Cobrança ilegal

Cobrança de Tarifa Excedente de Consumo de água é inconstitucional

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25 de dezembro de 2001, 17h45

Continuação

A inexigibilidade (vedação ao excesso) – Como se sabe, na proporcionalidade, está embutida a idéia de vedação ao excesso, ou seja, a medida há de ser estritamente necessária. Invoca-se o velho jargão popular: dos males o menor. Portanto, para aferir a necessidade deve-se perguntar: o meio escolhido foi o “mais suave” entre as opções existentes? Assim, caso se considere que há relação de pertinência na adoção da medida adotada pelo Poder Público, o que se diz apenas para concluir o raciocínio, seria medida a “mais suave” para induzir a população a reduzir o consumo de água, mormente em face dos elevados valores estipulados para quem consumir acima da média? Certamente não.

Ora, ninguém pode negar que pagar 100% (cem por cento) a mais em relação a tarifa normal por ter utilizado a mesma quantidade de água que consumia é um verdadeiro excesso, diria mesmo abuso. Acrescente-se a isso o valor da “tarifa de esgoto”, já que “o Valor da Conta Atual de consumo de água (VrCtA) será ainda acrescido do valor normal da tarifa de esgoto”, conforme dispõe a Lei.

Certamente, seria muito mais “suave” e adequado se, ao invés de se punir quem pouco consumiu no ano passado, conceder um desconto para aqueles que conseguiram diminuir o consumo. Em razão disso, há de se concluir que a medida é, sem receio de equívoco, excessiva e, por isso mesmo, não atende ao segundo critério da proporcionalidade.

A desproporcionalidade em sentido estrito – Já quanto ao último aspecto da proporcionalidade, não há a menor dúvida: a Tarifa Excedente de Consumo não é proporcional em sentido estrito. Em outras palavras: os benefícios obtidos com a adoção da medida são infinitamente menores do que os prejuízos dele advindos. Ao se limitar o consumo da água, não se tem em mira proteger um interesse superior, mas tão-somente aumentar ainda mais a arrecadação estatal e engordar o Erário, sacrificando aqueles que economizaram água no período utilizado para o cálculo do médio de consumo.

O fornecimento de água é um serviço público fundamental, essencial e vital ao ser humano e à higiene e saúde de população, conforme já decidiu o STJ (REsp 201.112-SC, Rel. Min. Garcia Vieira, julgado em 20/4/1999). Logo, aumentar de tal forma a tarifa de consumo de água (100% sobre o valor normal) é uma atitude reprovável, desumana e, por isso mesmo, desproporcional em sentido estrito.

Em razão disso, presume-se facilmente que a Lei Estadual 12.968/99 não é proporcional, tendo em vista que não é adequado (não há pertinência lógica em sua instituição), nem necessário (é excessiva, isto é, não é o meio mais suave de se solucionar o problema do fornecimento de água), muito menos proporcional em sentido estrito (o benefício a ser alcançado com a adoção da medida sacrificou direitos fundamentais axiologicamente mais importantes do que os direitos que a medida buscou preservar).

Quinta inconstitucionalidade: afronta ao devido processo legal (razoabilidade)

O devido processo, como se sabe, em virtude da construção jurisprudencial norte-americana, possui uma dimensão substantiva (substancial due process), qual seja, a razoabilidade, que é um parâmetro de controle da discricionariedade legislativa: viola o devido processo legal e, portanto, a Constituição, a norma legal que não for razoável. Nesse sentido, aliás, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

“a cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição, e que traduz um dos fundamentos dogmáticos do princípio da proporcionalidade – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos revestidos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.

Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal” (ADIMC-1755/DF, rel. Ministro CELSO DE MELLO).

