Poder demais

Veja entrevista de Flávio Dino sobre a Reforma do Judiciário

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29 de dezembro de 2001, 8h03

A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) defende a escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal a partir de uma lista elaborada por entidades representativas do Judiciário e não por nomeação feita pelo presidente da República. A afirmação é do presidente da Associação, Flávio Dino, em entrevista ao jornalista Boris Casoy no programa Passando a Limpo, na Rede Record.

O poder exclusivo de indicação dos integrantes da cúpula do Judiciário pelo chefe do Executivo é uma distorção que tem irritado a comunidade jurídica. Nesta entrevista, o titular da Ajufe não se refere ao caso Nelson Jobim, cuja conduta no STF prescinde de explicações. Mas o fenômeno fica explícito na crítica ao sistema que, para ele, compromete o ideal de equilíbrio e fiscalização entre os Poderes, previsto na Constituição. A associação defende uma mudança radical nesses critérios e já está divulgando suas propostas de mudanças.

Flávio Dino também avalia que a Reforma do Judiciário deve trazer avanços para o cotidiano do cidadão se for aprovado o texto elaborado pelo relator do projeto no Senado, senador Bernardo Cabral. Porém ela adiantou que é ilusão achar que o tema se exaure nas mudanças constitucionais, pois ele exige reformulações também de natureza legal, como a reforma dos códigos processuais, para dar certo na prática.

Veja a íntegra da entrevista a Boris Casoy

Como está a Reforma do Judiciário hoje? Sabemos que este é um assunto que fervilha no meio jurídico, mas que ainda está distante do público externo, da população em geral.

Resposta – A discussão sobre a Reforma do Judiciário começou em 1992, quando o deputado Hélio Bicudo apresentou a emenda 96/92, propondo mudanças neste Poder. Mas a emenda tramitou muito lentamente no Congresso, só ganhando maior velocidade a partir de 1999. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, a votação da emenda só foi encerrada em junho de 2000, após oito anos de discussão. No momento, a emenda da Reforma do Judiciário encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Se for aprovada como se encontra hoje, acreditamos que ela deve trazer alguns avanços no que diz respeito aos problemas que cada cidadão vive e vivencia diretamente, diariamente, no seu cotidiano. Quando se fala de segurança pública, de impunidade, na verdade são temas que são correlatos à reforma do Poder Judiciário.

Mas evidentemente, essa dimensão constitucional da Reforma do Judiciário, que já tem essa tramitação, não exaure o tema. Na verdade, essa reforma é uma tarefa permanente, na medida que tratamos do processo de edificação de um dos ramos do Estado e, ao mesmo tempo, ela se desdobrará, necessariamente, em temas de natureza legal e infra-constitucional, com a reforma dos códigos processuais.

Esse aparente desinteresse da população não está ligado à distância que as pessoas têm, da linguagem do Poder Judiciário, que é uma linguagem erudita? E, também, ao fato de o Poder Judiciário ter se distanciado, até pelas dificuldades de acesso e pela demora na realização da Justiça? Ele é visto como um Poder de difícil acesso e que nem sempre consegue fazer a Justiça que as pessoas pretendem que seja feita.

Nós compreendemos isso. Compreendemos que, de fato, a imagem do Poder Judiciário, no Brasil, é essa imagem de distanciamento, é a imagem de assepsia, de neutralidade, aparentemente com uma postura olímpica, diante dos problemas vivenciados por cada cidadão, por cada contribuinte. Mas, na verdade, isso é um perfil que vem em constante superação. Se analisarmos os últimos 20 anos da história do Poder Judiciário no Brasil, vamos encontrar passos efetivos, concretos, de mudança desse perfil de distanciamento social.

Mas ainda os processos são demorados, e ainda as pessoas não acreditam que o seu problema pessoal vai ser resolvido.

É importante compreender que o Judiciário também é Estado, não está imune aos demais problemas que surgem em decorrência da configuração do Estado brasileiro. Mas, se avaliarmos o que vem sendo feito no Judiciário, que há um empenho no sentido de, apesar da escassez imensa dos meios, tentar, pelo menos, que os processos tenham um desfecho ágil, veremos que estamos vivenciando um momento de transição entre essa mitificação, esse distanciamento, esse modelo olímpico e a busca, que vem externamente, da opinião pública. É uma busca dos movimentos sociais, da sociedade civil mas, também, é uma busca dos juízes, no sentido de romper esse paradigma tradicional, de configuração do Judiciário.

