Truque desleal

Costa Leite acusa administração pública de desvio ético

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8 de agosto de 2001, 16h49

Os governos federal, estaduais e municipais praticam um “desvio ético” ao usar o Judiciário para adiar o cumprimento de suas obrigações. A afirmação é do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Paulo Costa Leite.

“É um claro desvio ético, que deve ficar registrado nesta Casa do povo, o fato de a administração pública apostar num dos maiores males do Poder Judiciário – a morosidade, para postergar o cumprimento de obrigações, para empurrar com a barriga”, disse. Costa Leite pediu que os senadores examinem essa questão “grave e séria” durante a apreciação da Reforma do Judiciário.

O presidente do STJ deu essas declarações durante sua participação na audiência pública da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, onde se manifestou também o advogado Ives Gandra Martins, sobre Reforma do Judiciário.

Ao defender a adoção de mecanismos de contenção de recursos para os Tribunais Superiores, como o efeito vinculante e a repercussão geral da questão, o ministro Paulo Costa Leite lembrou que 85% dos recursos que tramitam no STJ têm num dos pólos da relação processual a administração pública, seja municipal, estadual ou federal.

Segundo ele, uma das principais conseqüências do efeito vinculante seria justamente corrigir o “desvio ético” da administração pública. “Na questão do FGTS, por exemplo, nós não teríamos tantas dificuldades. Defendo que a súmula vinculante seja adotada em causas repetitivas, de massa, e não em questões de Direito Tributário, Civil e Penal”, afirmou.

Veja, na íntegra, a declaração do presidente do STJ.

“Quero, em primeiro lugar, senador Bernardo Cabral, congratular-me com a Comissão pelo convite feito ao expositor de hoje (jurista Ives Gandra Martins), que realmente enriqueceu os debates a respeito da Reforma do Poder Judiciário. Em segundo lugar, quero agradecer a V. Exa.. o convite que me formulou, permitindo-me reafirmar aqui alguns conceitos, pontos de vista, que tive a oportunidade de expender quando aqui estive nesta Comissão em audiência pública. Um dos pontos marcantes na exposição com que nos brindou o professor Ives Gandra Martins diz respeito aos mecanismos de contenção de recursos para a instância extraordinária.

Demarcou-se aqui ser fundamental para a perfeita prestação dos serviços jurisdicionais neste País a valorização das instâncias ordinárias. Vale dizer: só devem chegar às instâncias extraordinárias (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho) em primeiro lugar, aquelas questões que sejam efetivamente relevantes para a Federação, porque estes são os tribunais da Federação.

A Câmara dos Deputados, e aqui vai o nosso elogio ao trabalho que se fez, encontrou, a meu juízo, o ponto de equilíbrio nessa questão. Porque a grande crítica que se fazia ao Supremo Tribunal Federal, à época na qual se discutia a argüição de relevância, era quanto ao excesso de subjetivismo na aferição da relevância. No texto que chegou da Câmara dos Deputados, fala-se em repercussão geral da questão. Este é um critério objetivo de aferição de relevância. Então trazemos para um campo em que se permite o debate e a discussão, o que não ocorria à época da argüição de relevância. Esse me parece um ponto essencial. Fala-se na súmula vinculante.

A controvérsia é muito grande, a começar pela Mesa (referindo-se aos participantes da audiência pública Ives Gandra Martins, o presidente do STF, ministro Marco Aurélio Mello; relator da Reforma do Judiciário no Senado, Bernardo Cabral; o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Antonio Carlos Viana Santos, e o ministro do TST, Ives Gandra Martins Filho). Na magistratura, de um modo geral, há uma grande controvérsia. Por exemplo, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) apresenta uma proposta alternativa que me parece merecer meditação: a súmula impeditiva de recurso.

Tenho defendido em certa medida a adoção da súmula vinculante. Em primeiro lugar, súmula vinculante é para causas repetitivas, é para causas de massa. Não vamos pensar em súmula vinculante para questões de Direito Tributário, Direito Civil, Direito Penal etc. São para causas de massa tipo o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

Temos hoje 50 mil recursos especiais no Superior Tribunal de Justiça esperando distribuição. Não temos orçamento para pagar horas extras aos funcionários para que possa pôr em dia a distribuição no Superior Tribunal de Justiça.

Há outro aspecto que merece ser aqui analisado: a meu juízo, a súmula vinculante não se volta para o juiz. Porque o juiz, em 95% ou quase 99% dos casos julga, até por razões pragmáticas, de acordo com a jurisprudência consolidada nos Tribunais. A súmula vinculante tem um papel relevante para vincular a administração pública. Esse é o grande objetivo e o grande propósito da súmula vinculante. Nós não teríamos nessa questão, por exemplo do FGTS, todas essas dificuldades se tivéssemos a súmula vinculante – do STF (no plano constitucional) ou do STJ (no plano infraconstitucional), cada um na sua competência.

Não precisaria sequer da lei que os senhores tiveram que votar aqui no Congresso Nacional, a administração estaria vinculada à decisão final do Poder Judiciário. Então, por esse ângulo, me parece que a súmula vinculante tem que ser realmente objeto de uma ampla análise, de um debate, não só nesta Casa, mas no conjunto da sociedade de um modo geral.

