Ação afirmativa

Advogado defende políticas de proteção de grupos desfavorecidos

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23 de agosto de 2001, 14h09

Aos poucos, o Brasil está se propondo a enfrentar uma das questões jurídicas mais complexas e polêmicas: como proteger, e eventualmente “compensar”, os grupos sociais que se encontram em condições desvantajosas, muitas vezes em razão de práticas discriminatórias?

No plano mundial, esse tema ganhou maior destaque a partir do início da década de 60, com a ascensão de Kennedy à presidência dos Estados Unidos. Foi ele, inclusive, que, pela primeira vez em um texto normativo, utilizou o termo que passou a designar as políticas oficiais e os programas privados que visam proteger determinados grupos sociais, qual seja: “affirmative action” (a tradução literal sugere uma certa redundância. Daí, porque os juristas portugueses preferem a expressão “ação positiva”).

Apenas dois meses após assumir o cargo, Kennedy viu-se pressionado pela opinião pública, em face das promessas feitas durante a campanha política e o aumento dos conflitos raciais, a tomar medidas enérgicas tendentes a estabelecer uma igualdade de oportunidades e a erradicar a discriminação e o preconceito existentes no mercado de trabalho, o que foi efetivado, em um primeiro momento, no âmbito do governo federal.

Já seu sucessor, Lyndon Johnson, não só conseguiu pressionar o Congresso Nacional a estender tais medidas para o setor privado, como impôs, também na órbita federal, a adoção de práticas favoráveis a membros de minorias étnicas e raciais (as mulheres foram beneficiadas posteriormente), de variadas formas (ex. recrutamento, contratação, transferência, níveis salariais e benefícios indiretos, promoção e treinamento), com o escopo de corrigir as desigualdades decorrentes de discriminações existentes ou passadas.

Essas previsões legais, como é sabido, não só geraram discussões judiciais de grande repercussão, das quais o caso Bakke (1978) é a mais notória, como terminaram se expandindo pelo mundo. Assim é que, nos dias atuais, a ação afirmativa – compreendida como o conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição, por meio da adoção de medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes – encontra-se expressamente prevista em vários tratados internacionais (ex. “Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial” da ONU) e textos constitucionais (ex. Canadá, Índia, África do Sul e Namíbia).

No tocante ao Brasil, a Constituição Federal em vigor, embora seja pródiga em previsões e princípios que, em tese, encorajam tais práticas, não hospeda uma norma que autorize a ação afirmativa de forma generalizada. A rigor, o único preceito específico sobre o tema, consiste no dispositivo que assegura reserva percentual dos cargos e empregos públicos a deficientes físicos (art. 37, VIII).

Esse cenário, contudo, não impediu o surgimento de várias propostas que buscam, em particular, uma aproximação com a experiência vivenciada pela sociedade norte-americana. Além de algumas diretrizes mais amplas (constam do Programa Nacional de Direitos Humanos, entre outras propostas, “desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta” e “apoiar as ações da iniciativa privada que realizem discriminação positiva”) e de normas legais isoladas, são inúmeros os exemplos de projetos legislativos versando sobre o tópico que podem ser apontados, os quais tratam desde a instituição de “quotas de ação afirmativa para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, educação superior e aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES)” (PLS n. 650/99, de autoria do Senador José Sarney), até a reserva “de vagas nas universidades públicas para alunos egressos da rede pública de ensino” (PLS n. 298/99, de autoria do Senador Antero Paes de Barros).

Ao se avaliar o tema com o mínimo de isenção e seriedade, porém, as dificuldades que o envolvem tornam-se facilmente perceptíveis.

Restringindo-se a um único exemplo, constata-se que um mesmo assunto, como é o caso da inclusão obrigatória de artistas negros em publicidade oficial, embora se encontre previsto no art. 289 da Constituição Estadual da Bahia, que estabelece que “sempre que for veiculada publicidade estadual com mais de duas pessoas, será assegurada a inclusão de uma negra”, e tenha sido incluído na legislação dos municípios do Rio de Janeiro (a Lei Municipal n° 2.325/95 previu a inclusão de “no mínimo, quarenta por cento de artistas e modelos negros na idealização e realização do comercial ou anúncio”) e de São Paulo (a Lei Municipal n° 12.353/97 assegurou a participação de indivíduos negros em eventos publicitários promovidos pela Prefeitura, mas sem estabelecer uma quota mínima, pois esta, apesar de prevista originalmente, foi vetada pelo Prefeito Celso Pitta), foi integralmente vetado pelo Governador do Mato Grosso do Sul, em duas oportunidades, sob a alegação de inconstitucionalidade.

De fato, como é possível compatibilizar a igualdade constitucionalmente assegurada entre homens e mulheres, com a discriminação profissional que a elas foi imposta durante décadas? Como é possível favorecer indivíduos negros, sem que tais benefícios representem uma “discriminação reversa” contra indivíduos brancos?

Um passo importante, talvez, seja observar que o chamado “sistema de quotas”, apontado nos exemplos legais citados, e com o qual os legisladores pátrios costumam identificar a ação afirmativa, não apenas consiste em uma “espécie” desta, como também se trata de uma modalidade considerada inconstitucional no próprio ordenamento jurídico norte-americano (cf. Christopher Edley Jr.: Not All Black and White: Affirmative Action and American Values).

Existem outras formas de ação afirmativa, como a oferta de treinamentos profissionais diferenciados para membros de certos grupos sociais, que são considerados mais adequados para a correção dos desequilíbrios existentes, por serem menos “inclusivas”.

Em segundo lugar, é preciso ponderar que o Brasil começa a estimular tais políticas justamente no momento em que países que foram pioneiros nesta seara começam a abandoná-las ou restringi-las substancialmente, como é o caso dos Estados Unidos.

Neste aspecto, e deixando de lado as particularidades políticas de cada país, é fundamental conhecer melhor os estudos alienígenas que servem de bases para tais mudanças, pois se é inegável que, se de um lado as políticas de ação afirmativa promoveram avanços significativos em termos de integração, também é certo que isto teve um custo social. É necessário, portanto, uma visão prévia e real do que se quer alcançar, avaliando-se os riscos envolvidos no processo.

Por fim, não se pode ignorar que a ação afirmativa se desenvolveu em um cenário jurídico completamente distinto daquele adotado pelos países que se filiam ao sistema jurídico românico-germânico, como é o caso do Brasil. Muitas são as diferenças que decorrem dessa premissa, das quais as doutrinas adotadas na aplicação da e qual protection clause e a possibilidade de uma “interpretação construtiva” do Direito, por parte dos magistrados norte-americanos, são apenas dois exemplos.

Não se quer com isso asseverar que a ação afirmativa colide, de forma insuperável, com os ditames constitucionais pátrios. Ao invés, essas políticas, com os devidos cuidados, podem ser muito úteis na concretização de verdadeiros ideais de justiça.

Talvez a razão esteja com o Presidente Fernando Henrique Cardoso, quando afirmou que “devemos buscar soluções que não sejam pura e simplesmente a repetição, a cópia de soluções imaginadas para situações onde também há discriminação, onde também há preconceito, mas num contexto diferente do nosso”.

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