Interesse público

Divulgação de fitas clandestinas não obriga Globo a indenizar

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5 de agosto de 2001, 19h34

Veículos de comunicação não podem ser condenados a pagar indenização, por danos morais, pela simples divulgação de conversas gravadas de funcionários públicos suspeitos da prática de irregularidades.

O entendimento é da 30ª Vara Cível Central do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao negar indenização de R$ 10 mil ao ex-assessor da Câmara Municipal de Guarulhos, Antonio Carlos Simões.

O ex-assessor queria ser indenizado pela TV Globo por alegados danos produzidos com a divulgação de gravações clandestinas feitas na Câmara. Representada pelo advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, a emissora informou que a gravação foi feita por pessoa que preferiu não se identificar. A liberdade de imprensa garante que o veículo de comunicação omita o nome de suas fontes.

O juiz Márcio Antonio Boscaro entendeu que o assunto era de interesse público, já que envolvia suposto esquema de corrupção de um funcionário público. Boscaro ilustrou sua decisão fazendo um paralelo com o raciocínio da Suprema Corte dos Estados Unidos que, em recente decisão, firmou que “a imprensa não pode ser punida por publicar informações de interesse público fornecida por alguém que as tenha obtido de forma ilegal”.

A disputa se inscreve no contexto do enorme volume de iniciativas contra a imprensa em que administradores e personagens públicos têm buscado no Judiciário um escudo para se proteger de notícias que não atendem seus interesses.

No choque entre a liberdade de imprensa e o direito à intimidade e à vida privada, neste caso, o juiz ficou com o interesse público, por entender que “as referidas reportagens não tiveram intenção de difamar ou caluniar quem quer que seja e tiveram o único intuito de informar a população, posto que a liberdade de expressão também deve ser exercida como meio de controle de atividade de funcionários públicos”.

Veja, na íntegra, a decisão.

Poder Judiciário

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Trigésima Vara Cível Central

Processo nº 000.99.090514-4 (2202).

Antonio Carlos Simões ajuizou ação ordinária de indenização por danos morais, com pedido de tutela antecipada, contra TV Globo Ltda., alegando que no dia 26 de maio de 1999, um aparelho transmissor que estava escondido no gabinete do Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos foi apreendido, fato que então rendeu algumas matérias jornalísticas.

Apesar de ser ignorado o autor dessa gravação clandestina e criminosa, algumas das fitas gravadas foram parar nas mãos da requerida, que as transmitiu em seus telejornais, imputando ao requerente conversas que apresentariam conteúdo ilícito, acompanhadas de comentários feitos pelos apresentadores de cunho objetivo e de reprovação.

Tal divulgação gerou uma avalanche de matérias jornalísticas a respeito do tema, que ainda está sob investigação da Polícia Civil. Está-se, portanto, em face de um aparente choque entre a liberdade de imprensa e o direito à intimidade e à vida privada, o qual, porém, é apenas aparente, pois são inadmissíveis em processo as provas admitidas por meios ilícitos.

Assim, se ela não se presta para uso em processo judicial, para que ela se prestaria, a não ser para enxovalhar a honra do requerente? Ademais, o requerente não reconhece como sua a voz que aparece na gravação e a requerida não pode provar o contrário, o que caracteriza como gratuita a veiculação do conteúdo das fitas, fato que atinge a honra do requerente.

Acrescentou ele que não sabe porque seu nome foi envolvido nesse episódio e que a simples ligação de seu nome a uma suposta rede de corrupção que existiria na cidade de Guarulhos já é o suficiente para causar-lhe danos morais. Por isso e citando normas legais, julgados e lições de doutrina que entende aplicáveis ao caso, ajuizou, o requerente, a presente ação com o fito de obter uma indenização pelos danos morais acarretados, estimada em R$ 10.000,00 e para que a decisão que condenar a requerida seja veiculada no mesmo telejornal responsável pela divulgação dessas fitas, com pedido de tutela antecipada parcial, para que a requerida seja impedida de continuar a divulgá-las. Juntou documentos (fls. 18 a 19).

O despacho de fls. 90 a 92 indeferiu o pedido de tutela antecipada, decisão essa mantida pelo despacho de fls. 96 a 97.

