Justiça em prestações

Artigo: Justiça em prestações.

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13 de março de 2000, 0h00

Em setembro de 1999, atendendo a honroso convite da Ordem dos Advogados do Brasil, compareci à XVII Conferência Nacional dos Advogados (Rio de Janeiro, 1º.9.99). Dissertei sobre a necessidade de efetuar-se reforma em nossa cultura judicial. A reforma – sustentei – deve anteceder a tão apregoada reforma constitucional do Poder Judiciário. A mudança cultural dependeria, em substancial parte, de singelas alterações em textos de leis ordinárias.

Minha proposta foi resumida em várias indicações. Dessas, relembro duas, cuja adoção parece-me tão fácil quanto urgente. Ei-las:

“7. é necessário ajustar-se o conceito de prestação jurisdicional, para estabelecer que a sentença não encerra a lide e o Estado-Juiz somente cumpre seu dever, quando entrega à parte vitoriosa o bem da vida objeto do litígio;

8. Não faz sentido a sucessão de três processos autônomos, visando respectivamente o conhecimento, a liquidação e a execução. Urge alterar-se o Art. 459 do Código de Processo Civil, para vedar-se, em qualquer hipótese, a emissão de sentença ilíquida. Necessário, também, alterar-se a Lei processual, para fazer com que a intimação da coisa julgada inicie, automaticamente a execução da sentença;”

Para justificar ambas indicações, desenvolvi breve argumentação, que passo a reproduzir.

Como todos nós sabemos, a função jurisdicional é um dos encargos do Estado. Sua finalidade é compor litígios, com a supremacia da pretensão do litigante vitorioso. A decisão jurisdicional é imposta ao derrotado, substituindo-lhe a vontade.

Tudo se passa assim: uma das pessoas envolvida no conflito aciona o Estado, cobrando-lhe a solução. Quem exerce o direito de ação torna-se credor do Estado, que lhe passa a dever a solução do conflito. Por isso, convencionou-se “prestação jurisdicional” a solução ministrada pelo Poder Judiciário. Assim, a prestação jurisdicional faz desaparecer o conflito de interesses. Não basta, portanto, que o Juiz diga quem está com a razão. Para cumprir seu encargo, o Estado deve impor sua vontade, satisfazendo a aspiração da parte vitoriosa.

Nosso Código de Processo Civil, entretanto, afirma que o Estado cumpre seu encargo com a simples emissão de uma sentença. Estaria aí entregue a prestação jurisdicional. De acordo com a Lei, se o derrotado não obedece à condenação, porque a sentença não lhe fixa o valor (o que ocorre constantemente) sobra para o vitorioso a tarefa de promover a liquidação. Quando o vencido – mesmo após a liquidação – continua a descumprir a condenação o vitorioso é obrigado a propor uma outra ação: chamada executiva. Como já disse em outra oportunidade, no Brasil ninguém (principalmente a Fazenda Pública) cumpre espontaneamente as condenações que sofre.

Temos, então, três processos autônomos e sucessivos (condenatório, de liquidação e execução), cada um deles capaz de chegar ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal.

Para os doutrinadores, a autonomia dos processos homenageia a ciência processual.

Atrevo-me em discordar. Para melhor argumentar, figuro uma hipótese: a prosaica situação do taxista que tem seu automóvel destruído em acidente de trânsito.

Indago: quando o infeliz taxista pede socorro ao Judiciário, ele pretende a simples condenação do causador do dano?

Eu mesmo respondo: a pretensão da vítima é ver seu veículo recuperado, prestando-lhe serviços e produzindo renda necessária à sobrevivência de seu proprietário. A simples condenação do culpado em nada alivia a angústia do trabalhador privado de seu ganha-pão. Assim, o Estado deve ao taxista acidentado, muito mais que a retórica condenação do adversário: deve-lhe o efetivo ressarcimento do dano. Se assim ocorre, prestação jurisdicional não é a singela condenação de uma das partes, mas a efetiva satisfação da parte vitoriosa.

