Crise institucional

Judiciário virou bode expiatório do Brasil, diz Costa Leite.

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26 de dezembro de 2001, 14h45

O Judiciário vive hoje, senão a maior, uma das maiores crises da sua história e a sua credibilidade talvez jamais tenha sido tão fortemente atingida como nos dias que correm. A propósito, é inegável a existência de um fator de natureza política, identificado em ações deliberadas que se voltam para o enfraquecimento institucional e na intenção de fazer do Judiciário bode expiatório, mas, sem dúvida, o que tem comprometido mais acentuadamente a sua imagem é a morosidade na solução dos conflitos.

Sem que isso sirva a obnubilar as causas internas de tal lentidão, como a negligência de juízes e a atitude passiva de dirigentes de tribunais, certo é que concorrem de forma preponderante causas externas.

Nessa perspectiva, cabe lembrar um mal crônico: o Judiciário, no curso da história, sempre se viu a braços com as mais graves dificuldades orçamentárias, desprovido, em conseqüência, de uma estrutura capaz de atender satisfatoriamente às exigências dos jurisdicionados.

Aparelhar o Judiciário, aí compreendidos recursos humanos e materiais, significa não só imprimir maior celeridade à prestação jurisdicional como ganhar em qualidade. De outra parte, assume grande relevo o anacronismo das nossas leis processuais. De fato, competindo com o desmedido formalismo, vêem-se o sistema de recursos e o de execução de julgados; aquele a facilitar protelações, este a dificultar a efetividade da provisão jurisdicional; ambos, portanto, a convocarem urgente revisão. Sobressai, além do mais, o significativo aumento do número de demandas.

A revitalização da ordem jurídica brasileira, com o advento da Constituição de 1988, foi um fato positivo que muito contribuiu para uma maior procura do Judiciário. Mas há um fato negativo a merecer registro, no particular, qual seja o abarrotamento de processos decorrente de planos econômicos fracassados e a excessiva litigiosidade da Administração Pública em todos os seus níveis.

Com efeito, recente estatística realizada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça revelou que 85% das causas têm ente público em um dos pólos da relação processual e, em tal contexto, é lamentável verificar o desvio ético consistente no fato de a Administração Pública servir-se do colapso da Justiça para postergar o cumprimento de obrigações.

Nessa ordem de idéias, é de rigor que se intensifiquem os trabalhos de reforma das leis processuais paralelamente aos voltados à reforma do Judiciário, objeto de proposta de emenda à Constituição ora em tramitação no Senado da República.

Sabe-se que a reforma do Judiciário tem sido tema recorrente e cíclico entre nós. Nem bem se fechara o ciclo da ampla reforma operada na estrutura do Poder Judiciário pelo legislador constituinte, já se faziam ouvir os primeiros rumores quanto à necessidade de novas mudanças. Aí não vai nenhuma crítica. Pelo contrário: isso deve ser visto como algo extremamente positivo desde que, é claro, concorra para o aprimoramento institucional.

Lamentavelmente, não é esse o caso da atual proposta. A esperança é o Senado modificar e aprimorar o texto que saiu da Câmara dos Deputados. Em verdade, o que se desenha à nossa vista até aqui é pouco animador, a começar pelo controle externo que se pretende implantar. É preciso sim dar nova feição ao Judiciário, modernizá-lo, enfim, adaptá-lo aos novos tempos, porém o caminho a ser percorrido é outro.

A gestão administrativa é, fora de dúvida, uma das grandes deficiências do Judiciário. Se, no plano da jurisdição, tem-se a morosidade como principal fator a atingir a credibilidade da Justiça, é preciso se ter consciência de que esta é gravemente afetada por problemas situados no âmbito da administração. Foi, aliás, em função de tais problemas que surgiu e ganhou força em certos setores da sociedade a idéia do controle externo do Poder Judiciário. Ela só vicejou, a bem da verdade, porque o modelo de controle interno, centrado na atuação das corregedorias, fracassou.

Todavia, com o maior respeito que tenho aos defensores do controle externo e até vislumbrando, na defesa de alguns, os mais altos propósitos, entendo que ele representa grave retrocesso no panorama institucional da República e, em termos de autonomia e independência do Poder Judiciário, mostra-se incompatível com os grandes avanços e conquistas da Constituição de 1988.

