A reforma do Código Penal

Novo Código Penal pode acelerar círculo vicioso da violência

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10 de setembro de 2000, 0h00

Os meios de comunicação noticiaram que chegou ao Congresso Nacional projeto de lei, de autoria do Poder Executivo e que tem por objeto a reforma da Parte Geral do Código Penal.

Tal projeto foi uma das medidas que fazem parte do Plano Nacional de Segurança Pública e logo que se noticiou que o mesmo tornaria mais severas as penas ou o regime de seu cumprimento. No entanto, uma análise mais atenta do texto apresentado, leva à conclusão oposta quando se faz um balanço daquilo que foi proposto e seu resultado final efetivo.

Verifica-se que há três principais medidas que, efetivamente, tornam mais duras as punições. A primeira delas diz respeito à exigência do cumprimento de um terço da pena para a progressão do regime (art. 33, parágrafo 2º), quando hoje tal exigência é de um sexto do cumprimento da pena (art. 112 da Lei de Execução Penal); a segunda é relativa à previsão de causas de aumento de pena em algumas hipóteses de concurso de agentes, tais como em relação àquele que promove ou organiza a cooperação do crime ou dirige a atividade dos demais agentes; a terceira diz respeito ao aumento da pena de multa, majorando-se o mínimo (de dez para sessenta) e o máximo (de trezentos e sessenta para setecentos e vinte) de dias-multa aplicáveis.

Por outro lado as medidas que tornam mais brando o cumprimento das penas constituem a essência do projeto.

Assim, vejamos:

1- Fica revogada a parte principal da Lei do Crimes hediondos, no tocante à obrigatoriedade do cumprimento de pena de pena em regime integralmente fechado ou seja, nos crimes mais graves previstos na lei, penal como latrocínio, homicídio qualificado e aquele praticado em atividade de grupo de extermínio, estupro, atentado violento ao pudor, extorsão mediante seqüestro e tráfico de entorpecentes passa a haver a possibilidade da progressão do regime fechado para o semi-aberto com o cumprimento de um terço da pena e acesso ao livramento condicional com o cumprimento de metade da pena.

2 – Apenas para relembrar: hoje, tais delitos exigem o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, com a possibilidade de se obter livramento condicional com o cumprimento de dois terços da pena (art. 83, V, do Código Penal). Outra conseqüência da alteração é que o traficante de drogas condenado a pena inferior a quatro anos poderá receber tão somente pena alternativa e o condenado a pena inferior a oito anos poderá ingressar desde logo no regime semi-aberto (do qual só não foge quem não quer…).

Boa parte dos condenados por tráfico de drogas ganhará a liberdade ou a semi-liberdade imediatamente, pela aplicação da lei mais branda, tendo em vista que os condenados a pena de oito anos ou superior são absoluta minoria.

Condenados por estupro e atentado violento ao pudor até a pena inferior a oito anos de reclusão poderão cumprir pena desde o início no regime semi-aberto….

3 – Elimina-se o exame de qualquer requisito subjetivo para a progressão do regime de cumprimento de pena, ou seja o exame do mérito do condenado, substituindo tal critério pela prática ou não de falta grave.

Ora, é sabido que muitos dos criminosos mais perigosos não praticam qualquer falta grave diretamente justamente para que tenham mais oportunidade de voltar à liberdade com mais rapidez.

Mandam matar no interior da cadeia mas não o fazem pessoalmente. Esse tipo de criminoso evoluirá automaticamente de um regime para outro se não praticar falta grave, não obstante possa haver um prognóstico de que ele evidentemente voltará a delinqüir.

Um maníaco sexual que não pratique falta grave durante o cumprimento de pena terá a oportunidade de voltar a ter acesso a potenciais vítimas com muito mais rapidez….

Tal mudança parece feita com a intenção de propiciar maior rapidez na volta dos criminosos à liberdade, diminuindo a necessidade de construção de novos presídios. O problema é que não haverá a menor garantia de que os piores criminosos não voltarão delinquir….

4 – Passa a haver a possibilidade de se aplicar pena alternativa aos que praticaram crimes com violência ou grave ameaça à pessoa, o que é expressamente vedado pelo Código Penal atualmente (art. 44, I, do Código, cuja vedação é suprimida).

Assim, condenados a menos de quatro anos de prisão por tentativa de roubo à mão armada e em concurso de agentes poderão receber pena alternativa, mesmo que tenham sido presos no interior de uma residência após ter mantido uma família como refém ou dentro de um banco na mesma situação.

Lembre-se que a pena mínima habitual para tentativa de roubo qualificada é de um ano, nove meses e dez dias, muito inferior ao limite que impediria a pena alternativa….

5 – Acabam as restrições para a fixação de regime semi-aberto ou concessão de pena alternativa aos condenados reincidentes, tal como previsto atualmente no Código Penal (art. 33, parágrafo 2º, “b” e “c”), o que facilita a concessão de medidas mais brandas àqueles que têm reiterado a conduta criminosa.

Outras considerações poderiam ser feitas ainda quanto a estabelecer máximo de tempo para o cumprimento da medida de segurança, desnaturando a essência daquela sanção penal ou mesmo quanto à limitação ao poder de legislar prevista no art. 5º do projeto, que é absolutamente inconstitucional.

Está claro, portanto, que a alteração proposta pelo Código Penal, cuja discussão ressalvo ser legítima, não favorece a defesa social pois permite que condenados pelos crimes mais graves voltem à liberdade com maior rapidez ou mesmo deixem de entrar no sistema prisional apesar da gravidade do crime praticado.

O texto proposto tem como resultado uma evidente tolerância maior com o traficante de entorpecentes cuja prisão é mais habitual mas acabará favorecendo também o atacadista no comércio de drogas.

É sabido que boa parcela de penalistas brasileiros sempre repudiou a Lei dos Crimes Hediondos e a solução proposta é representativa dessa linha de pensamento.

No entanto, quando o Brasil apresenta índices de violência e criminalidade que estão entre os maiores do mundo, será adequado atenuar o efetivo cumprimento de pena dos piores criminosos?

É evidente que o problema da criminalidade não se resolve somente com a aplicação da lei penal mas também com medidas de justiça social.

Não é à toa que os índices maiores de homicídios se dão na periferia das grandes cidades e não em áreas onde o nível de vida atende os requisitos mínimos de razoabilidade.

Ressalte-se que nem toda criminalidade tem fundo social e não é pela diminuição efetiva da reprovação e prevenção ao delito que a violência diminuirá.

Uma coisa é certa: apesar de o projeto trazer algumas soluções positivas, no seu conjunto não contribuirá com a solução do problema da segurança pública.

Ao contrário, ao acelerar a volta à circulação de criminosos perigosos, quase sempre não recuperados, ajudará a realimentar o círculo vicioso da violência.

Cabe ao Congresso Nacional decidir o que é melhor para o povo brasileiro nesse momento pelo qual passamos.

O autor é também Professor de Direito Penal da Unip (Universidade Paulista), é um dos coordenadores de Comissão instituída no âmbito do Ministério Público paulista para análise da proposta de reforma penal. Foi Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo (entre 1996 e março de 2000) e Presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça do Brasil (1997)

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