Apologia inexistente

Ministério Público pede arquivamento de inquérito contra Soninha

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12 de dezembro de 2001, 8h28

A apresentadora Soninha e outros entrevistados não fizeram qualquer apologia ao crime ao assumir que fumam maconha à revista Época. A intenção era apenas debater o tema polêmico. O entendimento é dos promotores Nathalie Kiste Malveiro Guimarães, Flávio Farinazzo Lorza e Maria Teresa Penteado de Moraes Godoy. Eles pediram o arquivamento do inquérito policial que investiga o possível envolvimento dos entrevistados com traficantes de drogas.

Soninha foi demitida da TV Cultura depois que a reportagem com o título “Eu fumo Maconha” foi publicada pela revista. O tema polêmico foi debatido pela imprensa durante vários dias.

De acordo com o procurador de Justiça, Nelson Lacerda Gertel, a frase “a erva maldita está se transformando em erva de charme” deu “a forte impressão de que a matéria poderia ter sido sugerida ou efetuada por influência das poderosas quadrilhas que dominam o narcotráfico”. Mas para os promotores nenhum dos entrevistados e nem a revista cometeram qualquer infração penal.

Segundo os promotores, sempre haverá temas polêmicos em discussão na mídia como o aborto, a eutanásia e a pena de morte.

Os promotores afirmaram que a apresentadora e os entrevistados não incentivaram ninguém ao uso da maconha “porque tanto a instigação quanto a indução, a contribuição, o incentivo ou a difusão exigem, para a integração do delito, a submissão de alguém com o uso efetivo da droga”.

O advogado criminalista, Luiz Flavio Gomes, doutor em Direito Penal, considerou sensato o pedido de arquivamento do inquérito. De acordo com o criminalista, os entrevistados não cometeram “nenhum delito ao afirmarem que fumam maconha em uma reportagem com intuito educativo”.

Veja o pedido feito pelo Ministério Público

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DO DEPARTAMENTO DE INQUÉRITOS E POLÍCIA JUDICIÁRIA

Trata-se inquérito policial instaurado com a finalidade de se apurar a eventual relevância penal dos fatos noticiados na portaria de fls. 2, no que diz respeito à edição número 183 da revista semanal Época, publicação da Editora Globo S. A., com sede à avenida Jaguaré, 1485, neste Município, cuja impressão é feita pela empresa denominada Plural Editora e Gráfica, situada à avenida Marcos Penteado Ulhoa, 700, Município de Santana do Parnaíba, neste Estado, na qual foi veiculada matéria sobre uso de maconha.

Quase concomitantemente foi apresentada a representação anexa, cuja juntada ora requeremos, para apensamento, formulada pelo Excelentíssimo Procurador de Justiça Nelson Lacerda Gertel, solicitando providências sobre exatamente a mesma matéria jornalística.

Na portaria, a Digna Autoridade Policial se refere à capa da revista, mencionando a frase “Eu fumo maconha” e citando os entrevistados cujas imagens ali aparecem. Faz referência, ainda, a “depoimentos de outras pessoas de diversos segmentos da sociedade, que alegam prazerosamente o inequívoco uso da substância entorpecente”.

Na representação, por sua vez, o Excelentíssimo Procurador de Justiça analisa brevemente o conteúdo do texto, transcrevendo a frase “a erva maldita está se transformando em erva de charme”. E afirma ter ficado “a forte impressão de que a matéria poderia ter sido sugerida ou efetuada por influência das poderosas quadrilhas que dominam o narcotráfico”.

Tanto a Digna Autoridade Policial que determinou a instauração de inquérito policial, quanto o Excelentíssimo Procurador de Justiça que apresentou representação vislumbram a possibilidade da ocorrência da infração penal definida no artigo 12, § 2º, inciso III, da Lei 6368/76. Em nosso entender, no entanto, os fatos noticiados no presente procedimento não configuram a infração penal sugerida. Tampouco a forma também definida no § 2º do artigo 12 da Lei 6368/76, só que no inciso I, ou as figuras assimiladas previstas nos artigos 286 e 287 do Código Penal. Ou, por fim, as figuras também assimiladas previstas no artigo 19, §§ 1º e 2º da assim chamada Lei de Imprensa (Lei 5.250/67).

