Feira da Mentira

Má fé na publicidade deve ser reparada com indenização

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16 de dezembro de 2001, 10h53

Quando da elaboração do Código de Defesa do Consumidor o legislador pátrio demonstrou preocupação com uma das realidades sociais mais pungentes do Século XX: a publicidade. Não há como se dissociar o capitalismo da concorrência entre os operadores econômicos. A nossa lei do consumo contém seções que tratam da oferta e da publicidade, disciplinando-as.

A competição marca de forma indelével a estrutura econômica da vida moderna. Tornou-se truísmo econômico e até ideológico a abstração de que só há desenvolvimento com mercado, e que o mercado só é sério se há livre disputa entre os agentes econômicos. No seio dessa concepção de sistema produtivo temos a publicidade como uma das suas pedras basilares. Não há como disputar o mercado sem levar aos consumidores o conhecimento da existência do produto oferecido. Há uma busca frenética por notoriedade comercial, nem sempre dentro de padrões éticos aceitáveis.

A ética na publicidade coloca-se como tema multidisciplinar e está ligado de forma umbilical ao direito do consumidor. A publicidade invade nossa vida de forma direta e indireta, clara e subliminar, afetando-nos a todo o momento, alterando nossos conceitos e até mesmo hábitos. Tomemos como exemplo o fumo. Durante décadas o cinema americano disseminou pelo mundo o hábito de fumar. No início da indústria cinematográfica certamente não havia intenções menos nobres por detrás do “charme” ressaltado pelos galãs de acender e fumar um cigarro, até porque o fumo não estava ainda marcado pelo espectro da decadência física.

Hoje, carros, bebidas, etc.., são anunciados simplesmente colocando-os em uso pelos personagens. Esse tipo de publicidade não respeita o Código de Defesa do Consumidor, na medida em que inexiste qualquer informação sobre o produto. É a propaganda pura e simples, sem os esclarecimentos exigidos pelo artigo 31 do referido diploma legal.

Vejamos as novelas televisivas. Trata-se da maior fonte de contágio cultural da nossa sociedade. As novelas alcançam milhões de telespectadores, de todas as classes sociais, mas principalmente os menos favorecidos socialmente e, portanto, culturalmente, sempre na busca de válvulas de escape da realidade opressora e desinteressante do dia-a-dia. Crianças, adolescentes e adultos são colocados em contato com situações altamente reprováveis sobre o aspecto ético, sem que haja a menor preocupação com o contágio cultural, principalmente, em relação aos jovens mais propensos à imitação.

As relações de consumo contêm a maioria das relações jurídicas da sociedade. Desde o momento em que pegamos a condução para o local de trabalho até a hora em que nos recolhemos para o repouso, somos agentes das mais diversas relações consumistas. Realizamos negócios jurídicos no campo do consumo a todo o momento, e somos bombardeados igualmente pela publicidade, elaborada na intenção de atrair o consumidor, não apenas apresentando o produto, mas criando nele, muitas vezes, o desejo de consumir o que não é necessário, exacerbando cobiças e instintos adormecidos. Alguns sequer deveriam ser acordados.

As premissas estabelecidas para a publicidade no Código de Defesa do Consumidor aplicam-se a qualquer hipótese em que haja intenção de promover a venda de produto ou de serviço. O código consumista atua como uma sobreestrutura jurídica que se irradia na direção de todas as relações jurídicas que tenham o consumo como elemento essencial. Se a publicidade está voltada à comercialização de produto ou serviço, o CDC tem incidência direta, atraindo as conseqüências estabelecidas na lei.

Oferta e Publicidade

No artigo 30, o Código de Defesa do Consumidor trata da oferta. O oferecimento do produto ou do serviço é ínsito ao comércio. Desde os mercados Persas que os produtos são oferecidos aos possíveis compradores de forma a chamar-lhes a atenção para as qualidades do que está sendo vendido. O que a sociedade moderna fez foi aperfeiçoar a oferta, massificando-a. A publicidade a torna pública, é o meio de fazer com que alcance um número considerável de possíveis consumidores.

A vinculação entre a oferta e o produto é clara na lei, que estabelece sua integração ao contrato. A norma afirma que toda a informação ou publicidade, suficientemente precisa, obriga o fornecedor, e, portanto, integra o contrato, ou seja, torna-se parte dele, criando uma obrigação correspondente à expectativa que surge com a oferta. Diante da dicção literal da norma, emerge evidente perplexidade em razão da expressão “suficientemente precisa“.