O caminho decididamente não é por aí. Como antes afirmei, é preciso, sim, dar nova feição ao Judiciário, modernizá-lo, adaptá-lo, enfim, aos novos tempos. Isso é inegável; entretanto, como requisito mesmo desse processo, impõe-se o respeito à intocável independência jurídica do juiz, no sentido de que, no exercício da jurisdição, ele não se subordina senão à lei e à sua consciência, o que, a seu turno, não prescinde da independência política, da qual o autogoverno é a expressão maior.


O controle externo é a negativa de tais princípios. Conquanto se tenha de reconhecer a falência do controle interno nos moldes atuais, certo é que a radical mudança só servirá a fragilizar o Judiciário. Com isso perderão também os demais Poderes, mas perderá, sobretudo, a cidadania, comprometendo-se seriamente, além de tudo, o Estado democrático de direito.

Consoante sustentei no Senado Federal, em audiência pública atinente à Reforma do Judiciário, a solução está na criação de um sistema judiciário capaz de substituir a atual organização dos juízos e tribunais, que não mantêm nenhum elo entre eles, cometendo-se ao órgão central do sistema, dotado de poderes correicionais, a supervisão administrativa e orçamentária de todos os segmentos da Justiça brasileira.

Toma-se aqui “sistema”, nos moldes de Kant, como ordenação de várias realidades em função de pontos de vista unitários, tal e qual destacou Menezes Cordeiro, introduzindo a obra de Canaris “Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito”. Estou firmemente convencido de que essa falta de um sistema judiciário vem gerando problemas no que se refere à eficiência da administração do Poder Judiciário.

Nessa ordem de idéias, a criação do Conselho Nacional de Justiça, previsto no texto aprovado na Câmara dos Deputados, pode ser um instrumento eficaz de convergência para a criação do sistema judiciário. Sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal, tendo como corregedor, encarregado das funções executivas, um ministro do Superior Tribunal de Justiça, o Conselho seria, de fato, o órgão central, capaz de orientar e disciplinar a atuação do Poder Judiciário em sede administrativa.

O Conselho Nacional de Justiça, à luz do que antes afirmei a propósito da independência e autonomia do Poder Judiciário, deve ter caráter interno, sendo integrado tão-só por magistrados, no entanto com representantes das funções essenciais à Justiça. O Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados participariam não como membros; atuariam perante o Conselho como órgãos de provocação, ou seja, veiculadores das eventuais denúncias e, até mesmo, como órgãos de fiscalização, neutralizando a crítica concernente ao corporativismo. Quem denuncia e fiscaliza obviamente não pode julgar!

Não adianta realizar a reforma sem que se tenha presente essa particularidade de agregados que caracteriza o Poder Judiciário no Brasil, como se existissem verdadeiras ilhas. A passagem do Poder Judiciário “agregado” para o Poder Judiciário “sistema” pode ser não só o grande vetor da modernização do Poder Judiciário, mas a grande mudança na organização do Estado Brasileiro.

Convém acrescentar que a proposta de emenda em comento, ainda no patamar estrutural, contempla a criação da Escola Nacional da Magistratura, cuja institucionalização junto ao Superior Tribunal de Justiça, conforme previsto, representará, a meu sentir, decisivo passo no processo de modernização do Poder Judiciário brasileiro.

Vejo-a como órgão central de um sistema integrado pelas escolas de magistratura estaduais e federais, atuando no plano normativo e como formuladora de políticas em relação à formação e ao aperfeiçoamento dos nossos juízes. Cumpre acentuar um outro papel importantíssimo que terá, qual seja, o de proceder a estudos e pesquisas com vistas ao aprimoramento institucional e à melhoria da prestação jurisdicional, funcionando, assim, como uma espécie de braço acadêmico do Conselho Nacional da Magistratura.

A reforma do Judiciário, no plano da jurisdição, deve priorizar a valorização das instâncias ordinárias. É injustificável mobilizar o grau extraordinário de jurisdição para causas que se esgotam no plano do conflito intersubjetivo, sem nenhuma relevância para a Federação.

