Criança torturada

Conheça a decisão baseada na Lei da Tortura para condenar babá

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8 de julho de 2001, 18h43

A Lei da Tortura pode ser usada contra pessoas que violentam a criança fisicamente e psicologicamente. O entendimento é do juiz Mário Henrique Mazza, ao condenar uma babá do Rio de Janeiro a quatro anos de prisão por ter batido, violentamente, em uma criança de apenas dois anos de idade para castigá-la. O caso teve repercussão no país, depois que a babá foi flagrada por câmeras escondidas pelos pais da criança na residência.

A agressão gravada aconteceu durante uma das refeições da criança, que não queria comer. A babá surrou-a com tapas violentos na cabeça, no rosto e nos pés, demonstrando irritação. O fato acontecia freqüentemente, já que depois de sua contratação a criança passou a ter comportamentos incompatíveis com a idade como choro contido e pavor, segundo o processo.

De acordo com o juiz, a babá agredia a criança por estar preocupada com seus próprios interesses. “Na sua mente e limitada acepção, caso a criança não comesse e não engordasse, certamente seria repreendida pelos patrões, pais da vítima”, disse.

Veja a sentença baseada na lei da tortura.

11ª Vara Criminal da Capital/ RJ

Autor: Mário Henrique Mazza – Juiz/ RJ

11ª VARA CRIMINAL DA CAPITAL

Processo n.º 2000.001.082324-3

Ré: A. R. F. ou A.R. F.

S E N T ENÇA

Vistos, etc…

O Ministério Público, representado pelo Promotor de Justiça oficiante

neste juízo, ofertou denúncia em face de A.R.F., imputando-lhe a prática da seguinte conduta, cf. fls. 22/25:

“No dia 08 de junho de 2000, em horário ainda não precisado, no interior da residência situada na estrada Velha da Pavuna, nº 4.441, bloco 06, apto. 106 – Inhaúma, nesta cidade, a denunciada, livre e conscientemente, submeteu o menor V. J. H. O.S., de apenas dois anos de idade, o qual estava sob seu poder e autoridade, a intenso sofrimento físico e mental, vez que desferiu violentos tapas em seu rosto e pernas, como forma de aplicar-lhe castigo pessoal e medida de caráter preventivo.

Lesões leves no corpo da vítima, provocadas pelas agressões da denunciada, foram constatadas no auto de exame médico-legal acostado às fls. 17. Consta na inquisa, que no período compreendido entre fevereiro e junho do corrente ano, sempre no interior da casa da vítima, a denunciada repetia o procedimento acima referido contra o menor, provocando-lhe, assim, intenso sofrimento físico e mental.

Há que se ressaltar, que a criança passou a apresentar alterações em seu comportamento, quais sejam, agressividade e sentimentos de pavor, especialmente com relação a denunciada, com quem era obrigada a conviver praticamente o dia inteiro, enquanto seus pais trabalhavam, daí advindo suas perturbações psíquicas.

O espancamento, flagrado por uma câmera de vídeo instalada pelos pais da criança, ocorreu durante uma das refeições do menino e mostra a denunciada agredindo-o acintosamente na cabeça, no rosto e nos pés, irritada porque ele não queria comer, supondo a mesma, perversamente, que aquele procedimento poderia corrigi-lo.

Conforme demonstra a gravação contida na fita de vídeo anexada aos autos, a denunciada agiu de forma covarde, munida do espírito de malvadez ao espancar gratuitamente e reiteradamente uma indefesa criança de tenra idade, na própria casa dos pais, cuja confiança não hesitou em trair, protagonizando, assim, cenas de crueldade.

Ao final, pediu a condenação da ré, enquadrando seu atuar no tipo previsto no art. 1º, inciso II e §4º, da Lei 9455/97. Foi recebida a denúncia pela decisão de fls. 26. A exordial foi instruída com o inquérito policial nº 377/2000, da 24 ª DP, às fls. 02-B/20.

Auto de exame de corpo de delito em fls. 17.

