Diferenças sociais

'Globalização é incompatível com os direitos humanos'

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4 de dezembro de 2001, 13h24

Tema bastante importante e controverso é a questão dos direitos humanos, principalmente no momento atual, no qual há, progressivamente, um aumento das relações internacionais, tendo em vista o fenômeno da globalização. Neste sentido, proponho expor rapidamente estes dois conceitos (globalização e direitos humanos) para analisá-los conjuntamente na realidade deste final de Século XX.

É preciso, na análise científica dos direitos humanos, buscar extrair de sua conceituação qualquer abstração ou idealismos. Neste artigo, proponho a visão de Norberto Bobbio sobre o assunto. Segundo aquele grande jurista italiano, os direitos humanos seriam uma construção histórica, isto é, não são nem universais (no sentido de sempre terem existido em todo o tempo e lugar) nem anteriores ao homem, como pensavam os gregos.

No entanto, Bobbio aceita a universalidade destes direitos a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, dado esta ter sido aprovada por 48 países. Ora, em 1948 não havia apenas 48 Estados constituídos no mundo e tampouco tais direitos foram respeitados sequer pelos países que assinaram a Declaração, ou seja, tais países apenas superficialmente concordaram com o acordo, mas não concordaram efetivamente, já que desrespeitaram – e desrespeitam – inúmeras cláusulas da Declaração diariamente (além disso, a maior parte dos países ainda era colônia em 1948). Considero, assim, que não há nenhuma forma de universalidade nos direitos humanos, uma vez que as culturas mundiais são heterogêneas, cada uma com suas peculiaridades e valores intrínsecos.

Na linha de raciocínio de Bobbio, há três grandes gerações de direitos humanos: a primeira englobaria os chamados direitos individuais, oriundos das revoluções burguesas, dentre as quais destacam-se a Revolução Francesa e a Americana. Encontram-se nesta geração direitos como o de propriedade e mesmo o direito à vida e à integridade física.

Na segunda geração estariam os direitos sociais, originários das lutas operárias contra os industriais, e nela estariam inclusos direitos como o de greve e o de formação de sindicatos, por exemplo. Esta geração originou-se a partir das Revoluções Industriais, com o surgimento da classe de operários, o proletariado. Neste contexto histórico, o qual ideologicamente era dominado pelo liberalismo, os direitos humanos eram invocados pelos grandes industriais para justificar sua invasão na África e na Ásia, que alegavam estar “promovendo o desenvolvimento cultural dos bárbaros, levando a civilização até eles”, quando na verdade apenas visavam ao lucro obtido com a expansão do mercado consumidor e com a exploração da mão-de-obra barata (em alguns casos, até escrava) presente nestes países.

A terceira grande geração englobaria os direitos dos povos, direitos como o da ecologia e que envolvem gerações futuras. Historicamente, esta geração surgiu após a Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento de uma maior conscientização ecológica. Coincidentemente, esta conscientização surge no momento em que começa o declínio do modelo industrial nos países desenvolvidos, que passam a transferir suas plantas industriais para os países de Terceiro Mundo, passando a uma era pós-industrial, o que de certa forma impede o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos. Este impedimento ocorre tendo em vista que estes países são quase proibidos de se industrializarem maciçamente devido à conscientização ecológica mundial, e também não têm condição (financeira e mesmo intelectual, já que os trabalhadores não têm grande preparo) para ingressar nas indústrias de ponta.

Após esta brevíssima introdução aos direitos humanos, proponho-me a, resumidamente, expor a evolução histórica e algumas características do processo da globalização.

Este processo é tão antigo quanto a humanidade, uma vez que desde os antigos impérios nota-se a tendência à interação (em maior ou menor grau) entre os países. O caso grego, com Alexandre Magno e a expansão helenística pelo oriente é exemplar, tendo em vista que uma das causas do início da desagregação (e que, mais tarde, após a morte daquele imperador, geraria a ruptura do império entre os generais) dos soldados de Alexandre em torno dele foi justamente o fato de ele ter aceito incorporar elementos do Oriente à sua cultura grega.

Ainda na Antiguidade Clássica o exemplo maior é Roma, que conseguiu perdurar por mais de um milênio e relacionou-se tanto econômica quanto culturalmente com quase todas as civilizações européias, norte-africanas e grande parte das asiáticas.