Isso está na reforma do Judiciário? Quer dizer, além da reforma da legislação do Código Civil, do Código Penal, dos códigos de processo, essa configuração do Judiciário tem a ver com a falta de velocidade?

Sim, a construção de um Judiciário diferente passa por mudanças constitucionais e também por mudanças legais. O processo que tramita no Senado trará, se aprovado como está, medidas importantes para o cidadão. Por exemplo, uma das dificuldades que temos na Justiça Federal é o fato de a Fazenda Pública – o Governo Federal e suas autarquias – quando litiga com o cidadão ou com uma empresa ter privilégios processuais quando perde o processo. Como prazos em dobro, em quádruplo, e também privilégios referentes à execução da sentença. São privilégios que impedem o imediato cumprimento daquilo que foi decidido.


Ou seja, o cidadão tem que pagar mas, para receber do Governo…

Então, há uma assimetria na relação processual. Se o texto hoje vigente fosse aprovado, esses privilégios processuais deixariam de existir. O sistema de execução contra a Fazenda Pública, contra o Governo, seria outro. Seria possível romper com a lógica segundo a qual cada sentença contra o Governo deve ser submetida a um reexame de um Tribunal, chamado reexame necessário, que hoje existe. Mesmo que o Juiz condene uma autarquia do Governo, como o INSS, a pagar mil reais, dois mil reais, uma quantia de pequeno valor, hoje, ainda, necessariamente, essa sentença teria que ser submetida ao reexame por parte de um Tribunal. São medidas que existem no nosso sistema legal e que acabam conduzindo à morosidade na tramitação dos processos.

Recursos, recursos. Sobe recurso, termina, parece que terminou, tem mais recurso. Os processos não terminam. Isso também vai diminuir com essa reforma?

A questão recursal não é um tema constitucional. Nesse ponto, teríamos a necessidade de complementar a reforma constitucional do Judiciário, que está em fase final,com a reforma nos códigos de processos. E, aí, é importante dizer ao cidadão que existem inúmeros projetos de lei, de iniciativa dos juízes, inclusive, do próprio Judiciário, que procuram romper com essa lógica dessa seqüência interminável de recursos. É como se houvesse uma tentativa de equiparar a Justiça humana à Justiça Divina. Então, para obter-se, supostamente, a melhor decisão, pressupõe-se que a submissão a diferentes instâncias, em seqüência, seria capaz de conduzir a esses resultados. E, daí, erige-se um sistema processual complexo, marcado exatamente por essa cadeia quase interminável de recursos, de modo a, supostamente, atingir-se a melhor decisão. Essa lógica precisa ser rompida, através da mudança do Código de Processo.

Existe uma instituição, que é a chamada súmula vinculante, que permite que o resultado de um processo, igual a outro que já foi julgado, seja aplicado sem que ele chegue às instâncias superiores. Me parece que os juízes são contra. Por quê?

A súmula vinculante é uma falácia como mecanismo de agilização do Judiciário. Ela já existe, e essa é a razão pela qual eu digo que é uma falácia. Não conheço – e eu conheço fisicamente a imensa maioria dos juízes federais do Brasil – juízes que descumpram súmulas, como uma regra. Na verdade, a imensa maioria dos juízes já julga de acordo com as súmulas.

Mas depois cabem os recursos…

Sim, mas isso não é uma questão que parte do Judiciário, é uma questão das partes. Porém, se o Judiciário julga de acordo com uma súmula emanada numa instância superior e, ainda assim, a parte recorre, a conclusão óbvia é que a súmula vinculante em si não vai resolver o problema. Daí porque preconizamos, ao invés da súmula vinculante, a chamada “súmula impeditiva de recursos”, que é diferente. Teria o mesmo efeito, um efeito superior, sem os ônus decorrentes da noção da súmula vinculante. Esta, implica um engessamento das orientações de jurisprudência.

Quer dizer, aí, numa instância inferior seria impeditiva de recursos, para determinadas causas.

Sim, se o juiz julgasse de acordo com essa súmula impeditiva, não caberia recurso contra essa súmula. Então, não haveria o engessamento, porque o juiz preservaria aquilo que é um valor fundamental na democracia, que é a sua independência, a liberdade de convicção e, ao mesmo tempo, haveria o efeito da agilização, decorrente da adoção dessa súmula impeditiva de recursos.