A ré foi interrogada às fls. 31/32, tendo apresentado defesa prévia às fls. 50. Foi decretada a prisão da ré na assentada de fls. 39

FAC da ré em fls. 135/136, sem anotações. As testemunhas R., M. A. e E., indicadas na denúncia foram ouvidas às fls. 40/44. As testemunhas V., L., R. e M. e J., indicadas pela defesa, foram ouvidas em fls.72/76.

Foram ouvidas quatro testemunhas do Juízo, conforme termos de depoimentos acostados em fls. 77/81. Decisão instaurando incidente de sanidade mental em fls. 71. Laudo de exame de fita de vídeo em fls. 92/97. Auto de exame de psiquiatria em fls. 156/157. Em alegações finais, o Ministério Público opinou pela condenação da ré nos termos da denúncia (fls. 159/162) A defesa, por sua vez, requereu a absolvição da ré (fls. 164/166).

É o relatório. Passo a decidir:

O Ministério Público acusa a ré de ter praticado crime de tortura, tipificado na Lei n º 9455/97, contra uma criança de apenas dois anos de idade, a qual estava sob sua guarda e autoridade.

Os fatos podem ser assim resumidos: a ré era babá da vítima e ficava sozinha com ela durante quase todo o dia, já que os pais saiam cedo para o trabalho. Poucos meses após a contratação da ré, a vítima passou a apresentar alterações em seu comportamento, absolutamente incompatíveis com a idade, o que despertou desconfiança nos pais, levando-os a instalar uma micro-câmara na sala.


A ré, sem nada saber, acabou sendo filmada quando alimentava a vítima, oportunidade em que também a agrediu diversas vezes na cabeça, no rosto e nos pés, irritada porque a criança recusava-se a comer. É preciso desde logo dizer que em nenhum momento neste processo discutiu-se a autoria do crime, que, aliás, é admitida pela própria ré no interrogatório de fls. 31/32. Ademais, as imagens não deixam qualquer dúvida quanto a isso, pois mostram a ré, repetidas vezes, agredindo fisicamente a pequena vítima e nela causando as lesões leves apontadas no AECD de fls. 17.

A autoria e a materialidade são, portanto, questões incontroversas, constatadas de plano, e que desmerecem, por isso, maiores considerações. A dúvida que poderia surgir, e que exige uma detida análise, é a seguinte: a conduta da ré realmente se amolda ao art. 1o, inciso II, da Lei de Tortura, ou caracterizaria o crime de maus tratos, previsto no art. 136 do Código Penal? A indagação, neste caso, não é de fácil resposta e dependerá da interpretação subjetiva que cada um der ao fato, tanto que o Ministério Público inicialmente ofereceu denúncia imputando maus tratos (fls. 02/02A) e posteriormente retificou-a, imputando o delito de tortura (fls. 22/25).

Pesquisando o assunto na doutrina, ainda incipiente, vez que a lei é de abril de 1997, conclui-se que a objetividade jurídica em ambos os delitos é a mesma, ou seja, a vida e a saúde humanas. A ação física também é a mesma: maltratar, impor sofrimento, judiar. Outrossim, tanto na tortura quanto nos maus tratos, as conseqüências podem ser idênticas, isto é, lesão ou morte, havendo previsão diferenciada de penas para cada um desses resultados. Logo, também não são as conseqüências do fato e nem a intensidade ou crueldade da violência fatores de diferenciação. Além disso, um e outro são crimes próprios, só podendo ser sujeito ativo a pessoa que exerce a guarda, a vigilância ou autoridade sobre outra (sujeito passivo).

A diferença, como bem escreveu Ana Paula Nogueira Franco (in Boletim IBCCrim n º 62 – Janeiro/98) está no dolo do agente: “(…) no crime de maus tratos o agente abusa de seu ius corrigendi para fim de educação, ensino tratamento ou custódia. Diferentemente no crime de tortura, no qual o agente pratica a conduta como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.”

Nessa esteira, há muito nos ensinou Nelson Hungria, em sua obra clássica “Comentários ao Código Penal”, que no crime de maus tratos a ação é inicialmente lícita, pois tem por fim educar, corrigir, disciplinar, tornando-se ilícita apenas e tão somente quando o sujeito ativo abusa dos meios de educação, correção e disciplina. Em outras palavras, a lei em momento algum pune ou impede o ius corrigendi, mas apenas o seu exercício imoderado, o excesso. O dolo, na hipótese, é de perigo. Já na tortura, não há qualquer finalidade educativa ou corretiva. O dolo, ao contrário, é de dano, consistente, nos termos da lei, em impor um castigo pessoal, através da submissão do sujeito passivo a intenso sofrimento físico ou mental.