Por tudo o que já foi exposto, não fica difícil perceber que a Lei Estadual que instituiu a Tarifa Excedente de Consumo afronta diretamente o devido processo (art. 5o, LIV, da CF/88), em sua dimensão substantiva, tendo em vista que é completamente irrazoável, beirando a teratologia. A irrazoabilidade começa no critério utilizado para o cálculo da média de consumo. Por qual razão o consumo médio será calculado com base no consumo compreendido entre os meses de junho e novembro de 1998? Por que não é anual ou mesmo decenal, que traduz melhor a idéia de “média de consumo”? Por que não se utiliza uma média diferenciada para cada mês, tomando-se como base o mesmo período do ano anterior? Por que não se leva em conta o aumento do número de pessoas de cada residência? Por que não se leva em conta a temperatura ou mesmo o índice pluviométrico e outros fatores que influem no consumo de água? Por que não se investiga se a utilização anterior foi racional?


Na realidade, as situações peculiares são tantas que, quer queira quer não, qualquer critério utilizado para o cálculo de uma “média de consumo” será sempre irrazoável, donde se conclui que não é possível haver essa elevação de valor da tarifa com base na utilização média de água. A par disso, não há como aceitar a utilização de apenas 80% (oitenta por cento) desse “consumo médio”. Por que apenas oitenta por cento? Por que não os cem por cento, que é o mais lógico?

E mais: se a tarifa é cobrada em razão do excesso do consumo de água, por que acrescer ao valor da Tarifa Excedente o valor referente à tarifa de esgoto? Não há como deixar de concluir que a malsinada Tarifa Excedente é completamente irracional e incongruente, ou seja, não há pertinência lógica em sua instituição, malferindo, por esta razão, a cláusula constitucional do devido processo, em sua dimensão substantiva.

Sexta inconstitucionalidade: a incompetência do Estado para legislar sobre a matéria de que versa

Afora essas inúmeras inconstitucionalidades materiais, afigura-se irrefutável que a Lei Estadual 12.968/99 padece, outrossim, de uma inconstitucionalidade formal, qual seja, não tem o Estado a competência para legislar sobre a matéria de que versa a norma.

Realmente, na forma do art. 22, inc. IV, “compete privativamente à União legislar sobre águas”. Ora, se compete privativamente à União legislar sobre águas, tem-se como inconcebível que o Estado edite lei dispondo sobre tarifa visando reduzir o consumo de água.

Pode-se dizer que, na realidade, a legislação, no caso, não dispõe sobre a água em si, mas sobre política tarifária referente à serviço público fornecido por empresa pública estadual (CAGECE). Ainda assim, a norma seria formalmente inconstitucional. É que o art. 175, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, é claro ao dispor que:

“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviço público.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço adequado”.

Essa lei a que se refere o parágrafo único do art. 175 da Constituição, obviamente, há de ser lei federal (da União, portanto). Assim, não pode o Estado legislar sobre política tarifária, sob pena de usurpar a competência exclusiva do ente federal para regular a matéria. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal declarou a inconstitucionalidade de lei local que concedia isenção de pagamento de tarifas públicas a entidades assistenciais e beneficentes. Eis como ficou ementado o acórdão:

“Inconstitucionalidade da Lei Local Nº 464/93 que Confere Isenção de Pagamento de Tarifas Públicas a Entidades Assistenciais e Beneficentes. Não pode o Poder Público local estabelecer isenção de pagamento de tarifas ou preços públicos para entidades assistenciais e beneficentes, pois a União é o ente político de direito público competente para discriminar isenções sob pena de usurpação e invasão de sua competência exclusiva de dispor, disciplinar e legislar sobre a política tarifária. Reconhecimento de Inconstitucionalidade já declarada pelo Conselho Especial do TJDFT no Mandado de Segurança nº 4448/95. TJDF, 3ª Turma Cível, Apelação Cível n.º 45422/97).

Não se pode esquecer, também, que o art. 5o, inc. XXXII, determina que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Esse dispositivo, analisado em conjunto com o art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”), leva-nos a concluir que somente uma Lei Federal, votada pelo Congresso Nacional, poderia alterar os critérios de fixação dos valores de tarifas para o consumo de água, visando proteger o consumidor.

