Cartórios Virtuais

Receita cria 'cartórios virtuais' atropelando a Constituição

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31 de março de 2000, 13h08

Quem estava satisfeito com a chance de prestar contas ao Leão por meios eletrônicos evitando preocupação com filas, demora no atendimento e estando certo da segurança de suas informações, tem motivos para estar, no mínimo, desapontado. A Instrução Normativa (IN) nº 156, de 22 de dezembro de 1999, da Secretaria da Receita Federal (SRF), criou uma preocupação a mais ao contribuinte que se utiliza desses meios ao instituir Certificados Eletrônicos para serem usados por pessoas físicas e jurídicas em seus relacionamentos com o órgão.

Tais certificados dariam validade jurídica de prova a todos os documentos enviados e recebidos pela SRF, inclusive as declarações anuais de Imposto de Renda, como se fossem documentos em papel, originais e firmadas pelos meios convencionais. Além disso, estes certificados eletrônicos não seriam expedidos pela Receita, mas por pessoas jurídicas de direito público ou privado credenciadas – Autoridades Certificadoras.

Embora esta medida da IN possa parecer positiva, pois previne fraudes, ela está fora da Lei. Estas Autoridades Certificadoras nada mais fazem do que autenticar documentos e reconhecer assinatura digital como um Cartório de Notas Cibernético (eletrônico, virtual, ou digital) – um Cibernotário – conforme artigo de Angela Bittencourt Brasil “A Assinatura Digital”.

Mas, pode a SRF baixar Instrução Normativa legislando sobre autenticação de documento e impondo compromisso jurídico ao contribuinte? Certamente, não. A Constituição Federal (art. 37) diz que a Administração Pública deve obedecer os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade, dentre outros. Segundo José Afonso da Silva o poder regulamentar de um órgão consiste num poder administrativo, função normativa subordinada. Poder limitado. Não é o poder Legislativo e não pode criar normatividade que inove a ordem jurídica.

Neste caso a IN estaria avançando até os limites do Poder Executivo. De fato, a Lei no. 8.935 de 1994 regula as atividades de cartórios e define que autenticação de documento e reconhecimento de assinatura é competência exclusiva dos Tabeliões de Notas. Como a própria IN no. 156/99 equipara documento eletrônico a documento em papel, seria também esta lei a que regula as autenticações eletrônicas. Se esta Lei não se adapta a modernidade da era virtual, então que o Congresso edite outra ou que a altere.

Mas a IN também ofende o princípio da impessoalidade. No artigo 5º, os serviços da SRF na Internet – como o recebimento da declaração de IR, por exemplo – serão doravante priorizados em favor do contribuinte que tiver os Certificados Eletrônicos, o que não deixa de ser uma maneira de obrigar a contratação dos cartórios cibernéticos. O Decreto no. 63.166 de 1968 dispensa exigência de “reconhecimento de firma em qualquer documento produzido no país para ser apresentado e fazer prova em órgão ou repartições públicas federais da Administração Pública direta e indireta.

Como se não bastasse a criação desta obrigatoriedade, a IN causa polêmica por transformar o universo de 11 milhões de declarações, que seguiram via Internet, neste ano (62% do total de declarantes), num poderoso mercado potencial contratante para empresas privadas com Autoridade Certificadora. Fica difícil ver o interesse público de tais concessões, principalmente, sabendo que o sigilo dos declarantes poderá ficar exposto a interesses de empresas privadas. É necessariamente nesse ponto que a Instrução Normativa nº 156 atinge mais um princípio: o da Moralidade.

O parágrafo terceiro do artigo 236 da Constituição determina que o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos. Evidentemente, as Autoridades Certificadoras exerceriam essa atividade sem qualquer concurso ou licitação.

A identificação e autenticação das pessoas que assinam os documentos eletrônicos, segundo a IN, seria feita pela Autoridade Certificadora por meio do sistema cifrado de comunicação assimétrico – ou seja: utilização de duas chaves, uma pública e outra privada. Segundo a Instrução, compete à Autoridade Certificadora, em caso de comprometimento de segurança de sua chave privada, solicitar revogação do certificado de credenciamento e restringir a solicitação de informações aos usuários de dados necessários para o processo de certificação. A IN também responsabiliza a Autoridade Certificadora a disponibilizar nos equipamentos servidores somente serviços indispensáveis à operação de certificação, com o objetivo de reduzir vulnerabilidades do sistema. Tal fato deixa explícito que a Instrução Normativa não se preocupou em assegurar fiscalização às Autoridades Certificadoras, como ocorre com os Tabeliões e órgãos de Corregedoria Judiciária.

Em meio a tantas irregularidades, o que aparentava ser uma medida preventiva e moderna tornou-se mais uma dor de cabeça ao contribuinte.

Revista Consultor Jurídico, 31 de março de 2000.

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