Citada, a requerida apresentou contestação, na qual argüiu, preliminarmente, inépcia da exordial e, no mérito, alegou que veiculou reportagem jornalística divulgando o teor de fitas gravadas por terceiro, que não quis ser identificado, da forma como o permite a Lei de Imprensa. Asseverou que, como órgão de imprensa, tem não apenas o direito, mas o dever de informar a sociedade sobre todos os fatos de interesse público e geral e, ao assim agir, apenas exerce um direito legítimo, não cometendo atos ilícitos e, portanto, não se sujeitando ao pagamento de qualquer indenização.


Ademais, as referidas reportagens não tiveram intenção de difamar ou caluniar quem quer que seja e tiveram o único intuito de informar a população, posto que a liberdade de expressão também deve ser exercida como meio de controle de atividade de funcionários públicos.

Não agiu com intenção de ofender, mas apenas de informar, dentro do regular exercício de um direito, especialmente porque veiculou notícias ligadas a atividades públicas. Acrescentou que várias reportagens escritas já haviam sido publicadas sobre o tema, antes mesmo da veiculação das referidas reportagens feitas pela requerida, sendo certo que esses fatos continuaram a gerar outras reportagens, até porque deram causa à instauração ação civil pública conta os envolvidos. Trouxe aos autos os documentos de fls. 112 a 122.

Replicou o requerente, a seguir, refutando as alegações da requerida e reiterando suas posições iniciais.

Instados a especificar provas, o requerente pleiteou a produção de provas oral e expedição de ofícios, ao passo que a requerida postulou a produção de provas oral e documental.

Por ordem judicial, vieram aos autos os documentos de fls. 167, 169 a q70, 172, 226, 245 a 246 e 253 a 308, além de cópias de ação civil pública em trâmite perante a 6ª Vara Cível de Guarulhos, autuados em apartado e dos quais foi dada ciência às partes.

É o relatório.

Decido:

Conheço diretamente do pedido, nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, pois a matéria litigiosa é exclusivamente de direito e porque os fatos encontram-se comprovados pelos documentos acostados aos autos, sendo desnecessária a produção de outras provas.

Quanto a esse aspecto, observo que a questão em debate nestes autos versa apenas sobre o eventual cometimento de abuso na liberdade de imprensa, cometido pela requerida (e para cuja constatação, basta a mera análise da referida reportagem televisiva), o qual teria acarretado danos morais ao requerente, não havendo, ainda, necessidade da prova da existência desses danos, cuja comprovação ocorre “ex facto”, quando da análise de cada caso concreto submetido à apreciação judicial.

No sentido dessa conclusão, trago à colação os seguintes trechos de dois julgados:

a) “A evidência, não será com a produção de prova oral que restará comprovada a violação de princípio constitucional garantidor de direitos básicos da pessoa. Ao julgador é que compete, examinando a prova documental produzida, dizer se houve ou não ofensa a dispositivo constitucional que assegura o respeito à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade” (Apelação Cível nº 80.346-4/9, da C. 1ª Câmara de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça);

b) “Imprensa – Indenização por dano moral – Julgamento antecipado da lide – Caso em que não era necessária a produção da prova em audiência, estando a petição inicial instruída, quanto ao bastante, com o exemplar do jornal que publicou a notícia” (RSTJ 99/184).

Repilo a preliminar de inépcia da exordial, pois essa narra de forma adequada os fatos nos quais se embasa para formular pedido certo e determinado. E tanto não é inepta que, baseada em seus termos, a requerida ofertou extensa resposta nos autos, exercendo adequadamente seu direito à ampla defesa. E a adequação desses fatos à pretensão deduzida pelo requerente com base neles é matéria de mérito, a ser apreciada no momento oportuno.

Quanto ao mérito, trata-se de ação ordinária de indenização por danos morais, calcada no fato de que a requerida divulgou, em seus telejornais, o conteúdo de fitas de áudio que continham gravações clandestinas, supostamente relacionadas à pessoa do requerente, fato que lhe acarretou violações à intimidade, à honra e à vida privada.

A requerida, por seu turno, aduziu que se limitou a divulgar o conteúdo de uma fita gravada por terceiros, direito que lhe assiste, o que fez sem intenção de ofender o requerente e que, como esse é funcionário público, há interesse público na divulgação e apuração de eventuais denúncias contra ele, no exercício de seu cargo.