Notadamente, é no século XV, com as expansões ultramarinas, que se observa mais nitidamente a ocorrência da globalização, uma vez que, com a descoberta da América e a conseqüente expansão comercial, aumentou-se gradativamente o contato entre os vários países.


No século XIX, com o neocolonialismo e a expansão imperialista dos países desenvolvidos, começa-se uma nova fase neste processo, instaurando-se mais claramente a Divisão Internacional do Trabalho, segundo a qual os países desenvolvidos produzem manufaturas e, em troca, por um preço mais baixo, adquirem matérias-primas dos países periféricos, lógica que persiste ainda mais agravada nos dias de hoje.

A fase mais atual da globalização, na qual estamos vivenciando em fins do século XX e que vamos analisar em conjunto com a problemática dos direitos humanos, decorre do final da Guerra Fria, baseada numa maior integração entre os países. Nesta fase, não obstante haja realmente uma maior integração entre países, esta é desproporcional, uma vez que desprotege os países periféricos e promove um acirramento da concentração de renda em todo o globo, pauperizando ainda mais estes países.

Expostos rapidamente os conceitos com os quais pretendo trabalhar neste artigo, proponho então a analisar o tema principal: a definição dos direitos humanos sob o paradigma da globalização. Uma característica da globalização, como já visto durante a expansão industrial do século XIX, é a imposição de valores culturais de um país sobre o outro (no século XIX, conforme já explicitado, os capitalistas pretendiam promover a civilização nos países afro-asiáticos, considerados bárbaros até então).

Em fins do século XX esta questão torna-se ainda mais central, uma vez que empresas transnacionais, utilizam-se da bandeira dos direitos humanos de forma a infiltrarem-se nos países orientais e ex-comunistas e ampliarem tanto o mercado consumidor quanto a reserva de mão-de-obra.

Neste sentido, os americanos conseguiram expandir seu american way of life em todo o planeta, assegurando uma cultura consumista, capaz de absorver sua produção industrial. Durante a Guerra Fria, por exemplo, os norte-americanos atacavam os soviéticos justamente com base nos direitos humanos – para os ianques, eles não eram respeitados em grau algum nos países comunistas. Apesar de fundamentado este ataque aos soviéticos, uma vez que realmente ocorreram abusos aos direitos fundamentais naqueles países, os americanos não teriam legitimidade para propô-lo, uma vez que eles também os desrespeitaram – e desrespeitam – diariamente.

Esta defesa dos direitos humanos, no entanto, só ocorre na medida em que o país ou a região são importantes para as multinacionais (ou como mercado consumidor ou como fornecedor de mão-de-obra barata e matéria-prima). Quando não são importantes em nenhum aspecto econômico, tornam-se regiões simplesmente esquecidas pelo capital, como ocorre na África Negra ou em grande parte da Ásia, onde suas populações vivem em condições pré-históricas em pleno século XX. Aliás, é mesmo da lógica globalizacionista que haja milhões de miseráveis para que uns poucos vivam com opulência.

Outra forma de deturpação dos direitos humanos na lógica da globalização está na manutenção do status quo, o que pareceria um absurdo em se tratando de direitos humanos, uma vez que estes são originários dos grandes períodos revolucionários da história humana. Deste modo, impede-se que as populações reajam contra seus governos por estes serem democráticos e defensores dos direitos humanos.

No entanto, são poucos os regimes estritamente democráticos no globo, já que em sua maioria – e, no caso, podemos incluir o Brasil – são regimes disfarçados, com sistemas eleitorais falhos, que privilegiam as elites econômicas do país, normalmente favoráveis à subordinação econômica ao Fundo Monetário Internacional.

Quando um país rebela-se contra esta situação, mesmo que democraticamente, é impugnado nas relações internacionais. É o caso do Iraque (até 1988, grande aliado dos Estados Unidos da América), do Irã, da Líbia (até a nacionalização, por Kadafi, das empresas petrolíferas, o que proporcionou a independência econômica daquele país) e de tantos outros que, ao exercerem o direito de auto-determinação dos povos, um dos direitos humanos básicos e constantes da Declaração de 1948, são combatidos com a desculpa de estarem infringindo os direitos fundamentais.