No mesmo sentido, a jurisprudência que destaco abaixo não poderia ser mais precisa:

“A questão dos maus tratos e da tortura deve ser resolvida perquirindo-se o elemento volitivo. Se o que motivou o agente foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido desumano e cruel, o crime é de maus tratos. Se a conduta não tem outro móvel senão o de fazer sofrer, por prazer, ódio ou qualquer outro sentimento vil, então pode ela ser considerada tortura.” (RT 699/308, TJSP, Rel. Des. Canguçu de Almeida).

Estabelecidas as diferenças, e após ter visto mais de uma dezena de vezes a fita de vídeo transcrita no laudo de fls. 92/97, fiquei convencido de que a hipótese é efetivamente de tortura. Com efeito, o que se observa nas imagens é a ré castigando a criança, batendo nela com raiva, sem qualquer fim educativo ou corretivo. Aliás, a própria ré esclarece às fls. 31, em juízo, o motivo de sua conduta “(…) resolveu bater em Vicente para que ele comesse. (…) que os pais de Vicente sempre diziam que ele tinha que comer e engordar e essa era a preocupação da interroganda; que então ficava nervosa e agredia Vicente”.

É, pois, sem dificuldade, que se conclui que a ré estava preocupada, em verdade, com seus próprios interesses. Na sua mente e na sua limitada acepção, caso Vicente não comesse e não engordasse, certamente seria repreendida pelos patrões, pais da vítima. Como esta recusava a comida, ela perdia o controle, ficava com raiva e a agredia. Esta é, objetivamente, a interpretação que entendo mais adequada e consentânea com a prova.

Ao revés, não haveria qualquer razão para a ré ser tão cruel. A raiva, como se vê na fita, está mais do que patente na expressão e nos castigos que ela impôs a vítima, não sendo possível extrair nenhum móvel educativo ou de correção naquelas condutas. E nem se argumente que a ré estava imbuída de bons sentimentos, mas que, por ser rude e inculta, acabou excedendo-se na correção. Embora tenha inicialmente ventilado tal possibilidade, afastei-a após mais uma análise das provas e do próprio bom senso, acabando por concluir pelo que foi acima exposto.


Ademais, seria absolutamente desnecessário que alguém tivesse dito para a ré, por mais limitada e humilde que seja, que não se deve agir com tamanha covardia diante de uma criança de 2 anos de idade, que sequer tinha aprendido a falar e a andar. Essas noções elementares de civilidade estão ínsitas na própria natureza das pessoas, pobres e ricas, esclarecidas ou não.

Além disso, a prova dos autos demonstra que as imagens não retratam uma atitude isolada da ré, mas, ao contrário, que a vítima já vinha sendo castigada anteriormente, apresentando comportamentos incompatíveis com a idade (vide depoimentos de fls. 40/44). A maior evidência, a meu aviso, está em um choro contido da vítima, após ter levado um violento tapa na cara (vide imagens – aprox. 30 min da fita), o que é bastante incomum para uma criança daquela idade, como bem ressaltou o médico psiquiatra Roberto Santoro, nas declarações prestadas às fls. 40: “(…) que tal “choro” engolido é completamente estranho a uma criança de 2 anos de idade, o que demonstra que Vicente deveria estar sendo submetido a uma situação de terror há algum tempo”.

Por fim, não posso deixar de sublinhar, sem qualquer paixão, que as já tão mencionadas imagens repugnam, repelem e revoltam qualquer pessoa de bem, traduzindo um ato de covardia que há tempos não assistia. Sabemos, infelizmente, que fatos como esses se repetem habitualmente, sempre com irreparáveis conseqüências na formação da personalidade da criança. Como disse Manzini, citado por Nelson Hungria nos comentários ao art. 136 do CP, a violência, aplicada em tais circunstâncias, “(…) ocasiona uma verdadeira ruína psíquica (e, às vezes, também física), da qual bem poucos podem refazer-se depois de libertos de tão bestial e furibunda disciplina”.