Constata-se, portanto, que a discussão travada nestes autos cinge-se à análise da legalidade do agir da requerida e, para tanto, mister o estudo das normas legais citadas pelas partes, na defesa de seus interesses postos em Juízo.

O requerente aduziu que a requerida violou normas da Lei de Imprensa e da Constituição Federal, ao passo que essa asseverou que tais diplomas legais dão plena sustentação jurídica aos atos que praticou.

Destarte, na essência, trava-se nestes autos uma discussão acerca da eventual compatibilização de dois princípios constitucionais, qual seja, a inviolabilidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (artigo 5º, inciso X) e a livre manifestação do pensamento e da informação (artigo 220, “caput*), devendo ser analisado se algum deles deve prevalecer sobre o outro.


Para tanto, mister a análise do teor das reportagens editadas pela requerida, reproduzidas na fita de vídeo cassete anexada aos autos.

Essas reportagens mostram a transcrição de fitas de áudio que teriam sido clandestinamente gravadas no interior da Câmara Municipal de Guarulhos, que trazem conversas de que o requerente teria tomado parte. Os apresentadores desses telejornais fazem menção ao nome do requerente, mas em nenhum momento é feita qualquer conotação depreciativa à sua pessoa, limitando-se esses apresentadores a afirmar que se trata de caso envolvendo denúncias de corrupção naquele órgão da administração municipal de Guarulhos.

Ao contrário do alegado pelo requerente, tal fato não era inédito, pois ele próprio trouxe aos autos cópias de anteriores reportagens jornalísticas sobre o tema (fls. 37 a 39 e 76 a 79) e a divulgação desses fatos, pela requerida, apenas teve o condão de fazer com que, a partir de então, outros órgãos de imprensa passassem a discorrer sobre o caso.

Mencionou-se, inclusive, em uma das edições do telejornal gravada na fita anexada aos autos, anterior reportagem de igual teor, que já teria sido levada ao ar (e cujo conteúdo não consta dessa fita), bem como é entrevistado o Promotor de Justiça Nadin Mazlun, que discorreu sobre o fato de que o teor dessas fitas já estava sendo por ele analisado e que um inquérito fora instaurado para a apuração de responsabilidades.

Assim, constata-se que o fato noticiado nessas reportagens não era estranho ao conhecimento do Ministério Público na Comarca de Guarulhos e que, por versar sobre denúncia de suposta rede de corrupção infiltrada na Casa de Leis daquele município, estava sendo objeto de investigações.

E, de fato, com base nessas investigações, foi instaurada ação de responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa contra diversos vereadores e funcionários daquela Casa, dentre os quais o ora requerente.

Tal ação tramita perante a 611 Vara Cível da Comarca de Guarulhos, sob nº 312/00 e em seu bojo foi concedida liminar determinando a indisponibilidade dos bens do ora requerente, decisão essa mantida por v. acórdão emanado da C. 3ª Câmara de Direito Público do E. Tribunal de Justiça.

Como se não bastasse, o requerente também foi denunciado pela Justiça Pública, perante a 4ª Vara Criminal da Comarca de Guarulhos, como incurso nas sanções dos artigos 316 “caput” (doze vezes) e artigo 317 “caput”, ambos combinados com os artigos 29 “caput” e 69 “caput”, todos do Código Penal.

Assim, o certo é que a requerida recebeu cópias de fitas de áudio provenientes de gravações clandestinas que estavam sendo feitas no interior da Câmara Municipal de Guarulhos, denunciando suposta rede de corrupção infiltrada no Poder Público Municipal daquela cidade e cuidou de divulgá-las, sem tecer nenhuma consideração depreciativa sobre a pessoa do requerente, tampouco dirigindo ofensas gratuitas contra ele, ao assim proceder.

E o simples fato de serem essas fitas clandestinas não lhes torna a divulgação proibida ou ofensiva a quem quer que seja, pois, se não se prestam como meio de prova em ação criminal, servem como indícios da prática de diversos atos ilícitos da maior gravidade que estariam sendo cometidos no seio de órgão público, em que estaria ocorrendo malversação de dinheiro do povo da cidade de Guarulhos, o qual tinha todo interesse em disso tomar ciência (e mesmo direito), até como forma de poder melhor escolher seus governantes, quando novamente chamado às urnas para decidir quem deveria gerir os destinos de sua cidade.