De qualquer sorte, seja a matéria relativa a águas, política tarifária ou proteção ao consumidor, a competência sempre será da União. E, realmente, há norma federal dispondo sobre cada uma dessas matérias:

1. a Lei 8.078/90, dispõe sobre a proteção ao consumidor;

2. a Lei 8.987/95, dispõe sobre política tarifária;

3. a Lei 9.433/97 e a Lei 6.528/78, dispõem sobre os critérios para fixação do valor do serviço de fornecimento de água.

Embora não seja correto dizer que existe hierarquia entre as leis federais e as leis estaduais, não se pode negar que, mesmo no caso de competência legislativa concorrente, a existência de lei federal regulando a matéria “suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário” (art. 24, § 4o, da CF/88). Destarte, é preciso aquilatar se a Lei Estadual 12.968/99, caso o Estado fosse hipoteticamente competente para legislar sobre essa Tarifa Excedente, é compatível com o que determina as normas gerais ditadas pela União. Passemos, pois, à análise das ilegalidades da Lei Estadual instituidora da Tarifa Excedente sobre o Consumo.


As ilegalidades

Primeira ilegalidade: a incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 8.078 (Código de Defesa do Consumidor)

A relação existente entre a CAGECE, fornecedora do serviço de fornecimento de água, e os usuários desse serviço, sem dúvida, constitui relação de consumo, regida, portanto, pelo Código de Defesa do Consumidor. Em face disso, é de patente ilegalidade a Lei Estadual que institui a Tarifa Excedente de Consumo por prejudicar demasiadamente os consumidores. O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 51, inc. IV, determina que:

“Art. 51 – São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade”.

Portanto, tem-se que a Lei Estadual instituidora da Taxa Excedente de Consumo é completamente ilegal, pois constrange o consumidor, de modo abusivo, a pagar o que não consumiu.

Segunda ilegalidade: a incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos) e Lei Federal 6.528/78

Ademais, a Lei Estadual 12.968/99 não é compatível com a Lei Federal 9.433/97, que “institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989”.

Com efeito, a Seção IV, do Capítulo IV, da citada lei, dispõe sobre A COBRANÇA DO USO DE RECURSOS HÍDRICOS. Em seu art. 21, há os critérios a serem observados na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos. Cita-se:

“Art. 21. Na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros:

I – nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação;

II – nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente”.

Percebe-se que não há autorização legal para a fixação de valores pelo uso o critério de “consumo médio”. Daí, não há como aceitar que se calcule o montante do valor da tarifa com base em uma estimativa arbitrada irrazoavelmente pela Administração.

Ademais, a cobrança das tarifas de água e esgoto obedece ao prescrito na Lei Federal n. 6.528/78, cujo § 2º, do art. 2º, estabelece que “as tarifas obedecerão ao regime do serviço pelo custo, garantindo ao responsável pela execução dos serviços a remuneração de até 12% (doze por cento) ao ano sobre o investimento reconhecido”.

Portanto, o consumidor deve pagar pelo que efetivamente consumiu, ou seja, pelo consumo real de água e esgoto. Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

“Repetição do Indébito – Limite para Consumo Mínimo de Água – Tarifa – Hidrômetro para Medir o Consumo D”Água – Inadmissível Adoção De Média Mensal De Consumo. Tarifa de água. Consumo mínimo. Limite para a sua utilização. O consumo por estimativa não se confunde com o consumo mínimo. Enquanto o primeiro tem lugar nos casos de inexistência de hidrômetro, verifica-se o segundo quando o consumo registrado no aparelho medidor fica abaixo do limite mínimo previsto em norma regulamentar. A utilização desse limite mínimo, todavia, só é admissível quando, em se tratando de imóvel comercial, o consumo de água for inferior a 20 metros cúbicos-mês. A partir desse limite, o usuário tem o direito de só pagar por aquilo que realmente consome, conforme for medido pelo hidrômetro. Embargos desprovidos” (Embargos Infringentes n° 257/94 – Rio de Janeiro – RJ – 2° Grupo de Câmaras Cíveis – TJRJ – 1995).