P – A Ajufe defende mudanças nos critérios de indicação ao Supremo Tribunal Federal (STF). Por que e quais são elas?

Defendemos as mudanças porque, pelo critério atual, onde a seleção é exclusiva do presidente da República, podemos chegar no ano que vem a uma situação em que o Executivo terá uma perigosa maioria na casa, podendo indicar cinco dos 11 ministros que compõem a Suprema Corte, e até seis se o novo presidente se reeleger. Para evitar isso, a Ajufe defende a escolha dos ministros a partir de uma lista elaborada por entidades representativas do Judiciário – como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), universidades e associações como a Ajufe e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) – e a distribuição das vagas de acordo com as categorias de origem dos candidatos. Para garantir que advogados, Ministério Público e outras instâncias do meio jurídico também tenham voz na casa. Também defendemos o aumento para três quintos dos votos no Senado para a aprovação do nome indicado. Hoje, basta a maioria simples dos senadores – 50% mais um voto.

O senhor escreveu um livro – “O Auto-Governo e Controle do Judiciário” – que é, exatamente, um livro seu sobre a fiscalização do Judiciário, que é um tema controvertido. O senhor é a favor dessa fiscalização externa do Judiciário?


Quando fui ao Senado, em audiência pública sobre o processo de discussão da Reforma do Judiciário, disse que ser contra o controle externo do Judiciário é ser contra a lei da gravidade. A tripartição funcional do Estado, a divisão entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, tal como concebido pelos liberais no Século XVIII e tal como executado hoje, na prática, é, necessariamente, um regime de interação entre os Poderes do Estado, de controle recíprocos entre os Poderes do Estado. Vale dizer, de controles externos. Já existem mecanismos de controle externo do Judiciário. A discussão que se põe, no processo de reforma constitucional do Judiciário que tramita no Senado, é se é necessário aperfeiçoar esses mecanismos de controle externo. A posição que nós sustentamos é que a instituição desse órgão, o Conselho Nacional de Justiça, como mecanismo de aperfeiçoamento do controle do Judiciário, traria inúmeros virtudes.

Isso já está na Reforma?

Está, foi aprovado na Câmara e deve ser aprovado no Senado.

E é constituído por quem?

É um dos poucos pontos em que há uma ampla convergência, nas várias vertentes do processo político no Brasil. As duas controvérsias que ainda pairam sobre esse organismo dizem respeito à competência do Conselho Nacional de Justiça, qual o grau de similitude que ele terá com os processos concretamente existentes nos países da Europa, sobretudo, e qual será a sua composição. No plano das competências, o que é importante dizer ao cidadão, ao contribuinte, ao qual nós devemos prestar contas como servidores públicos que somos, é que o Conselho Nacional de Justiça pode aprimorar essa atividade de aplicar as leis, de interpretá-las, de distribuir justiça, que é a atividade do Judiciário, em três planos fundamentais. Em primeiro lugar, no plano administrativo e no plano gerencial. O Conselho não anula a idéia de auto-governo, de governo próprio. Na verdade, ele qualifica o auto-governo.

Ele não tem gente de fora do Judiciário?

Pode ter ou não. Nas experiências, existentes em outros países, como na Argentina, Itália, Espanha e em Portugal, há membros externos. Se fosse aprovado hoje, no Senado Federal, haveria dois advogados, que seriam os representantes da sociedade civil, os representantes, portanto, diretos da população.

Dois advogados entre quantos membros?

Em 11, se for aprovado o texto proposto pelo Senador Bernardo Cabral.

Mas aí fica difícil imaginar que isso seja um controle da sociedade.

É, mas não haverá, não pode haver, essa é uma questão fundamental. Pois com a introdução do Conselho Nacional de Justiça não pode haver a ruptura do ideal de independência judicial. A independência judicial não existe para proteger os juízes. Isso é falacioso. Ela existe para proteger a democracia, existe para proteger você.

Mas tem sido usada para proteger juízes.

Isso é uma distorção, como a imunidade parlamentar gerou distorções, ou como regras outras, referentes a outras corporações, geraram distorções. E nós não somos a favor disso. A independência judicial é importante porque não se pode falar em judicialidade, em juiz sem nos remeter à idéia de imparcialidade. Imagine um jogo de futebol em que o árbitro entrasse em campo vestindo a camisa de um dos times que está disputando a partida e que, portanto, está sob seu controle.

Às vezes entra, por baixo da dele.

