Quebra de sigilo

Quebra de sigilo bancário viola direito constitucional

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19 de fevereiro de 2001, 0h00

A questão envolvendo o sigilo bancário das pessoas físicas e jurídicas e as suas regras constitucionais e infraconstitucionais é um dos temas que mais tem gerado dúvidas em nosso ordenamento jurídico.

Recentemente, esse debate ganhou novos contornos em virtude do artigo 6º, da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, que possibilita a quebra de sigilo bancário pelas autoridades e agentes fiscais da União Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios, sem a necessidade de autorização judicial.

É necessário analisar a evolução do sigilo bancário, sua repercussão no direito interno de outros países e o tratamento dado pelo constituinte de 1988, a fim de esclarecer se a norma prevista no artigo 6º da Lei Complementar nº 105/2001 fere ou não os preceitos de nossa Constituição da República.

A evolução do sigilo bancário

Devido à evolução da sociedade e de suas relações econômicas, os indivíduos passaram a negociar diretamente com instituições financeiras, a fim de que estas resguardassem informações acerca de seus negócios e da sua vida privada.

Pode-se afirmar, através de tal assertiva, que o sigilo bancário é considerado pela doutrina e jurisprudência pátria como parte da vida privada da pessoa física ou jurídica. Portanto, deve ser protegido pelas Constituições dos Estados Soberanos, fazendo parte do rol dos direitos e garantias fundamentais da pessoa.

Desta forma o sigilo bancário tem a sua origem no dever de sigilo funcional, pois as informações prestadas a determinadas instituições financeiras, em razão de ofício, devem ser protegidas.

Aliás, adverte CELSO BASTOS que “não é possível atender-se tal proteção (intimidade) com a simultânea vigilância exercida sobre a conta bancária ou as despesas efetuadas com cartões de crédito pelo cidadão”, pois “a doação feita a um partido político ou a uma seita religiosa (…) poderia ser identificada pelos órgãos fazendários que estariam desvendando uma vontade secreta do benemérito”, e continua sua exposição dizendo que “do atraso de pagamento da fatura de um cartão de crédito, ou de uma duplicata por dificuldades financeiras, ou da existência de saldo bancário desfavorável poderia ter ciência a União se houvesse a quebra do sigilo bancário e creditício, implicando, senão a comunicação a outros órgãos ou a adoção de medidas, ao menos o conhecimento de fatos relevantes e embaraçosos relativos à intimidade.”

Do mesmo modo, ALEXANDRE DE MORAES, esclarece que “com relação a esta necessidade de proteção à privacidade humana, não podemos deixar de considerar que as informações fiscais e bancárias, sejam as constantes nas próprias instituições financeiras, sejam as constantes na Receita Federal ou organismos congêneres do Poder Público, constituem parte da vida privada da pessoa física ou jurídica.”

Ressalte-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada pelo Brasil em 10.12.1948, prevê em seu artigo XII que “ninguém será sujeito às interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua hora e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferência ou ataques”. Esta também é a redação do artigo 11, item “2” da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 25.09.1992.

O Constituinte de 1988, previu a inviolabilidade do sigilo de dados (art. 5º, XII), que complementa a previsão ao direito à intimidade e vida privada (art. 5º, X), tratando-se, portanto, de direito fundamental, erigido pela Magna Carta como cláusula pétrea, a qual não pode ser abolida ou limitada nem mesmo por Emenda Constitucional, à luz do artigo 60, § 4º, inc. IV da Constituição Federal.

Desta forma, é bastante polêmico, no ponto de vista jurídico, o artigo 6º da Lei Complementar nº 105/2001, que prevê a possibilidade dos agentes fiscais, sem autorização judicial, quebrarem o sigilo bancário das pessoas jurídicas e físicas. Entretanto, antes de opinarmos a respeito deste tema, faz-se necessário mencionarmos como o sigilo bancário é tratado nos ordenamentos jurídicos de outros países da Europa e da América, para, então, analisarmos o nosso direito pátrio.