Estará a lei dizendo que a oferta insuficientemente precisa não integra o contrato? Não é possível interpretar o artigo 30 no sentido de entender que a oferta imprecisa não vincula o fornecedor do produto ou prestador do serviço. Se assim fosse as empresas especializadas em publicidade zelariam para que as mensagens publicitárias se mantivessem no limbo da informação, entre o preciso e o impreciso, gerando dúvidas capazes de afastar a vinculação pretendida na lei.


Só há uma possibilidade de interpretação razoável. A precisão mencionada na norma é a que permite a identificação do produto ou do serviço, não suas características e qualidades mercadológicas. No caso de ser imprecisa a identificação da marca do produto ou sua denominação no mercado, será o empresário o perdedor, considerando que a publicidade não estará alcançando seu objetivo.

No mais, se for imprecisa a informação acerca das características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazo de validade e origem, entre outros dados, militará em favor do consumidor presunção de boa-fé, dentro do espírito protetivo da legislação do consumo. O consumidor sabe das suas necessidades, cabe ao empresário esclarecer de forma precisa as qualidades do seu produto para que o comprador verifique se há perfeita coerência entre o que deseja e o que vai consumir.

A imprecisão na informação deve ser encarada como tentativa de engodo, como de fato quase sempre é. Não se pode modernamente aplicar aos negócios jurídicos de consumo a vetusta figura do dolus bonus. A distinção entre essa figura e o dolus malus só tem sentido em um negócio jurídico realizado tête-à-tête, característico de uma fase bem menos mordaz da sociedade. O dolus bônus era caracterizado pela gabança, exagero em ressaltar as qualidades do objeto do negócio. O comprador deveria estar munido de inadmissível singeleza de espírito para ser induzido a erro no mais das vezes inocente e sem grandes conseqüências.

Na sociedade moderna o negócio tête-à-tête é uma exceção. A massificação, como já dito, se tornou uma característica inafastável da modernidade. Nada é planificado levando em conta as necessidades individuais, as diferenças e particularidades que nos caracterizam como unidades distintas da raça humana. Muito menos a publicidade leva em conta a diversidade elementar dos consumidores. Daí a inaplicabilidade dos princípios do dolus bônus à oferta e à publicidade.

Aliás, esse desprezo pela particularização deve ser igualmente interpretado em favor do consumidor. Não apenas nos contratos de adesão, mas em todos aqueles nos quais haveria motivo para ressaltar diferenças resultantes da utilização do produto ou do serviço.

Veja-se o caso da oferta e publicidade na venda de passagens aéreas.

Por parte de algumas empresas do ramo o produto é anunciado de forma a fazer crer que a viagem será confortável para o passageiro. O conforto é ressaltado como fator diferenciador do produto colocado no mercado. E se o consumidor tiver dois metros de altura? Ainda assim terá direito ao conforto garantido pela empresa na propaganda?

Dever-se-á esperar do consumidor o bom senso de entender que suas características pessoais impedem o bem-estar prometido? Ou a empresa deverá ser penalizada pela publicidade exagerada?

Afinal, para um passageiro de tamanho considerado normal a viagem será relativamente confortável. Mas e o desrespeito às características pessoais de cada consumidor? A lei é omissa a respeito. Tudo é uma questão de encarar pelo ângulo da exatidão da informação.

O artigo 31 exige que a informação seja precisa. A publicidade, como meio veiculador da oferta, é considerada enganosa se, mesmo por omissão, induzir a erro o consumidor. Será que um homem de dois metros será induzido a erro ao receber a informação de que uma viagem de avião será para ele inteiramente confortável na classe turística?

O fato é que a publicidade cria uma expectativa favorável ao produto no consumidor, que passa a ter uma razoável esperança de obter um produto ou serviço que lhe sirva inteiramente, mesmo diante de características pessoais marcantes. Cremos que, no exemplo colocado, a empresa aérea tem o dever de honrar sua promessa aos consumidores portadores de particularidades corporais, como o obeso, o alto ou o deficiente físico. A alternativa para a empresa consistirá em produzir publicidade precisa a ponto de esclarecer as limitações do serviço, levando em conta as particularidades dos consumidores.

Mas nem sempre o fornecedor de serviços ou produtos é o vilão na relação de consumo. Há um tipo de demanda que vem se repetindo insistentemente no judiciário. Usuários de cartões de crédito vêm a juízo requerer a prestação jurisdicional para que não sejam obrigados a pagar os juros da utilização do seu limite de crédito, decorrentes do parcelamento da dívida. Trata-se de verdadeira compra e venda a prazo financiada pela empresa administradora do cartão. Dentre outros argumentos há o de que as empresas de cartão de crédito não são instituições financeiras e, por isso, não poderiam emprestar dinheiro e cobrar juros de mercado, a elas aplicando-se a proibição da Lei de Usura.

