Cobrança indevida

Juíza isenta empresa de pagar novas contribuições do FGTS

Autor

4 de dezembro de 2001, 15h41

A juíza da 23ª Vara Cível de São Paulo, Maria Cristina Barongeno Cukierkon, isentou a empresa Jojo Distribuidora de Bebidas de recolher as duas novas contribuições sociais instituídas pela Lei Complementar nº 110/2001.

A lei institui multa de 50% para empresas que demitirem, sem justa causa. Anteriormente, a multa era de 40%. Também determina o acréscimo de 0,5% no recolhimento de FGTS.

A empresa foi representada pelos advogados Antonio Carlos Guidoni Filho e Alexandre Henrique M. Zarzur, do escritório Guidoni Advogados Associados.

A juíza mandou o delegado regional do Trabalho se abster de adotar qualquer medida para exigir da empresa as novas contribuições. Maria Cristina acatou os argumentos da defesa de que as novas contribuições ferem princípios e dispositivos constitucionais.

De acordo com a juíza, “a possibilidade de o Legislador criar um tributo sem obedecer às regras estabelecidas na Constituição da República, conforme vai ditando a conveniência da ocasião, gera justamente situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem a função estatal, tal qual ocorreu no caso concreto”.

Veja a decisão

Processo n.º 2001.61.00.026638-8

Impetrante: JOJO DISTRIBUIDORA DE BEBIDAS LTDA.

Impetrado: DELEGADO REGIONAL DO TRABALHO EM SÃO PAULO

Trata-se de mandado de segurança, com pedido de liminar, ajuizado contra a autoridade coatora mencionada na inicial, visando ao reconhecimento do postulante de não se sujeitar à exigência e cobrança das contribuições veiculadas pela lei Complementar n.º 110/2001, bem como seja autorizado a compensar os valores indevidamente recolhidos.

Fundamentando a pretensão, sustenta, em síntese, a inconstitucionalidade da cobrança das exações em questão, por não possuírem destinação e finalidade de custear a atuação da União Federal, seja no que concerne a ordem social, seja quanto às previsões do artigo 149 da Constituição Federal e também por não possuírem natureza jurídica de imposto – dado que seus recursos, por força de expressa previsão legal, estão destinadas a um Fundo, ou seja, caracteriza a vinculação de receitas, vedada pelo artigo 167, IV da Constituição Federal.

Entendo presentes os pressupostos autorizadores para a concessão da medida liminar pleiteada. Os argumentos esposados pela impetrante na inicial são relevantes, demonstrando o fumus boni iuris. Vejamos:

A cobrança das contribuições em questão surgiu com a entrada em vigor da Lei Complementar n.º 110/2001, a qual instituiu a contribuição social devida pelos empregadores em caso de despedida de empregado sem justa causa e sobre a remuneração devida, no mês anterior, a cada trabalhador.

Tais contribuições, conforme se infere do artigo 4º da L C 110/2001, bem como da mensagem legislativa veiculada no projeto de lei que deu origem a LC em debate, formas instituídas com a finalidade de gerar recursos financeiros ao Governo Federal para pagar os expurgos inflacionários do FGTS, relativos aos Planos Verão e Collor.

Vemos, portanto, que a União Federal instituiu, através da L C acima mencionada, um imposto com nome de contribuição a fim de destinar o produto da arrecadação ao pagamento dos expurgos inflacionários relativos aos mencionados Planos Verão e Collor, dando-lhe nome de contribuição social, mas contornos de contribuição destinada à seguridade social, submetendo-a, no artigo 14, ao princípio da anterioridade mitigada a que alude o § 6º do inciso III do artigo 195 da C F.

As contribuições em debate, dessa forma, foram instituídas com total subversão do regime jurídico dos tributos e abuso de poder legislativo, característico de ofensa ao princípio do devido processo legal – inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal – em sua dimensão material, como vem sendo entendida pelo Supremo Tribunal Federal:

“Todos sabemos que a cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo artigo 5º, LIV, da Constituição – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo á edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável.

A essência do substantivo due process of law reside na necessidade de proteger os direitos a as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revela opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.

Isto significa, dentro das perspectivas da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal (voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, nos autos da medida cautelar, concedida na ADIN n.º 1.158/AM, publicada na RDA n.º 200, pp. 242 a 246).

Ora, a possibilidade do Legislador criar um tributo sem obedecer às regras estabelecidas na Constituição da República, conforme vai ditando a conveniência da ocasião, gera justamente situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem a função estatal, tal qual ocorreu no caso concreto.

Realmente, estamos vivendo em uma época de muita expectativa e frustração em relação às nossas instituições e, justamente por isso, não podemos nos apaixonar por saídas simplistas, com promulgações de normas feitas de atropelo, emprestando-lhes o nome de lei complementar ou emenda constitucional.

O Poder Constituinte originário previu, de forma rígida, a competência tributária da União (artigo 154 da CF), prevendo a possibilidade de serem instituídas outras fontes de custeio destinadas a garantir a expansão da seguridade social, as quais devem ser veiculadas por lei complementar, não serem cumulativas e não terem fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na CF/88.

Estabeleceu, também, as limitações ao direito de tributar. Vale dizer, elegeu as regras que norteariam as relações jurídicas a serem estabelecidas entre o Poder Tributante e o Contribuinte, regras essas imutáveis pelo Poder Constituinte Derivado ou pelo legislador ordinário por se tratarem de direitos e garantias individuais, nos termos do artigo 60, § 4º da Constituição da República.

