Cartão furtado

Consumidor não deve pagar despesa feita em cartão furtado

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1 de dezembro de 2001, 17h29

O juiz da 4ª Vara Cível da Comarca de São Paulo, Guilherme Santini Teodoro livrou um consumidor de pagar compras feitas na Europa em seu cartão de crédito que foi furtado. O valor das despesas chegava a US$ 13 mil. O juiz anulou a cláusula que obrigava o pagamento das despesas.

“Cuida-se de cláusula abusiva por exonerar a responsabilidade da empresa, transferindo-a com grande desvantagem e excessiva onerosidade para o consumidor”, afirmou o juiz em seu despacho.

De acordo com ele, o consumidor “que não deu causa às despesas, não pode responder pela falta de diligência dos estabelecimentos comerciais, deixando de comparar a assinatura do estelionatário com a do autor existente no cartão de crédito com que realizadas as operações”.

O consumidor foi defendido pelo advogado Pablo Dotto, do escritório Aureliano Monteiro Neto Advogados Associados. Segundo o advogado, o fato mais interessante no caso é que “o cliente foi desobrigado a pagar as despesas, mesmo não tendo previamente cancelado o cartão de crédito ou comunicado o furto”. A administradora de cartão de crédito e o banco recorreram da sentença.

Veja a decisão

Poder Judiciário São Paulo

Juízo de Direito da 4ª Vara Cível Central

Processo nº 000.98.050.943-2

Vistos e examinados estes autos de ação ordinária ajuizada por Paulo Fernando Bins de Vasconcellos contra Banco Francês e Brasileiro S/A e BFB Administradora de Cartões de Crédito e Serviços Ltda.

Segundo a petição inicial e sua emenda a fls. 49/51, muito embora o autor não seja responsável por compras feitas com o seu cartão de crédito após furto de que os réus foram avisados, estes insistem na cobrança do débito resultante. Daí o pedido de declaração de inexigibilidade da dívida e encargos por compras feitas com o uso irregular do cartão de crédito.

Em contestação, o banco formula preliminar de ilegitimidade passiva e, quanto ao mérito, requer a improcedência do pedido inicial porque a administradora do cartão é serviço prestado por empresa distinta e independente (fls. 90/92).

A administradora, com a contestação a fls. 93/97, também requer a improcedência porque, de acordo com cláusula contratual válida e eficaz, a responsabilidade por despesas efetuadas com o cartão antes da comunicação da subtração é do titular.

Réplica anotada (fls. 107/119).

Frustrada a conciliação (fls. 171), a instrução realizou-se com depoimento pessoal do representante legal dos réus (fls. 172/173) e inquirição de uma testemunha (fls. 283), sobrevindo a apresentação de memoriais (fls. 293/302 e 303/310).

É o relatório.

Rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva do banco.

Trata-se de cartão de crédito bancário, emitido pelo banco ou pela administradora associada, integrante do mesmo grupo econômico.

Nessa modalidade de cartão de crédito, o titular tem a opção de pagamento diferido das despesas, mediante financiamento ou empréstimo ajustado em seu nome pela administradora do banco.

Em tal operação a administradora é, de fato, representante do banco, do ponto de vista econômico. O ajuste acaba por vincular não a administradora mas sim o titular do cartão de crédito perante o banco financiador.

Assim, o potencial interesse do banco na administradora de cartão de crédito conferido a titular que é também seu cliente justifica a sua manutenção no pólo passivo da ação. Em sendo o emitente do cartão, maior a razão para que integre a relação processual.

Quanto ao mérito, a ação é procedente.

As despesas discutidas resultaram de uso do cartão nos dias 20 e 21 de março de 1998 (fls. 26).

Não se controverte sobre os seguintes fatos afirmados na petição inicial: (a) são falsas as assinaturas atribuídas ao autor nos comprovantes de tais despesas (fls. 28/41) e (b) o autor não percebeu de imediato o furto do cartão, sendo certo que nos dias em que efetuadas tais despesas, na Polônia, estava em outros locais (fls. 43/45).

Portanto, não há dúvida de que as despesas resultaram de uso irregular ou fraudulento do cartão de crédito, mediante grotesca falsificação da assinatura do autor, como está dito na petição inicial.