Vamos analisar o caso unicamente sob o prisma da boa-fé na relação de consumo. O fornecedor de serviços ou produtos deve honrar sua oferta e publicidade. Se não o faz agride a boa-fé como princípio negocial. Mas o consumidor também deve estar munido do mesmo humor. Quando alguém se vale do cartão de crédito sabe perfeitamente que se utilizar o crédito concedido terá de arcar com os juros de mercado. É comum que o cartão seja utilizado exatamente para tal fim, financiando a compra a crédito. Negar-se ao pagamento dos juros em tais circunstâncias é clara demonstração de má-fé, já que a verdadeira intenção do consumidor é um empréstimo, que em outras circunstâncias acarretaria o pagamento dos consectários financeiros.


Questão interessante a ser tratada é a da oferta e publicidade de produtos nocivos à saúde. As hipóteses mais comuns são o cigarro e as bebidas alcoólicas, que causam inúmeros malefícios à saúde. A legislação não teve a coragem de impedir a propaganda de tais produtos. Aqui merece nota o fato de inexistir na legislação menção à propaganda. Apenas a oferta e a publicidade foram tratadas no Código de Defesa do Consumidor. Para todos os efeitos, trataremos da propaganda como sinônimo de publicidade, apesar de termos conhecimento de que a primeira possui conceito mais amplo. Pode-se falar em propaganda política ou ideológica, mas não em publicidade nestes casos, que se limita normalmente ao comércio.

Esses produtos nocivos não são apenas objeto de publicidade, não são simplesmente colocados no mercado e anunciados. São erigidos a símbolos, status de uma sociedade em que seus membros estão ávidos por afirmação. A publicidade liga-os à juventude, à beleza, ao sucesso pessoal, às vitórias esportivas (cúmulo do absurdo), e ao que mais surja de valoroso em termos psicológicos. É mais que publicidade.

É propaganda no sentido da venda de uma idéia, não simplesmente de um produto. A mensagem subliminar consiste em estabelecer na mente do consumidor uma ligação automática entre o produto e o status de deseja possuir, ainda que seja inalcançável.

Além de nocivos são produtos desnecessários. Todos podemos passar uma vida sem o fumo ou o álcool. Bastaria que não tivéssemos jamais contato com eles. A propaganda torna isso impossível na prática.

Nos EUA já foram obtidas sentenças judiciais condenando as empresas que exploram o fumo a indenizar o Estado pelos gastos com saúde, em razão das doenças causadas pelo produto que comercializam.

No Brasil, há sentenças ainda não transitadas em julgado, condenando as empresas a indenizar consumidores que tiveram a saúde prejudicada. O grande argumento contra tais condenações é o de que os consumidores agem em livre arbítrio, sabendo dos malefícios causados pelos produtos que consomem.

Analisando pelo prisma da propaganda veiculada, o argumento não convence. O jovem é bombardeado por informações que ligam os produtos nocivos a tudo aquilo que mais almejam; beleza, liberdade, sucesso. Na fase da vida na qual os desejos superam a razão, em que o instinto sobrepuja o equilíbrio, na qual a impetuosidade leva vantagem sobre a prudência e prevalece a sensação de imortalidade e invulnerabilidade, não se pode esperar que o consumidor faça uma escolha consciente.

É exatamente com isso que contam as empresas que comercializam o fumo e o álcool. Toda a propaganda por elas produzida é voltada ao público jovem, que uma vez viciado encontrará imensa dificuldade para se livrar da duvidosa fonte de prazer. O homem maduro dificilmente cairá na esparrela. Não há como negar a malícia destes comerciantes da doença. Agridem a boa-fé ao comercializarem através da propaganda não apenas um produto, mas o vício em si.

A teoria do risco-proveito deve ser aplicada na sua plenitude em tais casos. Aquele que obtém lucros com uma determinada atividade empresarial deve arcar com os riscos e indenizar os que sofrerem eventuais conseqüências nefastas causadas por ela. Nos parece que o viés da publicidade é o ponto nodal dessa responsabilidade civil que vem sendo paulatinamente reconhecida pela jurisprudência.

A responsabilidade em questão deve ser estabelecida em padrões individuais e sociais. Os empresários do setor devem ter responsabilidade em auxiliar o Estado nas despesas com o tratamento dos males causados pelos produtos que vendem. Algo em torno de cinqüenta por cento dos leitos do SUS são ocupados por pacientes com doenças ligadas ao álcool e ao fumo.

Responsabilidade pela Oferta e Publicidade.

O artigo 35 do Código de Defesa do Consumidor disciplina a responsabilidade pela oferta e publicidade. É a recusa no cumprimento do prometido ao atrair o comprador que acarreta a responsabilidade, surgindo para o consumidor as três possibilidades previstas nos incisos do dispositivo acima mencionado.