A alegação de que essas fitas seriam uma montagem e que a voz do requerente nelas não estaria presente, tratando-se, portanto, de uma armação para prejudicá-lo, não tem o condão de impedir a divulgação dessas fitas, pelo simples motivo de que elas, de qualquer forma existem e que apurações de irregularidades estavam sendo encetadas por causa dessas fitas.

Ademais, é induvidoso que um equipamento para gravação de fitas de áudio foi clandestinamente instalado no gabinete da presidência da Câmara de Vereadores de Guarulhos (conforme o comprovam os documentos de fls. 40 a 57), fato mais que suficiente para que se tornasse de interesse público a divulgação de eventuais fitas relacionadas a esse caso.

Quanto ao mais – reitere-se – as referidas reportagens limitam-se a comentar o fato de que havia denúncias referentes a eventuais irregularidades que estariam ocorrendo na Câmara Municipal de Guarulhos, as quais estavam sendo objeto de investigação e tanto eram sérias essas denúncias, que ações cíveis e criminais foram instauradas com base nesses fatos, inclusive contra a pessoa do requerente.

Não se tratou, portanto, de uma reportagem despropositada, efetuada com o intuito de ofender o requerente.

A existência dessas irregularidades e a conseqüente investigação desencadeada por conta delas são fatos verídicos e notórios, cuja divulgação e comentário, portanto, em nada podem agravar a honra do requerente.


Pese embora o respeito devido a qualquer cidadão e a homens públicos, como o requerente, o certo é que as referidas reportagens não lhe atacaram a honra objetiva ou subjetiva, da forma como por ele alegada, tampouco acarretaram gravame à sua intimidade ou vida privada.

Apenas fatos verídicos e notórios são ali destacados e não há intenção deliberada de ofender, senão de chamar a atenção para esses fatos que os responsáveis pela reportagem entendem deploráveis e que são objeto de investigação.

Como se não bastasse, o requerente exerce função pública, conforme ressaltado na exordial, (fl. 02); por isso, é natural que os diversos aspectos relacionados às suas funções sejam exaustivamente debatidos.

Anoto, por oportuno, que a Suprema Corte dos Estados Unidos, em recente decisão, tomada pela maioria de 6 de seus 9 membros, decidiu que “a imprensa não pode ser punida por publicar informações de interesse público fornecida por alguém que as tenha obtido de forma ilegal”, conforme reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, em sua edição de 27 de maio de 2001, na página 20, do caderno “Mundo”.

Tal reportagem destaca que uma fita com a gravação de uma conversa telefônica foi entregue anonimamente ao apresentador de uma rádio, que a divulgou em seu programa. Então, os protagonistas do diálogo entraram na Justiça, alegando que a difusão de informações obtidas por meio de ilegal interceptação de sua conversa constituía violação do direito à privacidade, assegurado pela Constituição.

O julgado considerou que havia, no caso, um conflito entre interesses individual e público da mais alta ordem, mas que informações sobre figuras públicas e com interesse público devem ser divulgadas, não prevalecendo sobre elas a direito à intimidade da pessoa envolvida.

Citou-se, ainda, na reportagem, que os dois principais jornais do país, “The New York Times” e o “The Washington Post” elogiaram tal decisão, reconhecendo-a como uma vitória da liberdade de imprensa.

E essa decisão tem perfeita aplicação para o direito pátrio, em que há norma constitucional protetora do direito à intimidade e, além disso, norma constitucional que assegura a liberdade de imprensa.

A prevalência de um desses princípios sobre o outro deve ser decidida pelo Juiz, na análise de cada caso concreto submetido à sua apreciação, pois não há possibilidade de harmonização entre ambos.