A quebra do sigilo bancário está prevista na legislação interna de vários Estados Soberanos. Entretanto, existem em cada país diferenças importantes quanto ao caminho a ser percorrido para acessar os dados das pessoas jurídicas e físicas.

Inicialmente, saliente-se que desde 1970 há nos Estados Unidos uma norma legal que dá poderes à Secretaria do Tesouro (equivalente ao Ministério da Fazenda) para ter acesso às informações bancárias sem necessitar de autorização judicial. O exame de contas bancárias, empréstimos e investimentos é utilizado pela IRS (Internal Revenue Service, a Receita Federal dos EUA) para investigar possíveis sonegadores. Para garantir aos indivíduos uma salvaguarda contra eventuais abusos de poder da Receita norte-americana, o governo dispõe de um órgão especial, qual seja, a Rede de Combate a Crimes Financeiros.


De outra sorte, desde 1989 existe no Canadá uma legislação de combate à lavagem de direito e crimes financeiros, na qual prevê poderes especiais para ter-se acesso às contas bancárias e para congelar bens de origem suspeita. Ressalte-se que tal norma legal, pelo seu rigorismo, fez com que o Canadá deixasse de configurar como um dos principais centros de lavagem de dinheiro proveniente de tráfico de drogas.

Na Alemanha o sigilo bancário é garantido desde o século XIX, quando os bancos da então denominada Prússia davam este direito aos seus clientes. Após a Segunda Guerra Mundial, as leis alemãs foram flexibilizadas, de modo a propiciar acesso mais fácil aos dados bancários da pessoa. Atualmente, além do Poder Judiciário, a Procuradoria e a Receita Federal Alemã têm poderes para a quebra de sigilo bancário para apuração de crimes fiscais.

Considerada mundialmente como um dos principais destinos de recursos de procedência duvidosa, a Suíça passou na última década por um processo de flexibilização de suas rígidas regras de proteção ao sigilo bancário. Hoje, governos estrangeiros podem ingressar com ações na justiça suíça pedindo a quebra de sigilo de contas suspeitas de abrigar recursos públicos desviados. São exemplos dessa mudança os processos movidos pelo governo das Filipinas, para abrir contas do ex-ditador Ferdinand Marcos, e a do Congo, com relação ao ex-presidente Mobutu Sese Seko. Recentemente, o governo brasileiro, aproveitando a essa flexibilização do governo suíço, pediu a quebra do sigilo de uma conta do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, em Genebra.

Na Itália, o acesso aos dados bancários é imediato. O país simplesmente aboliu o sigilo em 1982, propiciando, inclusive, obter-se informações em processos envolvendo os grandes chefes da máfia italiana.

No Reino Unido, a lei permite quebrar-se o sigilo bancário de contribuintes suspeitos de irregularidades. Isso faz parte da nova legislação fiscal britânica, em vigor desde 1997 e atualizada em 2000. Por exemplo, advogados, contadores e auditores são obrigados a denunciar seus clientes se houver suspeita de irregularidade fiscal. Se não fizerem isso, podem ter a licença profissional suspensa pelo governo.

Ademais, as instituições financeiras do Reino Unido também estão obrigadas a informar à Receita Federal a identidade de novos correntistas que abriram contas com altas somas de dinheiro de origem duvidosas.

Finalmente, o sigilo bancário na Argentina é assegurado pelas normas do banco central local. As entidades financeiras, em princípio, só podem revelar dados sobre seus clientes sob ordem judicial. Assim, para obter judicialmente a autorização para quebra de sigilo bancário de uma pessoa física ou jurídica, a Direção Geral de Impostos, equivalente argentina da Receita Federal brasileira, necessita demonstrar de forma fundamentada os indícios de irregularidades fiscais.

Do sigilo bancário à luz da Constituição Federal de 1988

Conforme salientado acima, a Constituição Federal de 1988 prevê a inviolabilidade do sigilo de dados (art. 5º, XII) e o direito à intimidade e vida privada (art. 5º, X), tratando-se, portanto, de direitos e garantias individuais da pessoa (física ou jurídica), os quais não podem ser abolidos ou limitados nem mesmo por Emenda Constitucional, a luz do artigo 60, § 4º, inc. IV da Constituição Federal. Para maioria da doutrina, o sigilo bancário encontra guarida neste dois dispositivos constitucionais, ora mencionados.