Terceira ilegalidade: a incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 8.987/95 (Política Tarifária)

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de ter como preço público e, portanto, tarifa, o quantitativo cobrado a título de água e esgoto. Confira-se com os seguintes precedentes: Recursos Extraordinários nºs 54.194, 54.491 e 77.162, relatados pelos Ministros Luis Gallotti, Hermes Lima e Leitão de Abreu, com acórdãos publicados nos Diários da Justiça de 28 de novembro e 17 de dezembro, ambos de 1963 e 24 de maio de 1977, respectivamente.

Portanto, a Lei Estadual 12.968/99, além de ser formalmente inconstitucional por dispor sobre política tarifária, é ilegal, por afronta a Lei Federal 8.987/95, que dispõe sobre a tarifação dos serviços públicos. Com feito, em seu Capítulo IV, há toda a disciplina legal da política tarifária. Entre os inúmeros dispositivos regulando a matéria, há de se destacar, por ter bastante relevância ao presente caso, o art. 13, que determina:


“art. 13. As tarifas poderão ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários” – grifos nossos.

Da leitura do dispositivo, é fácil compreender que somente em duas hipóteses as tarifas poderão ser diferenciadas:

1. em função das características técnicas: por exemplo, melhor qualidade de determinado produto, maior segurança etc e;

2. em função dos custos específicos: por exemplo, distância do local de fornecimento do serviço, gastos extras etc.

Em conclusão, só se justifica a diferenciação de tarifa quando o serviço prestado necessitar de gastos diferenciados. Assim, não pode haver diferença de tarifa em virtude de o consumo de um determinado usuário haver diminuído ou aumentado: todos que estão não mesma situação devem ser igualmente tarifados. Admitir o contrário, isto é, aceitar que a CAGECE pode cobrar valores incompatíveis com o real consumo dos usuários é endossar um enriquecimento sem causa, com o conseqüente empobrecimento dos consumidores, que vêm pagando pelo que não consome.

Com a Tarifa Excedente de Consumo, consegue-se transformar o “consumo médio” em consumo muito superior ao real, superior mesmo à própria capacidade de fornecimento da CAGECE, que passa a ganhar literalmente por aquilo que não fornece. Por que a CAGECE deve receber esse valor se não prestou o serviço?

Como já decidiu o TJRJ, “tarifa é preço público (e não taxa, nem imposto), e como tal o seu valor deve corresponder ao serviço prestado ou ao produto adquirido” (Embargos Infringentes n° 257/94 – Rio de Janeiro – RJ – 2° Grupo de Câmaras Cíveis – TJRJ – 1995). Não é demais anotar que essa mesma Lei 8.987/95 dispõe em seu art. 6o que “toda concessão ou permissão prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários”. E o que é serviço adequado? A própria lei responde:

“é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas” (§1o, do art. 6o).

Ora, quem há de defender que, no presente caso, com a instituição da Tarifa Excedente de Consumo, haverá a modicidade das tarifas? Absolutamente ninguém; afinal, o valor da “conta de água” poderá até dobrar de valor! A Lei Estadual, portanto, é absolutamente incompatível com a Lei 8.987/95, que se aplica aos Estados por força do dispositivo constitucional previsto no art. 175, parágrafo único, da Constituição Federal.