No sentido da conclusão esposada pela presente decisão, trago à colação a lição de Pedro Caldas, inserta em sua obra “Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral’, Editora Saraiva, 1997, da qual transcrevo os seguintes trechos:

“Posto o conflito e escrutinado o sistema, não se encontrando critério apto de salda, o órgão aplicador, no caso, o juiz, terá de fazer uma opção, perante o caso concreto, por um dos termos da alternativa: ou a privacidade, ou a liberdade de imprensa. A decisão judicial não Importará na ab-rogação de qualquer delas ou de ambas as normas em conflito, salvo se o sistema previsse tal saída. A decisão judicial, uma vez passada em julgado, pode até se contrapor a qualquer norma do sistema, justo porque existe norma assegurando esse efeito” (… ) (p. 90);

“Em se tratando, como se trata, de colisão entre direitos constitucionais fundamentais (vida privada versus liberdade de Imprensa – rectius direito à informação) em que um delas não pode ser considerado prima facie de importância hierárquica superior ao outro, impõe-se ao intérprete procurar, na resolução do conflito, harmonizar os dois direitos. Demonstrada impraticável essa harmonização, um dos direitos poderá prevalecer sobre o outro, valendo salientar que o critério da prevalência será aplicado no caso concreto, de tal sorte que, a depender das circunstancias fáticas, ora um, ora outro, será considerado, o direito prevalecente.

“Realmente, posto jurisdicionalmente sob a consideração do Estado-juiz, o conflito deverá ser desatado em favor de uma das partes, outorgando-se ao julgador um amplo espaço de manobra para colocar os fundamentos de sua decisão. Esse espaço de atuação concedido ao juiz não é por ele utilizado de forma arbitraria porque suas decisões devem ser fundamentadas em elementos de razoabilidade. Além do mais, a chamada decisão judicial nunca é fruto das inclinações e das idéias preconcebidas de uma pessoa, considerando-se o resultado final, filtrado em diversas instâncias judiciais, com a intervenção, inclusive, de órgãos judicantes colegiados, refletirá, ao fim e ao cabo, uma decisão impessoal, indicativa do grau de desenvolvimento jurídico e social do ambiente em que lavrou a colisão dos direitos” (…) (p. 94/5);

“Não se esqueça que o embate não se dá pura e simplesmente entro o direito individual de alguém preservar a sua vida privada e um direito coletivo à informação, pois o direito à vida privada é individual quando particularizado, quando sob consideração a vida de alguém, mas, no fundo, retrata um Interesse coletivo, eis que todos almejam um seio de reserva sobre parte de sua vida, por isso que não é incomum que sob a cepa de um direito privado haja um interesse público.” (p. 99).


E, no caso presente – repita-se – entendeu-se que a divulgação do conteúdo dessas fitas era um direito que assistia à requerida, dado o interesse público envolvido na apuração dos fatos nelas descritos, o que deve prevalecer sobre o direito à intimidade dos funcionados públicos mencionados nas gravações.

No sentido desse conclusão, trago à colação os seguintes julgados:

a) “Indenização – Responsabilidade civil – Danos morais – Lei de Imprensa – Notícia veiculada em jornal – Descrição de acontecimento verdadeiro e do interesse público – Legítimo exercício do direito de crítica configurado – Verba não devida – Recurso provido” (JTJ (LEX) 182/81);

b) “Indenização – Responsabilidade civil – Abuso na liberdade de imprensa – Rigor no tratamento dos fatos, utilizando-se de jargão pertinente, que não o caracteriza – Ação improcedente – Recurso não provido” (JTJ (LEX) 178/51);

c) “(…) No Estado de Direito, vigorante no país, onde a Administração Pública direta ou indireta e fundacional subsume-se aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade etc (Constituição da República, artigo 37), aflora-se saliente e imprescindível o papel dos veículos de comunicação de todos os gêneros, que diante da revelação de fatos gravíssimos e verossímeis (…), tem o dever cívico e jurídico de Informar, denunciar, exprobrar e alertar os agentes públicos, no exercício primordial da livre manifestação do pensamento o da tarefa de fiscalizar e reprimir atos atentatórios à dignidade humana e ao Estado” (JTJ (LEX) 207/105);

d) “Não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação, entre outras condutas, a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes, desde que não se trate de matéria de natureza reservada ou sigilosa, e a crítica inspirada pelo interesse público, não estando presente o ânimo de injuriar, caluniar ou difamar” (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível nº 219.490-1).

Tem-se, portanto, que no bojo da referida reportagem, não ocorreu abuso na liberdade de expressão ou deliberada intenção de ofender a honra, ou violar a vida privada ou a intimidade do requerente – destarte, não há que se falar em danos morais a serem indenizados.