Isso é inevitável, faz parte da natureza humana. E, no caso do Judiciário, evidentemente que os juízes não são deuses, nem semideuses. Eles têm valores, eles têm história, têm tradições. Portanto, a idéia da neutralidade absoluta do Judiciário não se sustenta, assim como também a do juiz de futebol. Agora, a independência judicial, ao máximo…

Essa tem que ser preservada.

A imparcialidade máxima deve ser buscada, porque aí está a fonte de credibilidade do juiz. Nós não somos eleitos e nem podemos ser, na minha ótica. Se não somos eleitos, de onde vamos retirar a nossa legitimação democrática? Da credibilidade e do apreço público.

Do cumprimento da lei, estrito cumprimento da lei.

Sim, a credibilidade, o apreço público é retirado, inclusive, do fato de termos a capacidade de colocar a nossa pauta individual de valores submetida à pauta de valores decorrente do processo democrático. E onde essa pauta de valores está inscrita? Na Constituição e nas leis. Agora, se não há Judiciário independente e não há Judiciário imparcial, não há Judiciário, na verdade. Porque as pessoas só vão submeter os seus conflitos, os conflitos de interesse, a um terceiro não interessado. Se não for assim, elas não vão reconhecer nesse terceiro, no caso, o juiz, a aptidão para dirimir o processo.


O senhor não imagina uma fiscalização administrativa para se evitar, por exemplo, um caso como o do prédio do TRT de São Paulo?

Sim, mas é exatamente aí que o Conselho Nacional de Justiça é importante. No plano gerencial. Porque o Conselho não pode intervir na liberdade de convicção e nem na atividade-fim do Judiciário, mas nessa parte sim.

P – O senhor concorda que com a desordem que existe hoje, esse tipo de controle não funciona?

Evidentemente são insuficientes. Porque o que tivemos no Brasil é que em 1977, com o famoso “pacote de abril”, foi introduzido um mecanismo de controle externo do Judiciário, uma emenda constitucional outorgada. Um Conselho Nacional da Magistratura composto por 7 Ministros do Supremo Tribunal Federal. Qual a idéia que se criou na Constituinte de 87/88? Que esse era um instrumento da ditadura. O que aconteceu, então? Quando esse tema foi discutido na Assembléia Nacional Constituinte, houve a rejeição, por considerar que cada Conselho era, na verdade, a emanação de uma idéia ditatorial. E, aí, saiu-se de um sistema em que havia um Conselho, o Conselho Nacional de Magistratura, para um em que – tal como hoje vigente – os juízes de primeiro grau, como eu, têm as Corregedorias, mas dessas decisões, do exame feito pelas Corregedorias, não há nenhum tipo de recurso. E o que é mais grave: os Tribunais, seja os Tribunais de Apelação ou os Tribunais Superiores, não estão, do ponto de vista administrativo, submetidos a nenhuma instância de controle, somente o controle jurisdicional, feito a partir da provocação do Ministério Público. O Conselho Nacional de Justiça viria corrigir isso, aperfeiçoar. Na minha perspectiva, seria a correção dessa distorção, decorrente da posição equivocada adotada na Assembléia Nacional Constituinte de 87/88.

E quanto à questão da automatização, da presença do computador na Justiça brasileira? A exigência de registrar tudo por escrito, quando a população vai crescendo cada vez mais, vamos caminhar para onde? Os Juizados Especiais, ou de pequenas causas, agilizariam, tornariam mais rápida a Justiça também sob esse ponto de vista, de serem mais informais e utilizar menos papel?

São esses temas relevantes e bastante caros aos juízes que não transitam por mudanças constitucionais. Portanto, são temas de solução mais fácil, pelo menos teoricamente. O obstáculo para a plena implementação dessas idéias – a informatização completa do processo jurisdicional e a implantação ampla dos Juizados Especiais – está no plano orçamentário. É importante que se diga isso, porque uma das acusações que é feita ao Judiciário no Brasil é que é um poder perdulário, insensível e gastador. Isso é uma rotunda mentira. É importante que se considere que hoje nós somos 849 juízes federais em todo país, conduzindo 3 milhões e meio de processos. Que custamos à Nação 0,15% do Orçamento Geral da União, enquanto que com o encargo da dívida pública são gastos 70% desse mesmo Orçamento. E que a Justiça da União – aí incluindo a Justiça do Trabalho, os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT’s) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST), mais a Justiça Eleitoral, a Justiça Militar e o Supremo Tribunal Federal – consome 0,9% do Orçamento Geral da União.