Não poderia ser de outra forma. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil ao estabelecer o pacto federativo, disciplinou a existência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, todos autônomos, impedindo, no resguardo da Federação, proposta de emenda constitucional tendente à sua abolição (artigo 60, § 4º, I, da CF).

Como a autonomia dos entes federativos pressupõe independência financeira, a Constituição Federal consolidou, mediante a distribuição de competência tributária rígida, quais seriam os tributos a serem instituídos pela União, pelos Estados e pelos Municípios, a fim de angariarem recursos para a realização de suas atividades.

Muito bem. Fixada desta forma a autonomia dos entes federativos, não pode a União Federal, no exercício de sua competência residual, instituir qualquer imposto ou qualquer contribuição, sob pena de quebrar-se o equilíbrio inicialmente previsto no pacto federativo, cláusula pétrea do sistema jurídico brasileiro.

Não podemos permitir que o Poder Constituinte derivado ou o legislador ordinário criem novos tributos em benefício de determinada pessoa política, porque tal proceder aniquila a autonomia política de determinado ente federativo ou o fortalece em detrimento dos demais.

Dessa forma, as contribuições em questão, se contribuições fossem, não poderia ter sido instituídas sem a completa observância dos requisitos previstos no artigo 195, § 4º c/c artigo 154, I, ambos da Constituição Federal, quais sejam: não ser cumulativa ou ter fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição; atribuir aos Estados e ao Distrito Federal 20% do produto da arrecadação da exação instituída no exercício da competência residual atribuída á União pelo artigo 154, I da CF, bem como destinar o produto da arrecadação a manutenção ou expansão da seguridade social.

Ora, as exações em questão, embora veiculadas por lei complementar, não se destinam à seguridade social e também não transferem aos Estados e ao Distrito Federal 20% da arrecadação. Dessa forma, não são contribuições destinadas à seguridade social.

Também não têm natureza de contribuição social, porque o FGTS, nos termos previstos no inciso III do artigo 7º da Carta da República, é direito dos trabalhadores urbanos e rurais e não instrumentos de atuação da União Federal nas suas áreas de competência descritas no artigo 21 da CF.

O que vem a ser, então, as exações em questão?

As contribuições em debate, na verdade, são impostos disfarçados de contribuição em função da destinação imposta pela L C 110/2001.

Sabemos que a natureza específica dos tributos é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para qualificá-la a denominação e demais características formais adotadas pela lei, bem como a destinação do produto da arrecadação (CTN, artigo 4º).

Como a CF (artigo 167, IV) veda a veiculação de receita de imposto a fundo ou despesa, o legislador mudou o nome da exação para ” constitucionalizá-la “.

As “contribuições” em questão também desatendem ao princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, parágrafo 1º do texto Constitucional, segundo o qual os tributos devem ser graduados de conformidade com a capacidade contributiva do contribuinte.

No presente caso, as hipóteses constitucionalmente previstas como sendo fato gerador da obrigação tributária não exteriorizam nenhuma manifestação de riqueza apta a consagrar a capacidade contributiva de nenhum contribuinte.

Regina Helena Costa (in Princípios da Capacidade Contributiva – Editora Malheiros – 1993 – págs. 77, 83 e 103), ao analisar o princípio constitucional da capacidade contributiva, assinala:

” … A hipótese de incidência tributária será inconstitucional quando a situação legislativamente descrita não revelar a aptidão abstrata de um sujeito para responder pelo gravame tributário, vale dizer, não demonstrar capacidade contributiva absoluta ou objetiva.

A capacidade contributiva considerada deve gozar dos atributos da efetividade e atualidade. A primeira exige que a capacidade contributiva seja concreta, real e não meramente presumida ou fictícia. A atualidade, por sua vez, impõe que a lei incida no momento da ocorrência do fato revelador da capacidade contributiva e não posteriormente, o que conduziria à sua retroatividade, não autorizada constitucionalmente … “.

Nesta mesma linha de raciocínio, conforme lição de Rubens Gomes de Souza, trazida por Regina Helena Costa, em obra acima referida: ” Capacidade contributiva é a soma de riquezas disponíveis depois de satisfeitas as necessidades elementares da existência, riqueza esta que pode ser absorvida pelo Estado sem reduzir o padrão de vida do contribuinte e sem prejudicar as suas atividades econômicas”. E mais adiante. “Em sendo critério de graduação de impostos, a capacidade contributiva atuará, outrossim, como limite da tributação, permitindo a manutenção do mínimo vital e obstado que a progressividade tributária atinja níveis de confisco ou de cerceamento de outros direitos constitucionais”.

Ora, todos sabemos que a perda da arrecadação tributária de todos os níveis de governo está associada à redução do nível de atividade no país. Assim, o legislador ordinário não pode, ao arrepio das normas consagradas na Constituição da República e valendo-se da hermenêutica da conveniência, pretender que princípios e direitos constitucionalmente previstos sejam “flexibilizados ” para resolver os insolúveis problemas de caixa.

O periculum in mora também se faz presente no presente caso, resultando na total ineficácia da medida se concedida ao final da ação.

Por isso, concedo a liminar para suspender a exigibilidade das contribuições previstas na LC 110/2001, ficando afastados todos os atos da autoridade impetrada tendentes à aplicação de sanções e penalidades em virtude do não recolhimento das contribuições.

Indefiro o pedido de compensação, consoante a Súmula n.º 212 do STJ.

Notifique-se a autoridade coatora.

Com as informações, ao MPF e conclusos.

Int.

São Paulo, 26.11.2001.

Maria Cristina Barongeno Cukierkon

Juíza Federal

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!