão família vem precedida da conjunção alternativa “ou”, de sorte que não necessariamente esse requisito deva estar presente”.

E essa preocupação, que assola a microempresa e a própria classe média, quando compelidos a residir em juízo, tem despertado a atenção dos especialistas, inclusive os dos países do primeiro mundo. A melhor solução, segundo o renomado jurisconsulto, Mauro Cappelletti(7), foi a inovada pela Suécia, com a combinação da Previdência Privada e Assistência Judiciária, onde cerca de 85% da população tem seguros que cobrem, entre outros, a maior parte dos ônus sucumbenciais do processo.

A dificuldade para enfrentar um processo judicial, porém, atinge, atualmente, por paradoxal que possa parecer, a classe média e as microempresas. Os excluídos da pirâmide social nessas situações, felizmente encontram-se amparados pelos serviços de ajuda legal, como consectário da função protetiva do Estado, através das Defensorias Públicas, (exemplar instituição no RS, e nos demais Estados onde está implementada), cujos abnegados agentes têm atendido a população carente.

Diante desse contexto, recentemente, e por mais uma vez, destacou-se a vanguarda do Tribunal Gaúcho, vencendo mais uma primacial etapa, acerca da possibilidade da pessoa jurídica obter a assistência judiciária gratuita, no entendimento de que “Faz jus ao benefício da gratuidade judiciária a firma individual, considerando que a pessoa física que a representa se confunde com a pessoa jurídica, pois é responsável pelo adimplemento das obrigações da empresa”.(8)

Neste Norte, das judiciosas lições do professor Carlos Alberto Álvaro de Oliveira(9), a precisa conotação de que “realmente, a aspiração de se fazer a Justiça mais acessível e efetiva revela-se como importante faceta da orientação que tem marcado os mais avançados sistemas legais de nosso século. Esse reclamo espelha-se de maneira bastante acentuada na maioria das Constituições do mundo ocidental, caracterizada pelo esforço de integrar as tradicionais liberdades “individuais” – incluindo aquelas de natureza processual – com direitos e garantias de caráter “social”, que em essência buscam não só torna-las acessíveis a todos como também assegurar uma real e não meramente formal igualdade das partes em face da lei e na sua atividade concreta processual”.

Notável, desta forma, a preciosa contribuição renovadora do Tribunal Riograndense sobre a perfeita aplicação do direito, na conformidade com as normas, princípios constitucionais e infraconstitucionais, sobrelevando-se a interpretação lógica, na esteira de que o espírito e o pensamento devem prevalecer sobre as palavras e a letra, e, sobremaneira, atento ao sempre presente axioma: prior atque potentior quamvox mentis dicentis: a palavra é meio e deve estar subordinada ao fim, que é o pensamento.

Portanto, “a Lei 1.060/50 deve ser interpretada à luz da Norma Constitucional, que não faz distinção entre as pessoas beneficiárias da Assistência Judiciária, quer sejam físicas ou jurídicas..”., como proclamado no Aresto antes referido. (AC 70002019966)

No mesmo sentido, colhe-se do voto condutor do Acórdão da lavra do iminente Desembargador, Paulo Antonio Kretzmann(10), que a pessoa jurídica, como sujeito de direito que é, também faz jus ao benefício da gratuidade. Na mesma linha, ut apud(11), a importantíssima definição de que o indeferimento ao benefício da gratuidade em prol da pessoa jurídica, desde que comprove a sua impossibilidade, “…constitui negativa de acesso a prestação jurisdicional, já que inexiste, para tal efeito, distinção entre pessoa física e jurídica”, porque, o fundamental “é que não se vede àquele que é sujeito de direito, o acesso à Justiça, seja pessoa física, seja pessoa jurídica”.

No Aresto acima, anotado que o Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial nº 161897 – consagrou “É perfeitamente admissível, à luz do artigo 5º, LXXIV, da CF/88, a concessão do benefício da gratuidade à pessoa jurídica, que demonstre, cabalmente, a impossibilidade de atender as despesas antecipadas do processo, o que vedaria seu acesso à Justiça..”..