O senhor acha que não tem desperdício?

Os desperdícios, com certeza, existem. Agora, dizer que os desperdícios são a causa do desequilíbrio fiscal no Brasil, que os desperdícios que eventualmente ocorram são a demonstração máxima da falta de efetividade, da falta de eficiência do Estado brasileiro é que é falacioso. Supervalorizar a potencialidade desses desvios, dessa má gestão que há, em todos os ramos do Estado, avaliando que isso é suficiente para abalar o equilíbrio das contas públicas no Brasil, é algo que deixa os juízes indignados.

Sempre achei que isso é uma retórica para manietar a Justiça.

Sim, na verdade, pela ótica econômica, procura subordinar o Judiciário a programas contingenciais, que não são os programas permanentes, os valores permanentes, inscritos na Constituição.

Mas o Judiciário tem que se enquadrar, também, nos programas contingenciais dos demais Poderes.

Desde que eles sejam constitucionais. Nós não pretendemos exercer papel de supremacia, em relação aos outros poderes do Estado.

Assusta, por exemplo, quando a Lei de Responsabilidade Fiscal realmente encontra uma barreira no Judiciário.

Não na Justiça Federal, não temos nenhuma dificuldade com a Lei de Responsabilidade Fiscal. O nosso limite é 6%.

Não, estou falando do Judiciário em geral.

Estamos plenamente adequados, na verdade, com 4% do limite de 6%.

Mas, também, com 840 juízes para 3 milhões de causas, vão estar adequados mesmo.


Esse é o problema. Porque que não há informatização no Judiciário? É porque os juízes não querem? A nossa Associação, a Ajufe, propôs à Câmara dos Deputados, à Comissão presidida pela Deputada Luiza Erundina, e foi relatado pelo Deputado Ney Lopes um projeto de lei que informatiza plenamente o processo judicial, inclusive pondo fim aos autos em papel.

E daí? Qual a dificuldade?

O projeto foi aprovado na Comissão de Legislação Participativa e o deputado Aécio Neves o remeteu, agora, à Comissão de Ciência e Tecnologia. Só que para executar esse projeto, posteriormente, serão imprescindíveis meios materiais, assim como em relação aos Juizados Especiais. Os juízes defendem os Juizados Especiais, porque, na verdade, quem os inventou foram os próprios juízes.

Os advogados é que não gostam muito.

É, há alguns setores, infelizmente, dos advogados, que consideram que esse seria um instrumento de restrição do mercado de trabalho deles, o que não é verdade. A experiência concreta demonstra que são, pelo contrário, uma experiência que valoriza a atividade dos advogados, na medida que é uma justiça rápida. Nada melhor para o advogado – e eu advoguei, evidentemente – do que ele dar uma satisfação ao seu cliente e, ao mesmo tempo, ver a causa ser finalizada com brevidade, inclusive para que ele possa receber seus honorários. Agora, Juizados Especiais custam dinheiro. É essa a dificuldade que tem que ser posta na mesa. Ou seja, se queremos aprimorar o Judiciário, como nós, juízes, queremos, isso tem um custo. Esse custo é infinitamente baixo em relação àquilo que se preconiza.

Agora, um plano com cronograma de instalação, não é um absurdo.

Certamente que não. Pelas cifras que forneci, a Justiça Federal, por exemplo, nesse ano de 2001, gastará 1 bilhão e 800 milhões de reais. Esse é o Orçamento global da Justiça Federal, para conduzir 3 milhões e meio de processos.

Um pouquinho mais do que o gasto com a ajuda a dois bancos.

Isso aí, num dia em que o mercado financeiro acorde de mau humor, é consumido em uma hora. Ou seja, no dia em que ele busca o lucro máximo e demanda intervenções do Banco Central, isso é consumido em meia hora, uma hora de ciranda financeira, consome todo o Orçamento geral da Justiça Federal brasileira em um ano.

Há uma preocupação das pessoas, refletida em perguntas que chegam a emissoras de rádio e televisão, sobre precatórios e pagamentos que a Previdência deve fazer às pessoas. Enfim, são coisas que parecem emperrar, elas dizem muito respeito ao dia a dia das pessoas: desapropriações, pensões alimentícias. E isso?

