ICMS na conta de luz

Juiz afirma que cálculo de ICMS em conta de luz é ilegal

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6 de fevereiro de 2001, 23h00

A cobrança do ICMS incidente sobre o fornecimento de energia elétrica é equivocada e abusiva porque é estabelecida, ilegalmente. O cálculo é feito com base na soma do valor do fornecimento com o do próprio imposto, o que gera incidência de dupla alíquota.

O entendimento é do juiz Pedro Aurélio Pires Maríngolo, ao julgar, em primeira instância, a ação de um condomínio contra a Eletropaulo e Fazenda do Estado de São Paulo, que pedia restituição do valor pago, desde 1988, época em que o sistema de cálculo passou a vigorar. O juiz condenou a Eletropaulo e Fazenda Estadual a restituir o valor pago pelo condomínio.

Leia a decisão do juiz.

Trata-se de ação, processada pelo rito comum ordinário, ajuizada pelo Condomínio Edifício Athenas Garden em face da Fazenda do Estado de São Paulo e da ELETROPAULO – Eletricidade de São Paulo S/A, objetivando a declaração de inexistência de relação jurídica entre o autor e as requeridas que imponha a exação do ICMS relativo ao consumo de energia elétrica com dupla incidência da alíquota; e a condenação das requeridas na restituição das quantias indevidamente pagas pelo autor, desde a época em que tal sistema de cálculo passou a vigorar (dezembro de 1988) até a data do trânsito em julgado da sentença.

Segundo a inicial, que trouxe documentos, em suma, os autores consomem energia elétrica fornecida pela requerida ELETROPAULO, em operação sobre a qual incide ICMS pelas alíquotas de 12%, 18% ou 25%. Ocorre que, ao invés de calcular o imposto devido, simplesmente, pelo valor total da operação da qual decorra a entrega do produto ao consumidor (base de cálculo prevista no artigo 29 da Lei estadual nº 6.374/89), as rés o calculam, na forma do artigo 33 da Lei nº 6.374/89, com inclusão de seu montante na própria base de cálculo, fazendo com que as alíquotas incidam sobre o valor do fornecimento somado ao valor do imposto, afrontando disposições constitucionais, em especial a do artigo 34 §9º do A.D.C.T. da Constituição Federal de 1988, e princípios constitucionais que vedariam a incidência de imposto sobre imposto, além de disposições do Código Civil e do Código do Consumidor.

Regularmente citada, a ré ELETROPAULO manifestou contestação, juntando documentos e alegando, em suma, ser o autor carecedor da ação (a ELETROPAULO não é parte passiva legítima e nem tem legítimo interesse processual, porque apenas contribuinte de direito do tributo em questão, sujeitando-se às imposições da também requerida Fazenda Estadual), aduzindo, quanto ao mérito, que é legítimo e tradicional em nosso direito o cálculo “por dentro” do ICMS, com seu montante integrando a base de cálculo, tal como já dispunha o artigo 2º §7º do Decreto-Lei nº 406/68 (fls. 20/33).

A Fazenda do Estado de São Paulo, regularmente citada, também manifestou contestação alegando, em suma, preliminar de prescrição qüinqüenal das parcelas e preliminar de carência da ação por ilegitimidade de parte ativa (o autor seria apenas contribuinte de fato, porque contribuinte de direito seria a ELETROPAULO); sustentando, quanto ao mérito, que a conduta fiscal da requerida ELETROPAULO é perfeitamente legal, porque conforme o artigo 14 do Convênio ICM nº 66/88 e o artigo 33 da Lei nº 6374/89, cujas disposições não colidem com o disposto no artigo 29 dessa lei, de maneira que a base de cálculo do ICMS corresponde ao total da soma do valor de consumo da energia elétrica com o valor do próprio imposto devido, existindo vários precedentes judiciais sobre o tema.

O autor manifestou-se sobre as contestações e nenhuma das partes se interessou por dilação probatória.

Relatados no essencial, passo a decidir:

1. A hipótese comporta julgamento antecipado, porquanto apenas de direito a controvérsia, provados documentalmente ou não contestados os fatos que dão suporte a lide.

2. Ficam repelidas as preliminares de carência manifestadas pela FESP e pela ELETROPAULO que, além de contribuinte de direito do ICMS incidente nas operações de venda de energia elétrica, também é substituta tributária e responsável pelo seu pagamento (artigo 34 §9º do ADCT da Constituição Federal de 1988), de maneira que também é parte passiva legítima para demanda de consumidor em que se discute a composição da base de cálculo do imposto, com pedido de repetição de quantias excessivamente cobradas cumulado com pedido de observância das regras constitucionais/legais nas cobranças futuras.

3. A prescrição, no caso, alcança apenas as parcelas pagas com excesso antes do qüinqüênio que antecede a propositura da ação (nº 85 da Súmula de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça).