Recentemente, foi publicada a Lei Complementar nº 105/2001, a qual determina a quebra de sigilo bancário pelos agentes administrativos, sem que haja necessidade de autorização judicial.

A fim de regulamentar o aludido dispositivo legal, o governo federal publicou o Decreto nº 3724/2001, operacionalizando a quebra do sigilo bancário por parte dos agentes fiscais, definindo que tal providência somente será possível quando houver procedimento de fiscalização em curso e desde que ocorra no caso concreto uma das onze hipóteses em que a verificação bancária é considerada indispensável pela autoridade competente.

Primeiramente, no que se refere à inviolabilidade do sigilo bancário da pessoa (física ou jurídica) e o seu status de cláusula pétrea, cumpre salientar que tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátria têm entendido que nenhuma liberdade pública é absoluta, razão pela qual haverá casos em que entrarão em conflito dois ou mais direitos fundamentais.

Para solucionar esse choque entre princípios constitucionais, entra em ação o denominado princípio da proporcionalidade, advindo do direito alemão (verhaltnismassigkeitsprinzip), o qual estipula que, havendo dois princípios constitucionais em jogo, deve-se colocá-los em uma imaginária balança, a fim de sacrificar aquele que seja de menor relevância social.


No caso em tela, estamos justamente diante desse conflito de normas constitucionais: de um lado o direito individual ao sigilo bancário, e do outro lado, o interesse público que é representado pela pretensão do Fisco em averiguar eventual sonegação ou crime fiscal.

Deve-se, portanto, sopesar esses dois direitos, para ver qual dos dois deverá prevalecer no caso concreto.

De plano, ressalte-se que o tema em voga não é novo, havendo vários arestos provenientes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, os quais definem as regras a serem seguidas para a quebra de sigilo bancário à luz da Constituição Federal de 1988.

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou que é legítima a quebra do sigilo bancário quando há interesse público relevante, como o da investigação fundada em suspeita razoável de infração penal, desde que ordenada pelo Poder Judiciário.

Nessa linha de raciocínio, CELSO BASTOS esclarece que “a quebra de sigilo bancário só é admitida quando baseada em razões fundamentadas, onde há o interesse público relevante, como o da investigação criminal ou instrução processual penal ou em virtude da excepcionalidade do motivo, desde que mediante a autorização judicial”.

No mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “a ordem jurídica autoriza a quebra do sigilo bancário, em situações excepcionais. Implicando, entretanto, na restrição do direito à privacidade do cidadão, garantida pelo princípio constitucional, é imprescindível demonstrar a necessidade das informações solicitadas, com o estrito cumprimento das condições legais autorizadoras.”

E quem tem a legitimidade para realizar a quebra do sigilo bancário? Segundo o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal, bem antes do advento da Lei Complementar nº 105/2001, pode haver a quebra de sigilo bancário em duas hipóteses: em Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e por ordem judicial, desde que devidamente fundamentadas as duas situações excepcionais.

Nestes termos, o artigo 6º da Lei Complementar nº 105/2001, ao estabelecer a quebra de sigilo bancário sem autorização judicial, não encontra guarida no texto constitucional, além de ir de encontro com o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal, razão pela qual não pode tal dispositivo legal ser admitido em nosso ordenamento jurídico, sob pena de violar o artigo 5º, X e XII, CF.

Conclusão

A quebra do sigilo bancário da pessoa (física ou jurídica), malgrado ser um dos direitos individuais previstos na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (1948), a tendência mundial é a de sua flexibilização, uma vez que tais garantias estão servindo de apoio para sonegação fiscal e lavagem de dinheiro proveniente de tráfico de entorpecentes. Tanto é verdade que o Canadá e a Suíça, países até então conhecidos pelas dificuldades legais em quebrar-se o sigilo bancário das pessoas, modificaram suas leis internas, a fim de averiguar se o dinheiro que ingressa em suas fronteiras é de origem lícita.