Isso é uma coisa dramática, porque se relaciona, em primeiro lugar, com a face, o rosto que o Estado brasileiro tem. O Estado brasileiro, definitivamente, tem que compreender que não há súditos, há cidadãos. E, portanto, as relações jurídicas que são contraídas entre uns e outros devem ser presididas pelo princípio da isonomia. Ou seja, assim como eu, você, temos que cumprir as leis, e as cumprimos, também o Estado brasileiro tem que as cumprir. E assim se dá, em relação às decisões judiciais. Mas o que temos são decisões judiciais que valem mais e outras que valem menos. Infelizmente, essas decisões que valem menos normalmente são decisões proferidas contra o Estado, na medida em que ele, costumeiramente, e aí nas três esferas federativas, opõe obstáculos ilícitos ao cumprimento das decisões judiciais.

P – Mas aí compete a um juiz decretar a intervenção e exigir o cumprimento da sentença.

É um tema que o Supremo Tribunal Federal terá que enfrentar. Enfrentar, inclusive, como o termo indica: enfrentar de frente – me permita a redundância – no sentido de deslindar os mais de 2 mil pedidos de intervenção que existem contra o Estado.

Eu acho que depois da primeira intervenção, os Governadores vão construir menos pontes, menos viadutos, e vão resolver os problemas das pessoas.

O que é fundamental é que os precatórios têm que ser cumpridos e, ao mesmo tempo, esse sistema tem que ser revisto.

Eles já reviram os precatórios.

Sim, mas reviram para pior, para parcelar, não é?

Parcelaram, inclusive com decisões, com questões julgadas, que deviam ter sido pagas.

Exatamente, retroagindo.

Foi uma coisa terrível.

Agora, na reforma do Judiciário há um dispositivo introduzido pelo Senador Bernardo Cabral, positivo, no sentido de fazer com que as chamadas dívidas de natureza alimentar, ou seja, salários, pensões, aposentadorias devidas aos cidadãos, sejam pagas em até 120 dias, e os demais precatórios de natureza não alimentar sejam pagos, ainda que no exercício financeiro subseqüente. Essa é uma garantia importante para o funcionamento do Estado, nós não discutimos essa anterioridade.


Fica dependendo da boa vontade do Governador. Se ele disser não, o que que vai acontecer?

Não, está previsto lá, e aí a novidade que a reforma constitucional traz, estão previstas outras sanções que não somente a intervenção. A possibilidade, por exemplo, de propositura de ações por improbidade contra o agente omisso. São providências importantes.

O juiz deveria poder, na minha opinião, confiscar a Receita.

A Lei dos Juizados Especiais Federais, a nossa lei, que entrará em vigor, felizmente, no dia 14 de janeiro de 2002, prevê isso. Ela determina que causas que tramitam na Justiça Federal com valor inferior a 60 salários mínimos – em valores de hoje, R$ 10 mil e 800 – deverão ter a execução diretamente, em até 60 dias. E, não havendo pagamento, haverá o seqüestro direto, por parte do juiz federal, nas contas do ente, do órgão público que tenha sido condenado, de modo a que o cidadão ou a pequena microempresa que tenha sido vencedora na ação judicial, possa, nesse prazo, receber seu crédito. Por isso, acreditamos que essa lei dos Juizados é bastante importante para o Direito brasileiro, na medida em que sinaliza a perspectiva de superação desses problemas que você vem apontando.

Ouço falar, e de pessoas que merecem crédito, que quando se procura agilizar a Justiça com relação a pagamentos do Estado – e quando falo Estado é União, Estados e municípios – a União treme e teme. Ela não quer essa agilização, porque não vai conseguir pagar se os processos forem extremamente ágeis. Isso é verdade?

A morosidade no Judiciário não é um dado da natureza, e nem uma emanação da vontade de Deus. A morosidade do Judiciário é algo social, culturalmente, historicamente construído, e tem pessoas que se beneficiam dela.

Tem pessoas que estão dizendo que é verdade.

Sim, os criminosos se beneficiam da morosidade do Judiciário, os sonegadores se beneficiam da morosidade do Judiciário. E aqueles que se opõem ao cumprimento de decisões judiciais, como setores da burocracia do Estado, evidentemente têm interesse na manutenção da morosidade do Judiciário. É importante que se diga isso ao cidadão, ao contribuinte, a você.

O senhor não está falando em teoria, está falando em prática?