4. A Constituição Federal de 1988 trata do ICMS no artigo 155, inciso II, e no seu parágrafo segundo, cujo inciso I estabelece o caráter “não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”, cabendo à lei complementar federal (inciso XII), entre outras coisas, definir seus contribuintes, dispor sobre a substituição tributária, e disciplinar o regime de compensação.


O parágrafo 9º do artigo 34 do seu ADCT, por outro lado, dispôs sobre a substituição tributária relativa ao ICMS incidente na circulação de energia elétrica, cujo pagamento, desde a produção ou importação até a última operação, passou a ser responsabilidade das empresas distribuidoras, calculado a partir do preço praticado na operação final e recolhido no local (Estado ou Distrito Federal) onde ocorrida essa operação.

Apesar da vigência do Decreto-Lei nº 406, de 31/12/68, cujas disposições a respeito do ICM teriam sido quase que inteiramente recepcionadas pela nova ordem constitucional, os Estados e o Distrito Federal, valendo-se da absurda permissão do parágrafo 8º do artigo 34 do ADCT da CF/88, editaram o Convênio ICM nº 66, de 14/12/88, objetivando a fixação de “normas para regular provisoriamente o ICMS” (na verdade, apenas o novo imposto sobre prestação de serviços cometido aos Estados e DF exigia regulamentação provisória), no qual a substituição tributária na operação de fornecimento de energia elétrica foi tratada no artigo 25, inciso II, e no qual se dispôs, genericamente, sobre a composição da base de cálculo, tal como tratava o DL nº 406/68, determinando-se que “o montante do imposto integra sua própria base de cálculo, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle” (artigo 14).

A Lei estadual paulista nº 6.374, de 01/03/89, que dispõe sobre o ICMS em nosso Estado, também com força de lei complementar federal (artigo 24 §3º da CF/88), repetiu esse enunciado no seu artigo 33, expressando no artigo 29, entretanto, sobre as operações de fornecimento de energia elétrica, que “a base de cálculo do imposto devido pelas empresas distribuidoras de energia elétrica, responsáveis pelo pagamento do imposto relativamente às operações anteriores, na condição de contribuintes substitutos, é o valor da operação da qual decorra a entrega do produto ao consumidor”.

E a recente Lei Complementar nº 87, de 13/09/96, ao afirmar, no artigo 13 §1º – inciso I, que o montante do próprio imposto integra a sua base de cálculo (?) só veio consagrar a inconstitucionalidade da dupla incidência da alíquota respectiva, abuso que, na iniciativa privada, seria classificado como usurário…

5. Essa ligeira digressão sobre diplomas legais foi feita para evidenciar que os sujeitos ativos do ICMS (Estados e DF), no caso, legislando em causa própria, alargaram o conceito de alguns institutos tributários, deformando-os mesmo, com uma violência e voracidade fiscal nunca antes ousada, nem mesmo pelo Congresso Nacional e pelas Assembléias Legislativas ao tempo dos chamados governos militares.

É oportuno, agora, recordar alguns fundamentos do Direito Tributário.

Obrigação Tributária, principal ou acessória, é o vínculo jurídico que une o Fisco ao contribuinte praticante de um fato gerador tributário, cujo objeto é o pagamento de um tributo ou de uma penalidade pecuniária. Feito tal pagamento, extingue-se a obrigação.

Toda obrigação tributária decorre de um fato previsto na lei, e toda lei tributária estrutura-se com a descrição de uma hipótese (previsão circunstanciada de uma situação abstrata), com o enunciado de um mandamento (comando dirigido ao sujeito passivo, no sentido dele dar, fazer ou não fazer alguma coisa imediatamente após a ocorrência fática da hipótese), e com a especificação de uma sanção (penalidade que se aplicará ao sujeito passivo que não obedecer ao comando).

A hipótese de incidência (descrição feita na lei, circunstanciada mas abstrata, das condições para o nascimento da obrigação tributária) não se confunde com o fato gerador, que é a ocorrência concreta, fenomênica, dessa hipótese normativa, geradora da obrigação tributária se enquadrar-se rigorosamente aos termos da lei.

Para facilitar a análise da subsunção do fato à previsão da lei, a doutrina tributária decompõe a hipótese de incidência em aspectos denominados PESSOAL (definição dos sujeitos, ativo e passivo), TEMPORAL (determinação do exato momento em que se considera ocorrido o fato gerador), ESPACIAL (indicação do local em que terá de ocorrer o fato gerador), MATERIAL (o “tipo” tributário, propriamente dito), e QUANTITATIVO (estabelecimento da base de cálculo e da alíquota).

6. A questão controvertida nos autos reside na necessidade de compatibilização dos preceitos do artigo 29 (que praticamente repete o disposto no §9º do artigo 34 do ADCT da CF/88) e do artigo 33 (que repete o disposto no artigo 14 do Convênio ICM nº 66/88), ambos da Lei nº 6374/89.