No Brasil, entretanto, o sigilo bancário está previsto no artigo 5º da Constituição Federal (incisos X e XII), sendo, destarte, direito e garantia fundamental da pessoa humana.

Não obstante, conforme salientado no tópico anterior, a quebra do sigilo bancário é admitida em nossa jurisprudência em casos excepcionais, onde a própria Constituição Federal prevê que em certas ocasiões o direito à privacidade e sigilo de dados podem vir a ser aniquilados para garantir-se um direito maior, que é o interesse coletivo. Para tanto, a jurisprudência da nossa mais alta Corte de Justiça sedimentou o entendimento de que pode haver a devassa fiscal e bancária em dois casos excepcionais: a) através de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e b) por ordem judicial, desde que devidamente fundamentadas as duas situações.

Não obstante, foi publicada a Lei Complementar nº 105/2001, a qual prevê, em seu artigo 6º, a quebra de sigilo bancário por parte das Autoridades Administrativas, sem que haja necessidade de autorização judicial.

Entretanto, a Lei Complementar nº 105/2001 somente seria constitucional se estabelecesse a quebra de sigilo bancário mediante autorização judicial, sendo que tal regra somente valeria para os casos de apuração de crimes fiscais e não em situações envolvendo processos administrativos visando apurar créditos tributários em favor da Fazenda Pública. Isto porque, aplicando-se o princípio da proporcionalidade, e colocando tais direitos em observação, significa afirmar que o sigilo bancário somente deve ser aniquilado para a apuração de crimes, pois este último se trata de interesse público relevante maior que o direito de privacidade da pessoa humana.

Convém destacar que não convence a retórica governista de que a quebra do sigilo bancário será realizada com total parcimônia e responsabilidade, à luz das regras estabelecidas no Decreto nº 3724/2001, não tendo tal regulamentação o condão de constitucionalizar o artigo 6º da Lei Complementar nº 105/2001.

Deve-se deixar claro que está sedimentado em nosso ordenamento jurídico que o sigilo bancário só devem ser abertos por decisão judicial ou nos casos (dentro de limites) em que outros órgãos são, por menção expressa da Constituição Federal, equiparados ao Judiciário, como é o caso das Comissões Parlamentares de Inquérito (art. 58, § 3º, CF).

Ressalte-se que a Constituição Federal, em nenhum de seus artigos, dá à Secretaria da Receita Federal o status de órgão equiparado ao Poder Judiciário, razão pela qual é totalmente desarrazoável a quebra de sigilo bancário sem a interferência de um juiz ou Tribunal, da forma que está previsto no artigo 6º da Lei Complementar nº 105/2001.

De outra forma, não era necessária a elaboração de lei regulando a quebra de sigilo bancário, uma vez que a Receita Federal já tinha meios de viabilizar o cerco aos supostos sonegadores, através de uma ação conjunta com o Ministério Público o qual, como titular da ação penal pública, pediria em juízo, de forma fundamentada, a abertura do sigilo bancário. Nessa hipótese não há que se aventar em inconstitucionalidade, estando de acordo com a posição atual do Supremo Tribunal Federal sobre o tema sigilo bancário.

Em suma, se o governo pretende moralizar esse país, adotando medidas de impacto visando combater crimes de sonegação fiscal, deve primeiramente respeitar a Constituição Federal, sob pena de colocar-se em patamar ainda mais inferior daqueles que se pretende investigar. Isso porque os sonegadores infringem a lei, sendo que o governo (incluindo-se o Poder Legislativo e Executivo) está desrespeitando a Constituição Federal e os Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil.

Ao menos que o Supremo Tribunal Federal mude radicalmente a sua posição, a qual foi sedimentada por nove dos onze ministros que fazem parte de sua atual composição plenária, a quebra de sigilo bancário sem autorização judicial deve ser declarada inconstitucional, por violar o artigo 5º e X, XII da Constituição Federal.

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