Chegando ao Brasil na manhã de 21 de março de 1998, o autor comunicou a subtração aos réus assim que possível, as 11:25 hs do dia 22, momento do cancelamento (fls. 42).

É certo que o autor agiu diligentemente, solicitando o cancelamento tão logo percebeu a subtração. Os réus, aliás, não apontaram qualquer conduta negligente do autor, inclusive no que se refere à guarda do cartão de crédito. O autor sequer contribuiu ou concorreu culposamente para o furto.

Ora, nesse contexto, o autor não está obrigado a pagar as despesas em questão, apesar de realizadas antes da comunicação do furto. Não assinou as notas de despesas nem cometeu infração contratual.

A cláusula 62.1 do contrato (fls. 24), que atribui ao titular responsabilidade por compras ou saques com cartão realizados antes da comunicação de extravio ou subtração, é nula de pleno direito.

Waldirio Bulgarelli, em Contratos Mercantis, ed. Atlas, 5ª ed. 1990, pág 613/614, qualifica semelhante cláusula de vexatória. E ressalva a indispensabilidade de adotar-se posição e proteção ao consumidor “pois o desamparo do titular do cartão é incompreensível. E é interessante, o propósito, observar a tendência entre nós de as empresas se livrarem dos custos e dos riscos à custa do consumidor.

Cuida-se de cláusula abusiva por exonerar a responsabilidade da empresa, transferindo-a com grande desvantagem a excessiva onerosidade para o consumidor, apesar de este último em nada ter contribuído para a subtração (art. 51, I, III< IV e XV do Código de Defesa do Consumidor). O autor, que não deu causa às despesas, não pode responder pela falta de diligência dos estabelecimentos comerciais, deixando de comparar a assinatura do estelionatário com a do autor existente no cartão de crédito com que realizadas as operações. Essa falha de diligência é risco do empreendimento e não do autor. Os réus têm de garantir adequada segurança na prestação dos seus serviços. Auferem lucro com a sua atividade e com os serviços que prestam. Obtendo lucros, devem arcar com os riscos do negócio. Ubi emolunentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda. aplica-se também a teoria do risco profissional desse modo o uso fraudulento do cartão de crédito é ato montado contra a administradora ou contra o banco emitente, devendo estes suportar-lhes as conseqüências.

Não se pode igualmente esquecer de que é de consumo a relação jurídica resultante do contrato celebrado entre as partes.

A Lei 8.078/90, de 11 de setembro, prescreve que é consumidor toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Fornecedor, a pessoa física ou jurídica que comercializa produtos ou presta serviços, entendendo-se serviço como qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

O autor é pessoa física destinatária final dos serviços prestados pelos réus. Aplicáveis, portanto, as normas do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, que trata da responsabilidade objetiva do prestador de serviços pela reparação dos danos causados aos consumidores, especialmente a do seu parágrafo 3º, que prevê a exclusão da responsabilidade em casos restritos. Excluem o nexo causal a prestação eficiente do serviço e a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Os réus não demonstraram prestação eficiente do serviço e culpa exclusiva de terceiro ou mesmo do autor. Pelo contrário, como visto, os estabelecimentos comerciais, por cujos atos os emitentes do cartão respondem (ar. 34 do Código de Defesa do Consumidor), não tiveram o cuidado de verificar a assinatura. A administradora é que tem responsabilidade de fornecer aos estabelecimentos informações e condições para segura identificação do titular. Além disso, como afirmou a petição inicial, as despesas discutidas ultrapassaram, em curto espaço de tempo, o limite do cartão de crédito. Essa circunstância revela descuido ou falha do serviço da administradora ou de quem suas vezes fazia na concessão de autorização para as operações já que expressivos gastos em tão curto espaço de tempo, padrão incompatível com o perfil de utilização normal de um cartão de crédito, geravam suspeita, segundo a experiência ordinária e o curso normal das coisas, recomendando bloqueio da autorização para se exigir, por exemplo, a confirmação da operação por telefone, pelo próprio titular no momento em que estava no estabelecimento solicitante da autorização. Então, não é mesmo viável atribuir responsabilidade ao autor.