Aliás, é mesmo interessante o conceito de democracia vislumbrado pelos estrategistas dos países desenvolvidos, que instalaram ditaduras por toda a América Latina (como no Brasil, Argentina, Panamá, Paraguai e Haiti, entre tantas outras) e financiaram conflitos de pequena intensidade, principalmente na África e na Ásia.

Desta forma, só pode ser democrático, na lógica que impera atualmente, o regime que aceitar as regras impostas pelos detentores do grande capital. São eles quem definem, também, o que seriam os direitos humanos, para quem e quando eles são válidos. Desta forma, os direitos fundamentais são alegados de forma a manter o status quo mundial e produzir maiores desigualdades sociais, e não para trazer uma maior dignidade à vida humana e a igualdade real entre os homens.


A globalização é incompatível com os direitos humanos. Afirmo categoricamente isto, uma vez que aquela é baseada na lógica do mercado capitalista, que proporciona um aumento progressivo das desigualdades sociais, enquanto o objetivo dos direitos humanos é justamente o oposto, ou seja, promover a igualdade real entre os homens.

As desigualdades sociais são ainda mais agravadas com a evolução tecnológica constante, por duas razões básicas: o desemprego e a ideologia de criação de novas necessidades. O desemprego é causado pela automação dos serviços, principalmente com os avanços na área de robótica e informática, tornando supérfluos os trabalhadores menos qualificados . Outra causa do desemprego é a lógica do sistema globalista que, para manter baixos os níveis salariais, torna necessário que uma parcela da população não consiga empregar-se: é o chamado desemprego estrutural.

A questão da criação de novas necessidades é central no capitalismo globalista. No capitalismo do século XIX, a função das indústrias era a de produzir em maior quantidade as mercadorias já existentes, situação que, a longo prazo, poderia garantir que todos tivessem, em maior ou menor escala, acesso àqueles bens. No entanto, no capitalismo de final de século, a produção industrial é cada vez mais voltada à produção de bens supérfluos, criando assim novas necessidades antes inexistentes, como a necessidade de ter um computador, um telefone celular ou um carro último tipo. Contudo, nem todos têm acesso a estes bens, o que acaba por excluir parcela considerável da população mundial mesmo aos bens mais essenciais, como alimentos ou mesmo água.

Nota-se, assim, que não é absolutamente do interesse dos países desenvolvidos e das elites dominantes a efetiva proteção dos direitos fundamentais. Estes apenas são defendidos até o momento em que convergem aos interesses dominantes e o sentido destes direitos é deturpado quando há interesses divergentes em jogo. Neste sentido, é interessante, objetivando demonstrar o descaso com que os países desenvolvidos dispensam aos países subdesenvolvidos, observar um trecho do Planejamento Político 23, escrito por Kennan (diretor do Departamento de Estado dos EUA até 1950):

“Nós temos cerca de 50% da riqueza mundial, mas somente 6,3% de sua população… Nesta situação, não podemos deixar de ser alvo de inveja e ressentimento. Nossa verdadeira tarefa, na próxima fase, é planejar um padrão de relações que nos permitirá manter esta posição de desigualdade… Para agir assim, teremos de dispensar todo sentimentalismo e devaneio: nossa atenção deve concentrar-se, em toda parte, em nossos objetivos nacionais imediatos… Precisamos falar de vagos e… irreais objetivos, tais como direitos humanos, elevação do padrão de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos que lidar com conceitos de poder direto. Então, quanto menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor.”

Dado o exposto, nota-se que não será possível a efetiva defesa dos direitos humanos na atual lógica econômica que predomina no mundo, segundo o qual há uma resificação do homem, i.é., o homem torna-se coisa, e a mercadoria torna-se mais valiosa que o homem

Cabe, portanto, à sociedade civil, independentemente dos Estados Nacionais e de qualquer instrumento político institucionalizado (por meio de ONGs, por exemplo), promover a luta pelos Direitos Humanos, pois sua legitimidade não pode estar presa ao Estado, cuja política é sempre favorável àqueles que o financiam (leia-se: FMI e empresas transnacionais), em prejuízo à população excluída.

Bibliografia:

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX. Trad: Marcos Santarrita. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

PERRAULT, Gilles. O Livro Negro do Capitalismo. 1ª ed. São Paulo: Record, 1999

CHOMSKY, Noam. O Que o Tio Sam Realmente Quer. 2ª ed. Brasília: UnB, 1999BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 9ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 25ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1999

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