Sim, evidentemente. Porque que as leis processuais, por exemplo, têm uma tramitação tão lenta, no Congresso Nacional? É porque há setores sociais poderosos que se beneficiam e têm interesse em que a Justiça funcione mal. E esses setores sociais não são os juízes. Porque, normalmente, nós somos responsabilizados. Embora nós tenhamos, nos últimos 10 anos, aumentado a nossa produtividade real em 380%, e eu desafio que seja mostrado qual o setor da economia nacional que aumentou a produtividade com a Justiça Federal Brasileira aumentou.

Provavelmente, a Receita Federal…

É, talvez. Mas, a produtividade real de cada juiz aumentou 380% de 89 a 99. O problema é que a quantidade de ações novas aumentou 420%, no mesmo espaço de tempo, de modo que essa produtividade foi anulada pelo crescimento da demanda. Isso é a prova, a demonstração de que os juízes não só têm um interesse teórico, doutrinário, para que a Justiça funcione melhor, como, na prática, têm feito esforços para que a Justiça funcione melhor.

Na verdade, em benefício dos juízes, vocês têm pouca voz, que é uma coisa que caracteriza mesmo, essa discrição, que caracteriza a Justiça. Vocês não saem na imprensa gritando, como outras categorias.

Temos até saído mais. E acho que devemos sair mais, mesmo a despeito das críticas em relação ao fato dos juízes falarem. Houve até editoriais de jornais, questionando se o juiz fala, o juiz não fala, o juiz só deve falar nos autos. É fato que um juiz, eu, no caso, se eu tiver uma demanda submetida à minha apreciação, eu não devo estar antecipando as minhas opiniões, porque isso diz respeito à própria sentença a ser definida. Mas o Judiciário, ele imprescinde de porta-vozes. As Associações são porta-vozes do Judiciário. Os Presidentes dos Tribunais são porta-vozes do Judiciário.

Eles têm não só o direito, mas o dever de falar. Porque, quando uma decisão judicial é emitida e é criticada publicamente, ela é taxada, por exemplo, como antipatriótica, como contrária aos interesses do país, quem vai explicar essa decisão à opinião pública, ao povo, senão os próprios juízes? Daí porque as Associações ou os Presidentes dos Tribunais devem fazer o que vêm fazendo nos últimos 5, 10 anos, que é exatamente adotar uma postura aberta, transparente, clara, inclusive explicitando o ponto de vista da nossa instituição em relação ao debate ainda em curso. Isso causa alguma estranheza, em relação àqueles acostumados ao modelo acético, distante de Judiciário, mas é um imperativo de Estado Democrático. O jogo democrático é um jogo conflituoso.

Juiz ainda é uma carreira atraente, para quem estuda Direito?

Atraente, na medida em que ela é uma profissão e uma missão. Se a pessoa associar o interesse pela técnica, pela ciência, pelos livros, pela lei, e gostar disso, e ao mesmo tempo compreender o alcance social, o alcance político daquilo que ele faz, é uma carreira extremamente bela, extremamente atraente, que merece, portanto, a dedicação que a imensa maioria dos juízes dão a ela. Infelizmente, é uma carreira extremamente estigmatizada.

Como estigmatizada? Tem prestígio público.

Estigmatizada, sim. Tem o prestígio, mas tem os estigmas. O estigma, a imagem que muita gente faz dos juízes, é de pessoas que trabalham pouco e ganham muito, que não fazem nada e ganham muito. Isso dói profundamente na imensa maioria. Evidentemente que há juízes que não cumprem as suas obrigações. Evidentemente que há maus juízes. Evidentemente que há juízes desonestos. Mas a imensa maioria dos juízes não corresponde a essa imagem, está muito distante desse perfil e, na verdade, diametralmente oposta a ele. É lógico que essa imagem que parte da sociedade tem do Judiciário é algo que desestimula os bons juízes.

Mas eu acredito – e estou nisso há 8 anos – nos fatores positivos para a compreensão desse papel, no sentido de controlar os demais Poderes do Estado, no sentido de concretizar os direitos humanos, de tutelar os direitos do cidadão, apesar de todas as dificuldades.

De saber que ainda que de modo moroso, ainda que de modo lento, é possível, um dia, distribuir justiça naquele caso concreto. É isso que faz com que seja uma carreira estimulante, uma carreira que dá alegria de viver para aqueles que a ela se dedicam com empenho, com denodo, com probidade e com honestidade, como os meus colegas fazem, espalhados em todo o território nacional.

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