Mesmo porque, por se tratarem de figuras penais assimiladas, sugerem a ocorrência de conflito de normas, já que a lei não indica qual delas é a efetivamente aplicável. Tal conflito, porém, é aparente, e se resolve pela aplicação do princípio da especialidade. Vale lembrar, a propósito, o ensinamento de Giuseppe Bettiol, que analisa o tema na obra Diritto Penale (traduzida por Paulo José da Costa Junior e Alberto Silva Franco, publicado pela editora revista dos tribunais Ltda).

“O problema do concurso de normas não existe em função de solução expressa que lhe haja dado o legislador, mas depende do nexo lógico ou valorativo que subsista entre duas ou mais normas. Em sua base está uma atividade lógica e intuitiva que leva o intérprete a excluir, em relação ao fato concreto, a aplicação de determinada norma em favor de outra. Diversos são os princípios de que se serve a doutrina para resolver o delicado problema. Um critério parece indiscutível: É o da especialidade”.

A Lei de Tóxicos e a Lei de Imprensa são, em relação ao Código Penal, especiais e, por conta disso, excluem, de imediato, a aplicação dos artigos 286 e 287 do Código Penal, já que tratam, especificamente, da incitação e apologia aos crimes referentes a entorpecentes.

Surge, em conseqüência, mais um conflito aparente de normas, desta vez entre duas leis especiais. Caso aplicada a Lei de Imprensa, haveria deslocamento da competência, por força do que dispõe seu artigo 42, uma vez que a revista que contém a matéria questionada é impressa, ao que consta, no Município de Santana do Parnaíba.

Mas também nesta hipótese o conflito é aparente porque, se de um lado a Lei de Imprensa trata da forma pela qual se dá a divulgação da ação criminosa, a Lei de Tóxicos apresenta tratamento repressivo diferenciado, cominando pena significativamente superior, o que obriga sua aplicação.

Até porque a Lei de Tóxicos é posterior à Lei de Imprensa e demonstra a evolução legislativa no sentido de dar resposta penal mais rigorosa àqueles que praticam as condutas penais nela apresentadas. Raciocínio inverso beneficiaria aquele que, valendo-se da força da mídia, pretende contribuir de qualquer forma para a prática do crime de tráfico de entorpecentes ou para o uso de qualquer droga, em detrimento de quem, com a mesma finalidade, não tem acesso a meios de informação tão poderosos. Superada a questão e restringindo a análise às figuras penais da Lei de Tóxicos, a conclusão é, de qualquer forma, conforme já referido, de que não houve crime. Com efeito. Há pelo menos dois focos de análise que surgem no inquérito policial e na representação.

Um deles se relaciona com a manifestação de cada um dos entrevistados e o outro com a matéria propriamente dita, cuja responsabilidade pode se estender desde o jornalista até o proprietário da empresa jornalística. Num primeiro momento, é inevitável a menção ao disposto nos incisos IV (“é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”) e IX (“é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”) do artigo 5º da Constituição da República.

Mas tal menção, que permite plena análise da matéria na esfera dos direitos constitucionais do cidadão, apesar de indicar a direção, não permite imediata conclusão se considerado o âmbito penal da questão abordada.

Indispensável, portanto, verificar se houve ou não perfeita adequação dos fatos ao tipo penal mencionado. A nosso ver, conforme já referido, não estiveram presentes todos os elementos constitutivos do tipo, notadamente a vontade livre e consciente de praticar qualquer crime. Seja com relação aos entrevistados, seja com relação aos jornalistas ou à empresa jornalística, por intermédio de seus representantes.