Não se pode aceitar, sob pena de abalar toda a estrutura sobre a qual se edifica o Direito Tributário, a interpretação defendida pela ré e pela Fazenda Estadual, que implica em fazer incidir a alíquota do imposto sobre o preço da mercadoria comprada somado ao valor do imposto devido.


O fato gerador do ICMS, como regra, ocorre na saída de mercadoria do estabelecimento do contribuinte, e tem esse tributo, como base de cálculo, o valor da operação, sobre o qual incidem alíquotas variadas, que poderão ser seletivas em função da essencialidade das mercadorias, conforme se verifica nas disposições do artigo 24 e seguintes da Lei nº 6.374/89, que usa expressões (valor total da operação, valor lançado no documento de importação, valor da arrematação, valor do respectivo preço, etc.) convergentes para o valor da operação.

E, especificamente quanto a circulação de energia elétrica, afirma-se no §9º do artigo 34 do ADCT da CF/88 que o ICMS se calcula sobre o preço então praticado na operação final, mencionando o artigo 29 da Lei nº 6374/89 que esse cálculo se fará sobre o valor da operação da qual decorra a entrega do produto ao consumidor.

A disposição do artigo 33 da Lei nº 6.374/89 (“o montante do imposto integra sua própria base de cálculo, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”), que repete o disposto no artigo 14 do Convênio nº 66/88 e o disposto no artigo 2º §7º do DL nº 406/68, não é inconstitucional se for interpretado correta e harmonicamente com o disposto no artigo 29 da Lei nº 6.374/89, ao contrário do que sustentam a ELETROPAULO e a Fazenda estadual, porque do confronto de ambos os dispositivos legais decorre a conclusão de que o ICMS não poderá acrescer ao valor do negócio, devendo ser suportado pelo vendedor ou alienante.

Ou seja, sendo o ICMS um mero destaque para fim de controle da escrita fiscal (cálculo “por dentro”), seu valor deve ser retirado do valor da operação sem majorar o negócio jurídico que deu origem a incidência tributária. Sendo custo do vendedor e não do comprador, o valor do ICMS integra a sua própria base, sem afetar o valor da operação, ao contrário do que acontece com o IPI, que é calculado “por fora”.

Qualquer outra inteligência, em especial aquelas sustentadas nas contestações, infringe o sistema tributário gerado pela Constituição Federal de 1988, porquanto, repita-se, em se tratando de energia elétrica, apenas o valor da operação, ou seja, o valor da energia consumida, poderá servir de base de cálculo.

7. Em suma, a forma de cobrança do ICMS incidente sobre o fornecimento de energia elétrica que a ELETROPAULO faz é, mesmo, equivocada e abusiva, porque ilegalmente estabelecida a base de cálculo na soma do valor do fornecimento com o valor do próprio imposto.

E como, induvidosa e incontrover-samente, essa forma equivocada e abusiva de cobrança foi engendrada pela Fazenda Estadual, mal interpretando as normas jurídicas pertinentes, conforme se admitiu nas contestações, procede a demanda contra ambas.

8. Ante o exposto e pelo mais que dos autos consta, julgo procedentes os pedidos do autor, extinto o processo com fundamento no artigo 269 – inciso I do Código de Processo Civil, para declarar que as relações jurídico-tributárias existentes entre as partes, que tornam exigível o ICMS no fornecimento de energia elétrica, têm por base de cálculo apenas o valor da energia consumida, vedada a técnica de cálculo “por dentro”, inclusive nas futuras exações; e para condenar as rés, solidariamente, a restituir para o autor as quantias em dinheiro por ele pagas, porque cobradas pela ré ELETROPAULO, a esse título, de forma ilegal e abusiva, em montante a ser liquidado na forma do artigo 604 do Código de Processo Civil, a partir dos documentos (vias originais das contas de energia elétrica) juntados com a inicial ou com a memória discriminada dos cálculos de liquidação, observada a prescrição qüinqüenal, e que estejam devidamente quitados, corrigidas monetariamente desde as datas dos respectivos desembolsos, e acrescidas de juros moratórios (1% ao mês) contados do trânsito em julgado desta sentença (artigo 167, parágrafo único do Código Tributário Nacional).

Sucumbentes, ficam as rés solida-riamente condenadas, também, no pagamento da taxa judiciária e demais despesas processuais, inclusive honorários advocatícios ora fixados, na forma do §3º do artigo 20 do Código de Processo Civil, em 20% (vinte por cento) do valor total da condenação principal de pagar; tudo corrigido monetariamente conforme a Lei nº 6.899/81 e seu regulamento.

Sujeita-se esta sentença ao duplo grau de jurisdição, de maneira que os autos, decorrido o prazo e independentemente da manifestação de apelação pelas partes, deverão ser remetidos, com nossas homenagens, ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Seção de Direito Público).

P.R.I.C.

São Paulo, 07 de outubro de 1997.

Pedro Aurélio Pires Maríngolo

Juiz de Direito

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