Consolidação das crises

'MPs geram crises se não forem editadas em caráter de urgência'.

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10 de julho de 2001, 14h40

A este humilde cultor das letras jurídicas quer parecer que, desde o primeiro be-a-bá consubstanciado nas mais rudimentares cartilhas jurídicas, tem-se por Medidas Provisórias, como a própria análise de seu étimo denuncia, as providências de natureza transitória que têm por objeto a regulação temporária de fatos relevantes que, nos termos do que se depreende do art. 62 da Constituição Federal, reclamem acautelamento urgente.

Medida Provisória é, na lição da melhor doutrina, a norma editada pelo Presidente da República no exercício de competência constitucional que lhe é conferida. Tem força de lei e encontra-se no mesmo escalão hierárquico da lei ordinária. Por tratar-se de uma delegação de competência legislativa, tem caráter excepcional e sua edição, nos parâmetros estabelecidos pela Carta Magna, é condicionada a caso de relevância e urgência.

A exigência Constitucional de relevância e urgência denota que a utilização de Medida Provisória é uma atitude extremada, que deve ser levada a efeito em face de situações limítrofes, sobretudo diante do conectivo “e”, que elucida a necessidade de cumulação das duas características. Ser relevante é medida de algo importante, de algo que, interagindo com o conceito de urgência, abruptamente interrompe os limites do razoável, promovendo o advento de um desfecho incontrolável.

Dessa forma, é imanente ao contexto editorial das Medidas Provisórias que, se estas não forem editadas no fulgor da ocorrência dos fatos, ocorra uma crise sistêmica e institucional desencadeada pela inação legislativa do sacrossanto Poder Executivo.

Inobstante o perfil das crises denote sempre relativa transitoriedade, no Brasil conseguimos o ineditismo de promover a consolidação da crise como algo estável, que não está sujeito, como deveria, a uma quebra de ordem para que haja o advento de uma nova ordem que supostamente trouxesse redenção aos tão sofridos brasileiros, parias concebidos promiscuamente no seio dos mais legítimos interesses nefastos.

Essa, a idéia de estabilidade da crise, parece ser a tácita exposição de motivos que inspira o Executivo a credenciar suas atribuições legislativas nas barbas do nosso malfadado Poder Legispassivo e, pior, que encontra apoio em quem, tal qual os donos da bola, auto intitulam-se democratas, mas seguem a procissão exaltando medidas autoritárias.

Supor que os requisitos de urgência e relevância são observados pelo governo na edição de MPs importaria admitir que o país vive em constante estado emergencial. Significaria reconhecer, por via reflexa, que a exceção aqui é o estado de normalidade. Chegando ao extremo, levar-nos-ia a concluir que, em pleno século XXI ainda vivemos à beira do estado de natureza sugerido por Thomas Hobbes como o estágio de convivência social preexistente à vida em comunidade e caracterizado como um estado de desordem absoluta que acarreta uma permanente “guerra de todos contra todos”, na expressão clássica do pai do Absolutismo em sua obra “Leviatã”.

Seguindo a lógica hobbesiana, a superação desse estado de natureza já poderia ser considerada uma conquista inigualável, motivo pelo qual a vida em sociedade sob a égide de uma autoridade deveria ser preservada a qualquer custo. Parodiando Chico Buarque de Holanda, trocando em miúdos, sob o pretexto de não evoluirmos, retrocedendo àquele suposto estágio de convivência pobre, grosseiro, animalizado e caótico, deveríamos aceitar como legítimo e obedecer sem discussão qualquer ato do governante, ainda que moralmente condenável ou manifestamente ilegal. Convenhamos, um completo absurdo num Estado Democrático de Direito.

Fernando Henrique Cardoso editou nada mais nada menos que 5.076 Medidas Provisórias em 2.190 dias no poder. Uma média superior a 2 MP´s por dia. Ressalte-se que nesses 2.190 dias estão incluídos feriados e finais de semana, quando MP´s não são editadas, pelo menos por enquanto.

Olhando aquele velho Diploma de Bacharel em Direito, uma melancolia mórbida e até então inconfessada me faz sentir que os ventos lúgubres do fenômeno jurídico sopram hoje em direção ao desserviço da Justiça e aquela representação cartular, de há muito emoldurada, expressão dos ideais da Academia, que nos esmerava com o verdadeiro espírito das leis, agora traz consigo uma feição meramente folclórica e apenas caricata.

O Direito instrumentalizado como mantenedor das mazelas governamentais, a serviço da mesquinhez e do ludíbrio, dos déspotas contemporâneos que incensam a própria imagem, dos que enfeitam a vida com buquês de impropérios, dos que cultuam os poderosos e preferem revestir-se incontestes da ideologia do consenso, não é o verdadeiro Direito.

A só intenção de editar a tão afamada MP do Apagão, nos esdrúxulos termos em que fora concebida, atentando contra a Ordem Jurídica estabelecida, concede uma panorâmica do apagão que ora incide não apenas na nossa vivenda quotidiana comezinha, mas, sobretudo sobre os resquícios de racionalidade do Poder Executivo.

Para nós, súditos que vivemos sob a égide de uma falaciosa ditadura constitucional do Rei Sol Tupiniquim, resta apenas rezarmos para afastar as malquerenças, valarmo-nos do oráculo e esperar, quiçá, um novo fiat lux… Rezemos todos!

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