Nos interessa de forma mais direta o previsto o inciso III; a rescisão do contrato com condenação em perdas e danos, além da devolução da quantia paga. Indiscutivelmente o dano material causado pelo produto ou serviço em desproporção com a oferta será indenizado. Mas e o dano moral porventura existente? Poderá ser objeto de pleito indenizatório? No nosso entendimento o dispositivo abre a possibilidade da indenização por danos morais, dependendo da situação.

Não se pode olvidar que o dano moral só emerge em situações graves. O simples inadimplemento contratual não enseja dano moral. Deverá emergir do fato um aborrecimento incomum, que vá além do simples desgosto pelo negócio mal realizado. É preciso firmar o conceito de que o dano moral não é inato ao descumprimento contratual. Ao contrário, trata-se de exceção e não regra no mundo do consumo a indenização pelo dano moral.


Os julgadores têm sido muito lenientes na análise dos pleitos de danos morais nas causas ligadas ao direito do consumidor, principalmente nos juizados especiais. Não se pode admitir a criação de uma “indústria do dano moral”. O risco do negócio pertence ao empresário, mas a álea não pode ser um fator que inviabilize a atividade econômica.

O julgador deve buscar no fato um desgosto considerável por parte do consumidor para deferir a condenação por danos morais.

Recentemente foi julgado no nosso tribunal caso que se coaduna perfeitamente com o objeto do estudo.

Um pai contratou com afamado bufê o serviço de iguarias da festa de quinze anos da sua filha, realizada em um dos espaços mais nobres do Rio de Janeiro. Os quitutes a serem servidos foram combinados um a um, de acordo com o folder e demais peças promocionais da empresa, com a promessa de que seriam servidos recém preparados.

Durante a festa o que se viu foram petiscos “passados”, frios ou gordurosos demais, alguns com aparência e gosto de estragados. O consumidor ingressou em juízo requerendo condenação por danos morais, que foi concedido nos dois graus de jurisdição. A nosso sentir, a base legal da pretensão foi a desproporção entre o ofertado e o servido.

O dano moral advém do desrespeito à vinculação entre o que foi oferecido e o serviço efetivamente prestado. O vexame experimentado pelo consumidor fê-lo merecer a polpuda indenização deferida pelo órgão julgador, numa clara demonstração de que o inciso III, do artigo 35, do Código de Defesa do Consumidor pode gerar dano moral.

Outra casuística comum quanto ao pedido de indenização por danos morais situa-se no campo do turismo, no qual a publicidade é fator primordial na atração do consumidor.

As empresas do ramo anunciam em periódicos e revistas especializadas seus produtos, prometendo sempre o melhor em termos de serviços na viagem pretendida. As acomodações dos hotéis de destino dos turistas são geralmente elogiadas pela publicidade, contratam-se passeios a locais turísticos e até restaurantes são recomendados.

Não é incomum que, ao chegarem nas cidades de destino, se vejam os turistas em hotéis bem inferiores aos anunciados, os passeios muitas vezes são desorganizados e a maioria das promessas é desonrada pelos fatos da viagem.

O dano moral aí é evidente, e decorre, mais uma vez, da desproporção entre o serviço ofertado e o efetivamente colocado à disposição do turista. A expectativa em uma viagem de férias é o descanso, a alegria reparadora, o esquecimento do stress. Se o viajante se depara com o aborrecimento, o desconforto, com o stress daí resultante, as razões que o levaram a contratar a viagem deixam de existir, e o que é pior, o tempo perdido, de férias, não poderá ser reposto jamais. Somente uma compensação financeira poderá, ainda que tangencialmente, devolver-lhe o humor.

Conclusão

A boa-fé deve ser a energia psíquica elementar dos negócios jurídicos em um mundo civilizado. Ao contrário disso, no mundo moderno a civilização apenas tratou de substituir a lei do mais forte pela do mais esperto.

A capacidade de dissimular foi erigida à virtude no mundo dos negócios, considerando-se um bom executivo aquele que melhor utiliza a astúcia em favor dos seus interesses. O Código de Defesa do Consumidor estabeleceu limites claros a essa astúcia no que diz respeito à oferta e à publicidade. A vinculação entre o oferecido e o vendido elimina a esperteza do vendedor na apresentação do produto que negocia.

A publicidade e a oferta passaram a ser a pedra de toque da boa-fé negocial no Código de Defesa do Consumidor. O negociante não pode mais levar vantagem em tudo. É a lei informal torta de uma sociedade sem ética, substituída pela norma positiva saneadora.

Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro 2001.

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