Quarta ilegalidade: a incompatibilidade da Lei Estadual 12.968/99 com a Lei Federal 9.069/95 (Plano Real)

Por fim, não há como não reconhecer a ilegalidade da Tarifa Excedente de Consumo em face da Lei Federal 9.096/95, que “dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, Estabelece as Regras e Condições de Emissão do REAL e os Critérios para Conversão das Obrigações para o REAL, e dá outras Providências”. A referida Lei, proveniente de várias reedições de medidas provisórias, determina em seu art. 70 o seguinte:

“Art. 70. A partir de 1º de julho de 1994, o reajuste e a revisão dos preços públicos e das tarifas de serviços públicos far-se-ão:

I – conforme atos, normas e critérios a serem fixados pelo Ministro da Fazenda;

II – anualmente.

§ 1º – O Poder Executivo poderá reduzir o prazo previsto no inciso II deste artigo.

§ 2º – O disposto neste artigo aplica-se, inclusive, à fixação dos níveis das tarifas para o serviço público de energia elétrica, reajustes e revisões de que trata a Lei número 8.631, de 4 de março de 1993″ – grifamos.

Assim, “dentro do princípio da nominalidade que se deseja paulatinamente implantar com a nova moeda do país, os preços públicos e as tarifas de serviços públicos terão suas normas e critérios de atualização definidos, se necessário, pelo Ministro da Fazenda , assegurado que os reajustes serão anuais” (Exposição de Motivos da Medida Provisória que instituiu o Plano Real).

No caso em questão, é inegável que houve um verdadeiro e substancial aumento nas tarifas do serviço de fornecimento de água, sem nenhuma razão ponderável, o que demonstra a total incompatibilidade da Lei Estadual com a Lei Federal 9.069/95.

Conclusão

Por tudo o que foi exposto, afigura-se sobejamente demonstrada a completa invalidade da Lei Estadual 12.968/99, tendo em vista ser ela inconstitucional, por malferir uma série de princípios constitucionais (isonomia, finalidade, moralidade, proporcionalidade, devido processo), por não ser o Estado competente para legislar sobre a matéria de que versa a lei e, por fim, ilegal, por ir de encontro a inúmeras leis federais tais quais o Código de Defesa do Consumidor, a Lei Federal 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos), Lei Federal 6.528/78, Lei Federal 8.987/95 e, por fim, Lei Federal 9.069/95 (Lei do Plano Real), sendo direito básico do consumidor pagar estritamente por aquilo que realmente consumiu.


E o que fazer em face disso? Qual seria a melhor medida para evitar que a população seja ainda mais onerada com essas tarifas, taxas e outros confiscos institucionalizados? Primeiramente, é perfeitamente adequada a propositura de ações individuais contra a cobrança da malsinada Tarifa. É cabível, inclusive, o mandado de segurança visando suspender de imediato a sua cobrança e requerer a devolução (em dobro, por força do art. 42, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor) do que foi cobrado, indevidamente, nos últimos cento e vinte dias, que é o prazo decadencial do writ of mandamus.

Nem se diga, no caso, que se trataria de mandado de segurança contra lei em tese, o que é vedado pela súmula 266 do STF. Realmente, o remédio heróico, no caso, é perfeitamente cabível por duas razões. Primeiro, a lei é de efeitos concretos e imediato. Segundo, a autoridade coatora está, como não poderia deixar de ser, aplicando-a normalmente, conforme é notório e pode ser vislumbrado nas contas de água anexadas. Assim, “não há falar de impetração contra ato normativo em tese – hipótese vedada pela Súmula 266 do STF -, se o ato, formalmente normativo, tem eficácia, concreta e imediata, ainda que em caráter geral (RTJ, 111/184)”.