Identicamente, do STJ(12): “a microempresa pode receber o benefício da assistência judiciária gratuita”, eis que(13) “o acesso ao judiciário é amplo, voltado também às pessoas jurídicas, especialmente às empresas individuais e às pequenas e microempresas”

Pode-se concluir que, hodiernamente, existe a real possibilidade às instituições sem fins lucrativos, à firma individual e às pequenas e microempresas, auspiciarem o beneplácito da gratuidade judiciária, ampliando-se, com isso, o acesso à Justiça. Indispensável, porém, a continuidade das abordagens nesse tema, questionando o conjunto das instituições, procedimentos e pessoas que caracterizam nossos sistemas judiciários, com o cuidado de não enveredar por reformas imaginativas, mas atentos, primordialmente a realidade sócio-econômica não só a dos hipossuficiente, mas, igualmente, a dos sofridos pequenos empresários.

Notas de Rodapé

1. O Tribunal está fechado para os pobres.

2. A igualdade econômica é utopia, tanto quanto a física e a mental.

3. Convém observar: a Assistência Judiciária é a Organização Estatal que propicia um Advogado público (atuais Defensores Públicos); o benefício ou direito da Justiça gratuita é o pedido.

4. Manual de Assistência Judiciária, Aide, 1ª ed. Rio de Janeiro, 1987, pp. 92/93.

5. vide nossas anotações publicadas na Revista Consultor Jurídico, ed. 10.03.2000: Para os efeitos da recente Lei Federal nº 9841, de 06/10/1999, (D.O.U.-192), define-se como microempresa a que tiver receita bruta, anual, de R$ 244.000,00. Já a empresa de pequeno porte é a que apresentar receita superior a R$ 1.200.000,00. Por decorrência do Estatuto acima, (artigo 38), a microempresa tem acesso direto ou legitimidade para postular perante os Juizados Especiais Cíveis (Pequenas Causas), que já estarão, no RS, recebendo os pedidos, por força da presta resolução do Tribunal Gaúcho, determinando a imediata aplicação de lei. Assim, a interessada deverá instruir o pedido com cópia do contrato social, ou declaração de firma individual, e ou inscrição Municipal e ou CNPJ.

As pequenas causas são as que o valor reclamado não ultrapasse de 40 vezes o salário-mínimo. Se for maior, cabe o pleito, mas no limite. Até 20 salários mínimos não é obrigatória a presença do Advogado; além desse quantum, sim. Os Juízes de Pequenas Causas não podem julgar as lides trabalhistas, as de acidente do trabalho, de família, (alimentos, separações, etc) – crianças e adolescentes, heranças, falências, nem postulações em desfavor do Estado e Empresas Públicas. As audiências geralmente são em horário noturno e os julgamentos primam pela rapidez e simplicidade. O acesso à Justiça recebe mais um significativo avanço, favorecendo, agora, os microempresários nas soluções de causas simples.

6. AC 70002019966 – TJRS, 10ª Câmara Cível, julgado em 05.04.2001.

7. Acesso à Justiça, tradução: Ministra Ellen Gracie Northfleet, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1988, pp. 46/47.

8. AC nº 70001133503, Rel. Des. Sergio Pilla da Silva, 29/06/2000.

9. A Garantia do Contraditório , Revista Forense, vol 346, SEPARATA.

10. AI 70001864321, TJRS, 10ª Câmara Cível, julgado em 15.02.2001.

11. AI 598 435 097, Rel. Des. Paulo A Kretzmann, julgado em

17.12.1988.

12. oportuna decisão proferida no Resp. nº 200.597/RJ, julgada pela 4ª Turma do STJ, em 18.05.99, Relator o festejado Ministro gaúcho Ruy Rosado de Aguiar, publicado no DJU de 28.06.99, p. 00121.

13. AI 70001970946, TJRS, 5ª Câmara Cível, Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha, julgado em 15.02.2001

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!