Em arremate, transcrevem-se os seguintes trechos de artigo escrito por Marcos Barbosa Pinto, publicado em Revista de Direito mercantil nº 111, p. 171 a 184, sob o título “Liberdade de Imprensa e responsabilidade civil dos meios de comunicação”, dadas as preciosas lições que encerra para a exegese do caso ora em análise:

“Outra importante função exercida pela imprensa atualmente é a de fiscalização dos atos do Poder Público, do bom funcionamento das instituições democráticas e da honestidade dos funcionários públicos e governantes. Neste contexto destaca-se a capacidade da imprensa de combater a corrupção, através da investigação e de denúncias que informam o cidadão e permitem ao Poder Judiciário apurar irregularidades e punir culpados.

Esta função de fiscalização, assim como as demais funções dos meios de comunicação, não pode ser exercida sem ampla liberdade de imprensa. Os cidadãos não estarão aptos a posicionar-se coerentemente ante os fatos políticos a menos que obtenham notícias jornalísticas corretas e que possam ter acesso a diferentes fontes de informação. Se notícias incorretas e parciais não puderem ser contrabalançadas pelos demais meios de comunicação, ou se fatos relevantes para o público não puderem ser publicados, a capacidade de decisão da sociedade fica mutilada e a democracia perde sua força. O mesmo ocorre se não houver espaço na imprensa para opiniões divergentes, ou se a imprensa, de qualquer modo, for impedida de fiscalizar o poder público e de expressar os anseios populares.

É a imprensa, em última instância, que possibilita o exercício político no atual cenário social. A respeito dessa afirmação, cabe recordar aqui algumas interessantes considerações de Hanna Arendt sobre política. Para essa autora, a ação da política só pode desenvolver-se onde existe uma esfera pública, isto é, onde está presente aquela instância em que os cidadãos agem em conjunto, conversam entre si, discutindo assuntos de interesse geral com vistas a formações de convicções comuns. A concepção de política de Hanna Arendt é dominada pela palavra e pelo discurso – pela comunicação – por um agir em conjunto em função do interesse comum. É precisamente a ação política que, na opinião dos antigos, compartilhada por Hanna Arendt, leva à dignificação do homem, pois é através dela que o ser humano pode mostrar-se, ser visto o ouvido” (… )

“O ponto central é que a responsabilização civil, quando prevista de modo inadequado pela legislação, pode levar os meios de comunicação à prática de auto-censura. Em outros termos, a imprensa pode deixar de divulgar informações controvertidas, ou mesmo notícias verdadeiras de difícil comprovação em juizo, para evitar ações de indenização. Desta forma, informações de interesse dos cidadãos e essenciais ao debato público deixam de ser publicadas.

Ademais, o papel investigativo exercido pelos meios de informação jornalística também pode ser prejudicado, sobretudo em questões envolvendo denúncias de corrupção no Poder Público. Sabemos que a participação da imprensa neste casos é essencial, tanto denunciando quanto exercendo pressão para que os culpados sejam devidamente punidos” (… )

“Para finalizar, é oportuna uma última consideração sobro a importância da liberdade de imprensa para a democracia, tendo em vista Direito constitucional. No parágrafo único, do art. 1º, a Constituição de 1988 assim determina: “Todo poder emana do povo, que exerce por meio de representantes ou diretamente, nos termos desta Constituição” (grifamos). Analisando a fundo este dispositivo constitucional verificamos quão grandioso e importante é o ideal de liberdade de Imprensa. Sem liberdade de imprensa não há mesmo como pensar em democracia, pois o livre acesso a informação é fundamental para aqueles que, segundo a Constituição, são verdadeiras fontes de todos os poderes: os cidadãos. Sem liberdade de imprensa a determinação constitucional de que o poder deve ser exercido pelo povo não passaria de letra morta”.

Destarte e, em conclusão, impõe-se a improcedência da presente ação.

Ante o exposto, julgo a ação Improcedente e, por conseguinte, Condeno o requerente no pagamento das custas e despesas processuais, atualizadas desde o desembolso, bem como em honorários de advogado, que arbitro, nos termos do § 4º, do artigo 20, do Código de Processo Civil, em R$ 2.000,00.

P.R.I.

São Paulo, 29 de junho de 2001.

Márcio Antonio Boscaro

Juiz de Direito

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