A par disso, bem leciona Hely Lopes Meirelles, “a lei em tese, como norma abstrata de conduta, não é atacável por mandado de segurança (STF – Súmula 266), pela óbvia razão de que não lesa, por si só, qualquer direito individual. Necessária se torna a conversão da norma abstrata em ato concreto, para expor-se à impetração (…)”. Empós, arremata o grande jurista:

“Vê-se, portanto, que o objeto normal do mandado de segurança é o ato administrativo específico, mas por exceção presta-se atacar as leis e decretos de efeitos concretos (…) Por leis e decretos de efeitos concretos entendem-se aqueles que trazem em si mesmos o resultado específico pretendido, tais como as leis que aprovam planos de urbanização, as que fixam limites territoriais, as que criam municípios ou desmembram distritos, as que concedem isenções fiscais, as que proíbem atividades ou condutas individuais, os decretos que desapropriam bens, os que fixam tarifas, os que fazem meações e outros dessa espécie. Tais leis ou decretos nada têm de normativos; são atos de efeitos concretos, revestindo a forma imprópria de lei ou decreto, por exigências administrativas. Não contêm mandamentos genéricos, nem apresentam qualquer regra abstrata de conduta, atuam concreta e imediatamente como qualquer ato administrativo de efeitos individuais e específicos, razão pela qual se expõem ao ataque pelo mandado de segurança” (“Mandado de Segurança e Ação Popular”, 10ª edição ampliada, pág. 14/15).

Por essa razão, ou seja, por a Lei Estadual 12.968/99 atuar concreta e imediatamente, impondo sua aplicação, a autoridade coatora seria justamente o Presidente da CAGECE, que é o responsável pela execução da medida e, portanto, o ato dele será o atacado em sede mandamental. No âmbito coletivo, afigura-se-nos iniludível o cabimento de ação civil pública, proposta por qualquer entidade que possua a chamada “representatividade adequada”, incluindo-se aqui, obviamente, o Ministério Público. No presente caso, os interesses em jogo são da categoria dos denominados “individuais homogêneos”, “assim entendidos os decorrentes de origem comum” (CDC, art. 81, parágrafo único, III), sendo certo que proteção dos interesses individuais homogêneos, em matéria de direito do consumidor, é atualmente legalmente possível, pois o Código de Defesa do Consumidor possibilitou a propositura da “ação civil pública” e da “ação civil coletiva” para defendê-los em juízo, sendo que a legitimação ativa para a defesa desses interesses será “concorrente e disjuntiva” de qualquer co-legitimado que demonstre, no caso concreto, a “representatividade adequada”. Nem se queira invocar aqui o precedente do Supremo Tribunal Federal que nega legitimidade ativa ao Ministério Público para propor ação civil pública que verse sobre tributos (RE 195.056-PR, rel. Min. Carlos Velloso, 9.12.99 e RE 213.631-MG, rel. Min. Ilmar Galvão, 9.12.99).

A uma, porque não se pode afirmar que a Tarifa Excedente de Consumo é um tributo. A duas, porque a relação jurídica existente entre o consumidor e o fornecedor de serviços de água, embora eminentemente pública, é inegavelmente uma relação de consumo, onde incide, sem receio de dúvida, as disposições constantes no Código de Defesa do Consumidor que atribuem legitimidade ativa ao Ministério Público para a propositura de ação civil pública em favor dos consumidores.

Pensar o contrário, seria deixar sem tutela adequada esses interesses individuais homogêneos, o que fere frontalmente o princípio do acesso à justiça. De fato, um sistema que consagra e protege interesses coletivos e não estrutura meios adequados para permitir sua efetiva tutela é um sistema incompleto ou falho. Como bem resume MARINONI, “se a disciplina da legitimação para a causa ativa, no processo civil individualista, constitui obstáculo para o acesso à justiça, aponta-se, agora, para a “molecularização” do direito e do processo, com a reestruturação das categorias processuais clássicas, para sua adaptação aos conflitos emergentes. É o tratamento dos conflitos a partir de uma ótica solidarista e mediante soluções destinadas também a grupos de indivíduos, e não somente a indivíduos enquanto tais” (Novas Linhas do Processo Civil. 3ª ed. Malheiros, São Paulo, 1999, p. 69).

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