Impõe-se a adoção de mecanismos de contenção de recursos, sob pena de inviabilizar-se a prestação jurisdicional dos tribunais superiores, tal o aumento que se verificou no número de demandas. O Superior Tribunal de Justiça receberá mais de duzentos mil processos este ano. Isso é totalmente incompatível com a sua relevante destinação constitucional, que é de conferir estabilidade à ordem jurídica, e não propriamente fazer justiça às partes.

O texto da reforma aprovado na Câmara dos Deputados prevê para o Supremo Tribunal Federal os mecanismos da súmula vinculante e da repercussão geral da questão como pressuposto de cabimento do recurso extraordinário, nos seguintes termos:

“Art. 103A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.


§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.”

“Art. 102………………………

§ 4º No recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”

Espera-se que tais mecanismos sejam estendidos ao Superior Tribunal de Justiça. Aliás, havia previsão expressa nesse sentido, mas um acordo visando à tramitação da proposta durante o período de convocação extraordinária do Congresso acabou suprimindo-os do texto.

A súmula vinculante tem suscitado aceso debate. Penso que, uma vez bem definidas as matérias que abrangerá e existindo um instrumento eficaz de revisão, trará excelentes resultados, especialmente porque conterá a excessiva litigiosidade da Administração Pública. Esse é o grande mérito da súmula vinculante e, na verdade, o seu maior objetivo, pois, só em casos excepcionais os juízes hoje deixam de aplicar a jurisprudência sumulada, até por razão de ordem pragmática.

A propósito da repercussão geral, trata-se, em verdade, de um critério objetivo para aferição da relevância. O que se criticou muito no passado foi o exagerado subjetivismo que pautava as decisões do Supremo Tribunal Federal quanto ao tema.

Uma boa alternativa, caso não vingue a relevância para o Superior Tribunal de Justiça, será, então, a Constituição permitir que a lei discipline casos de inadmissibilidade do recurso especial. É crucial, por outro lado, a purificação da instância de superposição. Não há razão alguma para o Supremo Tribunal Federal continuar a julgar matéria infraconstitucional. É a segurança jurídica, em verdade, que recomenda a irrecorribilidade das decisões do Superior Tribunal de Justiça que não contenham contencioso constitucional.

Além do quanto aqui já se remarcou, torna-se imperioso encontrar soluções capazes de tornar a Justiça cada vez mais acessível ao cidadão. Isso nem sempre requer medidas de grande complexidade, de elevados custos. Precisamos ser mais ativos e criativos dentro da meta de aproximar a Justiça do povo.

Nesse sentido, os juizados especiais constituíram-se ao longo dos anos num instrumento de concretização da cidadania, e o seu aprimoramento deve ser um objetivo permanente. Cuida-se, sem dúvida, de experiência altamente vitoriosa no âmbito da Justiça dos Estados. A estatística é eloqüente: no Rio Grande do Sul, por exemplo, enquanto o Tribunal de Justiça julgou cerca de 90.000 processos em 1999, os Juizados chegaram à casa dos 250.000.

É fundamental, agora, a sua implantação na Justiça Federal. Isso ocorrerá a partir de 14 de janeiro do próximo ano, como prevê a Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001. Os juizados especiais federais, que terão competência para julgar as causas de valor até sessenta salários mínimos, serão de grande valia. Noventa e cinco por cento das causas previdenciárias, por exemplo, incluem-se nesse limite. A Justiça itinerante, uma realidade em algumas unidades da Federação, é, a seu turno, algo que deve ser estimulado.

Um outro ponto que me parece importante em termos de acesso ao Judiciário é a consolidação do processo de interiorização da Justiça Federal. O Conselho da Justiça Federal já aprovou anteprojeto que, em breve, deverá ser enviado ao Congresso Nacional, criando cento e oitenta e uma varas em diversas cidades interioranas.

Por fim, tenho que o conjunto das medidas aqui preconizadas será capaz de melhorar substancialmente os serviços jurisdicionais em nosso País, na busca incessante da Justiça acessível, democrática, célere e qualificada.

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