O ministro Marco Aurélio acentuou um ponto relacionado com a própria súmula vinculante, que trata da excessiva litigiosidade da administração. Hoje, no Superior Tribunal de Justiça, em 85% de recursos em andamento figuram em um dos pólos da relação processual um das esferas da administração pública – União, Estado e Município. Não estou dizendo, longe disso, que nesses 85% dos casos nós tenhamos apenas a tentativa de protelação. Não. Certamente a administração vai ter razão em alguns desses casos, mesmo que poucos. É um claro desvio ético, que tem que ficar consignado nesta Casa do povo, o desvio ético da administração pública quando aposta em um dos males do Judiciário, talvez o seu maior mal – a morosidade, a lentidão – para postergar o cumprimento de obrigações, para empurrar com a barriga.

É o Estado-Administração inviabilizando o Estado-Juiz; é um desvio ético que nós não podemos admitir. E na Reforma os senhores tem que efetivamente examinar essa questão, que é grave e séria.

Agora chego ao ponto que considero fundamental em tudo isto. Tenho dito repetida vezes por este Brasil afora, em todos auditórios a que compareço, que haverá uma enorme frustração nacional se a Reforma do Judiciário restringir-se à Constituição. A Reforma do Judiciário tem que ser completada com uma ampla reforma do processo brasileiro – processo civil e processo penal. Aí é que está o grande problema. É no anacronismo processual, que se projeta fundamentalmente em dois planos.

Primeiro, no sistema recursal. Nós temos numerosos recursos. Não é possível que cada decisão interlocutória proferida no processo seja passível de recurso pela via do agravo de instrumento. Isso não é compatível com um sistema judiciário que se pretenda capaz de resolver as demandas da sociedade. Nós temos que inverter os pólos. A regra não deve ser a da recorrebilidade dos interlocutórios. A regra deve ser a exceção dos interlocutórios: só quando houver dano de natureza irreparável para a parte. Fora disto devemos deixar tudo concentrado na sentença.

O segundo ponto é o sistema de execução dos julgados, que está inteiramente superado. Sentença não é para ser executada, sentença é para ser cumprida. Não é possível que, depois de definirmos tudo no processo de conhecimento (cognição), citarmos o devedor para embargos da execução, quando tínhamos, na verdade, era que intimá-lo para cumprir a decisão. Isto deve ser também objeto de acurada análise quando for debatida a reforma das leis processuais. Estamos muito empenhados nisto, juntamente com o senador Bernardo Cabral. Temos uma comissão no Superior Tribunal de Justiça trabalhando de modo a simplificarmos o processo brasileiro. Esta simplificação é, na verdade, a modernização do sistema processual, que significará a melhoria substancial da prestação dos serviços judiciais nesse País.

Chego, finalmente, a um ponto que sei de grande controvérsia: o relativo ao controle externo do Poder Judiciário. Comungo do pensamento do professor Ives Gandra Martins: Poder não pode ser controlado por órgão; Poder é controlado por Poder. É o princípio. Os senhores controlarem o Poder Judiciário está correto, está certo. Vamos encontrar mecanismos para os senhores controlarem o Poder Judiciário. É o Poder Legislativo exercendo a sua plena competência. Agora, criar um órgão para controlar um Poder não me parece se conformar a um princípio que está na Constituição – da autonomia dos Poderes.

Quero deixar claro que é necessário fazer algo. Temos problemas no Judiciário, sobretudo relativos à gestão administrativa. Apresentei uma proposta à esta Casa no sentido de que o Conselho Nacional da Magistratura (incluído na proposta aprovada na Câmara dos Deputados) seja integrado exclusivamente por magistrados. Seria coordenado pelo presidente do STF; um ministro do STJ atuaria como corregedor e teria a representação de todos os segmentos da magistratura brasileira, federal, estadual, trabalhista etc).

O que tenho defendido é que este órgão não possa se restringir apenas a questões disciplinares. As questões que exigem correição são importantes, mas penso que devemos ter para este órgão um papel mais significativo, e que faça com que ele tenha possibilidade de ser um órgão central de um grande sistema. No plano da jurisdição há todo um sistema: o juiz dá a sentença, há o recurso para o tribunal regional, chega ao STJ ou ao STF. Mas quanto ao plano da gestão administrativa, os Tribunais são ilhas. Temos em cada Tribunal um corregedor que pode funcionar em relação à justiça de primeiro grau, mas não funciona em relação ao Tribunal.

Então, teríamos que ter um órgão central do sistema, que seria este Conselho, responsável pela coordenação, planejamento e ações integradas do Poder Judiciário. Este Conselho contaria com a participação do Ministério Público e com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil como veículos de provocação, que levassem a este órgão os problemas que chegassem a eles, já que as pessoas não teriam condições de se dirigirem diretamente ao Conselho Nacional da Magistratura. O MP e o Conselho Federal da OAB funcionariam como órgãos de provocação, tendo assento e voz no Conselho. Não teriam voto porque quem denuncia não vota, este é o princípio.

Este modelo que estamos preconizando talvez seja capaz de resolver os grandes problemas que o Judiciário brasileiro enfrenta em relação à gestão administrativa. Penso que, quanto à prestação jurisdicional, se fizermos essas mudanças na Constituição e com uma boa reforma nós vamos conseguir efetivamente melhorar muito essa prestação, que já pontualmente vem sendo atacada. A recente criação dos Juizados Especiais Federais é um bom exemplo disso. Muito obrigado aos senhores.”

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