A doutrina não discrepa desse entendimento. Assim Gerson Luiz Carlos Branco, em O Sistema Contratual do Cartão de Crédito, ed. Saraiva. 1998, pág. 152, para quem “O risco pela eventual utilização do cartão por um terceiro não autorizado não pode ser transferido para o titular, mesmo pelo período da efetiva perda até a comunicação da administradora. Extraviar um cartão, ser furtado ou roubado não é um ato ilícito ou qualquer outro fato que constitua uma fonte de obrigações. Fosse o cartão de crédito um título que representasse um direito em si mesmo, a questão mudaria de figura, mas como é apenas um documento de identificação nada há para perder.

A jurisprudência também se orienta nesse sentido, como se verifica de precedente do Superior Tribunal de Justiça no julgamento de RESp. nº 165.727-DF, 4ª Turma, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, publicado em RSTJ 115/369. extraí-se do acórdão o seguinte excerto.

“Por fim, vale ressaltar que no Ag nº151.948-RJ já tive oportunidade de tratar de tema semelhante, como se vê da decisão que proferi:

“Trata-se de agravo interposto contra decisão do Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que negou seguimento ao recurso especial, manifestado contra acórdão relatado pelo Des. Sérgio Cavalieri Filho, que traz a seguinte ementa:”

“Responsabilidade civil. Cartão de crédito furtado. Compras efetuadas antes da comunicação do furto. Fato do serviço. Riscos do empreendimento. Falta de cautela do estabelecimento vendedor. Inexistência de culpa exclusiva do titular do cartão. Responsabilidade da empresa exploradora do negócio.

Como prestadora de serviços, correm por conta da empresa exploradora de cartão de crédito do seu empreendimento. Destarte, cabe-lhe arcar com os prejuízos decorrentes do furto, roubo ou extravio do cartão, salvo prova inequívoca de ter o evento ocorrido por fato exclusivo do titular. A demora na comunicação do furto não se erige em causa adequada se a prova evidencia que ela teria sido inócua em face da falta de cautela do estabelecimento vendedor e por terem sido efetuadas as compras antes do prazo normal de comunicação. Pelo fato culposo do estabelecimento vendedor, que não atentou para a assinatura grosseiramente falsificada, o título do cartão não pode ser responsabilizado por não ter com aquele nenhum vínculo jurídico.

Desprovimento do recurso”

“Sustentam os recorrentes que o acórdão recorrido negou vigência aos arts. 159 e 160 do Código Civil. Insurgem-se contra aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, aduzindo que a sua atividade-fim não tem por objetivo a entrega de produtos ao consumidor final. Razão não lhes assiste, todavia.

“O aresto recorrido concluiu pela aplicabilidade do referido dispositivo consignado os seguintes fundamentos: primeiro, porque as empresas de cartão de crédito são prestadoras de serviços aos titulares de cartão, pelo credenciamento e abertura de crédito, caracterizando uma relação de consumo entre o titular do cartão e o emissor deste; segundo, porque “o fornecimento de serviços, consoante artigo 14, CDC, responde independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores”, em razão da “teoria do risco do empreendimento”, segundo a qual “todo aquele que se dispões a exercer alguma atividade no campo do fornecimento de bens e serviços tem o dever de responder pelos fatos e vícios resultantes do empreendimento independentemente de culpa”; terceiro, porque não ficou comprovada a culpa exclusiva do titular do cartão pelo evento. Não vislumbro, portanto, a legada vulneração do artigo159 e 160.

“Pelo exposto, desprovejo o agravo”.

Ante o exposto, julgo a ação procedente para declarar a inexigibilidade da dívida resultante das operações destacadas a fls. 26, devendo os réus estornar da fatura do cartão de crédito do autor o valor com encargos respectivos, sem qualquer ressalva ou notícia para qualquer órgão de proteção ao crédito.

Os réus pagarão, em igual proporção, custas e despesas processuais com correção monetária desde os desembolsos e honorários advocatícios arbitrados em vinte por cento do valor atualizado da causa, considerando o grau de zelo do profissional e a qualidade técnica do trabalho realizado.

P.R.I.

São Paulo, 15 de março de 2001.

Guilherme Santini Teodoro

Juiz de Direito

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