A tripartição dos processos, a meu sentir, carece de qualquer sentido prático. Pelo contrário, resultam dela três conseqüências socialmente nefastas: a sobrecarga do Poder judiciário, que é forçado a tríplice esforço; a frustração do litigante vitorioso e o locupletamento do causador do dano.

Se a obrigação do Estado é prestar jurisdição, acabando com o conflito de interesses, pode-se afirmar que o Brasil distribui justiça como se estivesse adquirindo um aparelho eletrodoméstico: em várias prestações.

O sistema multiprestacional joga sobre o Poder Judiciário carga irracional, tornando necessários juizes em número bem superior ao razoável para obviar a jactância do derrotado.

É necessário, pois, ajustar-se o conceito de prestação jurisdicional, afirmando que o Estado só cumpre sua função, quando resolve o litígio, satisfazendo integralmente a pretensão da parte vitoriosa.

A meu sentir, a correção da anomalia não requer maiores esforços, nem mudanças na Constituição: bastam duas singelas providências, no plano da legislação ordinária:

a) reforma no Art. 459, Parágrafo Único do Código de Processo Civil, vedando-se, em qualquer hipótese, a emissão de sentença ilíquida;

b) alteração do Art. 580 da Lei processual, para que a intimação do trânsito em julgado se transforme no primeiro ato da execução.

Na Conferência da OAB, minha argumentação caiu no vazio. Pelo menos, não vi qualquer referência a ela, nos vários comentários desenvolvidos em torno da Conferência.

Explica-se o esquecimento: A Conferência girava em torno do mote “Utopia e Realidade”. Ora, o advogado é, por natureza, um ser quixotesco, paladino das grandes causas, cultor das soluções heróicas. Natural, pois, a opção pela utopia, e o desprezo pela realidade. Por isso, apenas “renderam IBOPE” as questões palpitantes (Controle externo, Súmula vinculante e quejandos).

Questões terra-a-terra mereceram compreensível desprezo. Passada a euforia utópica, ouso retornar ao tema. Faço-o em termos pragmáticos, no estilo Sancho Pança. Para economizar espaço e paciência do leitor, lembro velho método da maiêutica, para formular três perguntas:

a) é justo que o pobre taxista vitimado pelo acidente seja forçado a demandar três vezes o Judiciário, para ter de volta seu instrumento de sobrevivência?

b) Em tempos “cabeludos”, de aperto financeiro, é correto fazer com que os juizes sejam compelidos a decidir, por três vezes, um mesmo conflito de interesses? – Não podemos esquecer que, em diminuindo o número de processos, reduz-se a necessidade de juizes, cartórios e serventuários. Vale dizer: os juízos hoje em funcionamento renderiam muito mais. Reduzir-se-ia sensivelmente a necessidade de criarem-se novos cargos e ampliarem-se os tribunais já existentes;

c) Para que serve uma sentença condenatória ilíquida?

Acredito que daríamos um grande passo, para aumentar o rendimento de nosso Aparelho Judiciário, se modificássemos o parágrafo único do Art. 459 e o Art. 580. Estes dispositivos passariam a dizer:

Art. 459 – …

Parágrafo único: É vedado ao Juiz proferir sentença ilíquida. A liquidação do pedido, se necessária, ocorrerá no processo de conhecimento.

Art. 580 – A intimação da sentença condenatória passada em julgado inicia, independentemente de qualquer formalidade, a execução.

Com estas pequenas alterações, acredito, afinaríamos com realidade o conceito de prestação jurisdicional. O Estado honraria seu débito para com o autor, não em três, mas em uma só prestação.

Posso não estar correto. É provável que esteja errado. No entanto, ainda não ouvi qualquer argumento convincente, em sentido contrário. De qualquer modo, estou seguro de que a discussão de temas como este deveria anteceder a reforma constitucional. Do contrário, corremos o risco de estarmos dando um salto no escuro.

Revista Consultor Jurídico, 13 de março de 2000.

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