Esperamos, assim, não só mais consciência por parte das pessoas e a total recuperação do pequeno Vicente, mas sobretudo uma eficiência maior do Estado no cumprimento do disposto no art. 227 da Constituição Federal, até mesmo para evitar que continuemos a integrar o lamentável ranking de países onde os direitos humanos são mais acintosamente violados.

Conclusão

Posto isto, JULGO PROCEDENTE a pretensão punitiva estatal para CONDENAR a ré A . R. F. ou ªA. R.F. (RG n ºXXXXXXXX) como incursa nas sanções do art. 1o., inciso II, c/c o parágrafo 4 º do mesmo artigo, da Lei n º 9455/97.

Atento as regras do art. 59 do CP, passo a dosar a pena: A ré não possui antecedentes criminais, consoante demonstra a FAC de fls. 136/137. O motivo do crime é ordinário ao tipo e está ligado à satisfação de um interesse pessoal, qual seja, o temor que a ré tinha de ser repreendida pelos pais da vítima caso esta não comesse e não engordasse.

A conduta social da ré não foi objeto de apuração, inexistindo qualquer prova que a desabone. Entretanto, a culpabilidade e as conseqüências do crime recomendam, sem qualquer dúvida, que a pena-base seja fixada acima do mínimo. Com efeito, a ré agiu com culpabilidade elevada, de forma covarde e, o que é pior, repetidamente, conforme nos mostra a fita de vídeo transcrita às fls. 92/97. As imagens, como disse anteriormente, são repugnantes e revoltam qualquer pessoa que tenha um mínimo de consciência. São cenas chocantes e que levaram os peritos a consignarem no laudo de fls. 96 que “é possível ouvir os sons produzidos pelas bofetadas e pelos tapas nas pernas e cabeça da criança, demonstrando a violência da ação praticada”.

As conseqüências do crime, por sua vez, foram graves, pois a criança passou a apresentar comportamentos incompatíveis com a idade, tais como agressividade, sono agitado, paralisação no desenvolvimento, rejeição, etc., conforme longamente expuseram o médico Roberto Santoro (fls. 40/41) e a psicóloga Maria Teresa (fls. 80/81). Ademais, há risco de tudo o que aconteceu deixar seqüelas ou traumas na personalidade da criança, o que somente poderá ser avaliado futuramente, conforme também explicou o médico Roberto.

Por tais razões, sopesando todas essas circunstâncias, fixo a pena base em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de reclusão. Considerando que a ré confessou espontaneamente o crime, atenuo a pena base em 6 (seis) meses, com base no art. 65, inciso III, letra “d”, do Código Penal, atingindo 3 (três) anos de reclusão.

Finalmente, tendo em vista que a tortura foi praticada contra criança, aplico a causa de aumento prevista no art. 1 º, par. 4 º, inciso II, da Lei n º 9455/97, sendo que, por ser a vítima muito pequena, com apenas 2 anos de idade, que sequer havia aprendido a falar e a andar, o que certamente torna a conduta mais reprovável, exaspero a reprimenda em 1/3 (um terço), atingindo a pena definitiva de 4 (quatro) anos de reclusão. A pena será cumprida inicialmente (e não integralmente) em regime fechado, conforme expressamente dispõe o art. 1 º, parágrafo 7 º, da Lei n º 9455/97.

A ré respondeu o processo presa, não havendo qualquer fato novo a justificar que seja colocada em liberdade agora que foi condenada, razão por que mantenho a prisão cautelar decretada em fls. 38/39.

Condeno a ré no pagamento das custas e despesas processuais, nos termos do art. 804 do CPP. Façam-se as devidas anotações e comunicações de praxe. Com o trânsito em julgado, lance-se o nome da ré no rol dos culpados e expeça-se carta de sentença à VEP.

P.R.I.

Rio de Janeiro, 11 de maio de 2001

MARIO HENRIQUE MAZZA

Juiz de Direito

A sentença também está publicada no site Direito Criminal

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