Isto porque tanto a instigação quanto a indução, a contribuição, o incentivo ou a difusão (ações definidas nos dispositivos mencionados da Lei 6368/76) exigem, para a integração do delito, a submissão de alguém com o uso efetivo da droga. Esse é o ensinamento do Eminente Vicente Greco Filho (“Tóxicos – Prevenção e Repressão”, editora Saraiva, 7ª edição, páginas 103 a 106) que menciona, para engrandecer seu posicionamento, o de Magalhães Noronha.

Vale transcrever a seguinte passagem da obra citada, quando o autor analisa o inciso I do artigo 12 da Lei de Tóxicos:

“O dolo exigível na espécie é o dolo genérico, a vontade livre e consciente de querer a instigação, usando palavras, escritos, preparando situações etc, que levem ao uso de drogas, alguém determinado. A ação precisa ser dirigida a uma pessoa determinada, não bastando a ‘propaganda’ genérica feita sem destinação específica…” (página 104). Já ao comentar o inciso III, insiste assim o Mestre:

“Mas há necessidade da efetivação do uso para a integração do delito? Da mesma forma que nas hipóteses anteriores, parece-nos que sim. Apesar de o tipo ter como núcleo ‘contribuir’ para o incentivo ou a difusão,parece-nos que a integração do delito se faz com o uso, mal que a norma pretende evitar. Sem este resultado, a norma seria vaga e equívoca, porque não teria tipicidade definida.” (pagina 106). É sempre indispensável que esteja presente (e evidente) a vontade livre e consciente, no primeiro, de incitar e, no segundo, de fazer a apologia.

Pretender, dessa forma, no caso do presente procedimento, imputar as condutas referidas, seria dar vazão à aplicação de uma norma penal indefinida, pela prática de fatos que não atingiram concretamente um bem juridicamente protegido na esfera criminal. É certo que a empresa jornalística utilizou-se de métodos questionáveis de apresentação e divulgação da edição em que foi publicada a matéria mencionada. Expôs os entrevistados em foto de capa, em diversos outdoors espalhados pela cidade, com a manchete “EU FUMO MACONHA”. Muitos não leram e não gostaram. Outros tantos correram às bancas, compraram a revista, colaboraram com o lucro da empresa e tomaram conhecimento do efetivo conteúdo da reportagem.

Daí instaurou-se a polêmica que, apesar de não tão elegante, faz lembrar, ao menos superficialmente, a célebre “Questão Coimbrã”, que envolveu o romântico ancião Antonio Felicio de Castilho e o jovem realista Antero de Quental. Faltou à empresa jornalística bom senso e bom gosto, frase título que eternizou o opúsculo escrito por Antero de Quental em resposta ao posfácio apresentado por Antonio Felicio de Castilho no “Poema da Mocidade”, de Pinheiro Chagas. De qualquer forma, a leitura da matéria, por si só, já permite conclusão diversa do sugerido na representação. Ou seja, a de que a intenção de todos os que estiveram envolvidos na matéria era a de debater o tema, que é polêmico, mas que pode ser objeto de questionamento, como foi, sem apologia a qualquer crime.

Tanto que a reportagem em questão aborda também com ênfase os efeitos negativos do consumo de maconha, com menção a exemplos concretos. Assim também são e sempre serão polêmicas outras questões como o aborto, a eutanásia, a pena de morte etc. Mas que não por essa razão serão excluídos do debate público, atividade essencial e indispensável para garantir a manutenção do Estado Democrático de Direito, conquistado a duras penas pela Nação. Por fim, a menção da influência de organizações criminosas voltadas à prática do narcotráfico na publicação da matéria não encontra suporte

fático que justifique o prosseguimento das investigações. Diante do exposto, requeremos que, distribuído, registrado e autuado, seja determinado o ARQUIVAMENTO do presente procedimento.

São Paulo, 10 de dezembro de 2001

Nathalie Kiste Malveiro Guimarães

Promotora de Justiça

Flávio Farinazzo Lorza

Promotor de Justiça

Maria Teresa Penteado de Moraes Godoy

Promotora de Justiça

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