Bens de uso comum

Artigo: Indenização no apossamento de bens de uso comum

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9 de maio de 2000, 0h00

Há alguns anos, na Comarca de Diadema, tivemos a oportunidade de julgar um caso, que pela suas características e raridade merece ser divulgado para que estudantes e mesmos profissionais do direto tenham conhecimento do tema, mesmo porque com a futura duplicação da rodovia dos Imigrantes o assunto certamente voltará a ser discutido. Evidentemente o feito foi decidido e transitou em julgado, inclusive chegou ao Superior Tribunal de Justiça, quando então os Ministros disseram que nunca haviam visto caso semelhante (Rec.Especial nº1.11988 – 0/São Paulo. Rel. Ministro Américo Luz, Brasília 24.06.92 ).

Trata-se de saber se bens Municipais de uso comum do povo, caracterizados por ruas, praças, vielas etc, são indenizáveis ou não, ao sofrerem apossamento administrativo para a construção de estrada de rodagem, por parte do Estado.

A desapropriação de um bem ocorre quando o Poder Público, ou quem autorizado por lei, ou contrato com o governo, sob o fundamento de necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, força o titular da propriedade imóvel a lhe transferir definitivamente, mediante prévia e justa indenização em dinheiro ( Pedro Nunes, Dicionário de Tecnologia Jurídica, Freitas Bastos, 8ª edição ).

O apossamento administrativo, por sua vez, ocorre quando o Poder Público, inexistindo acordo ou processo judicial adequado, se apossa do bem particular, sem consentimento de seu proprietário, obrigando-o a ir a juízo para reclamar a indenização (J.C. de Moraes Salles, A Desapropriação à luz da Doutrina e da Jurisprudência, Ed. Revista do Tribunais, 1980, pg.737).

Nos dois casos o proprietário tem direito a receber indenização pela perda da área atingida.

Normalmente os entes públicos como União, Estado e Municípios ou seus respectivos concessionários promovem a desapropriação ou o apossamento de bens particulares para a execução de obras. Mas se os bens atingidos por apossamento administrativo forem praças, ruas, vielas etc., ou seja bens públicos, haverá direito a indenização?

Aí a questão torna-se incomum e interessante do ponto de vista jurídico, pois desconhecem-se precedentes em nosso direito, e quiçá na jurisprudência estrangeira.

Veremos.

Levando-se em consideração os respectivos proprietários, os bens se dividem em públicos e particulares. Estes são todos os que não pertencem ao domínio da União, Estado e Município (art.65, Código Civil).

Os bens públicos são os classificados no art.66 do Código Civil, em:

I – Os de uso comum do povo – são as coisas públicas, isto é, são utilizáveis por todos como por exemplo: ruas, praças, pontes, estradas, bancos de jardim etc;

II – Os de uso especial – são os destinados aos fins administrativos como edifícios e terrenos utilizáveis pelos estabelecimentos federal, estadual ou municipal;

III – Os dominiais – constituem o patrimônio do poder Público, como as estradas de ferro.

No caso em estudo interessa-nos os bens de uso comum do povo (art.66,I, Código Civil).

São eles de propriedade dos respectivos entes públicos, ou são do povo que tem seu uso? São indenizáveis?

Remontando-se à idéia democrática que presidia a república romana, o uso público é uma manifestação direta do povo soberano, surgindo a tese da não propriedade dos bens públicos; tese mais tarde desenvolvida por Proudhon em sua obra “Traté du domaine public” e Laferviérre em sua obra clássica “Cours Theorique et Pratique du Droit Public et Adminstratif” de 1854, que prevaleceu até o fim do século passado, e que já não tem acolhida neste século, apesar de Ihering e Clóvis Bevilacqua a esposarem.

Interessante observar que baseados em entendimento da época, os Mins. Eduardo Espindola e Carlos Maximiliano, em votos acolhidos em 1940 pelo E. Supremo Tribunal Federal, assinalaram: o primeiro ” Pagar porque ? Onde se viu desapropriar uma rua ? Cumpra-se, desapropriam-se as coisas que estão no comércio; uma rua não, esta é inalienável.” ; e o segundo ” Realmente, os bens que o Estado vende, compra ou desapropria, são os bens privados dos Municípios, os dominicais, mencionados pelo art.66, III, do Código Civil, não as ruas e praças, bens de uso comum do povo, os quais o Município apenas administra, não é proprietário…..” . ( citados no voto na manifestação do Ministério Público Federal no referido recurso especial ).

Isto mostra como em nosso Direito entendia-se que não poderia haver valor econômico a ser indenizado no caso de bens públicos como os em questão.

Porém, modernamente entende-se que o Estado necessita ter o direito de propriedade para poder administrar, zonear, retraçar as cidades, vender suas ruas, praças e estradas, quando elas não mais interessarem aos seus planos urbanísticos, conforme esclarece Eduardo Viana Motta, ( Bens de uso do povo. Natureza jurídica da relação entre eles e a pessoa de direito público- Modos de aquisição, RT 332/49; 333/54; 334/54; 335/67; 366/39; 337/44 e 338/43 ).

Ademais, o Município, por aquisição derivada decorrente de reciprocidade pela aprovação de loteamento, acaba recebendo como proprietário ruas, praças e vielas, de modo que passa a ter o domínio sobre estes bens.

Além disso, quando o Código Civil usa em seu art.65 o verbo pertencer quer exprimir a idéia de propriedade, o que leva a concluir que o nosso direito, à semelhança dos povos da atualidade, adota a relação de propriedade relativamente aos bens de uso comum.

Portanto, os bens de uso público não são áreas de ninguém, ou res nullius; ao contrário podem ser de propriedade da União, Estado ou Município, e muito menos são de propriedade do povo.

Neste sentido, podemos lembrar a opinião de Alfredo Buzaid: “A circunstância de um bem ser de uso comum , tal como a rua ou a praça, não significa que pertença ao povo; seu proprietário é a pessoa jurídica de direito público interno, que o entrega ao uso do povo, sem lhe transferir o domínio. O povo não é titular do bem público de uso comum; é sim, o beneficiário. (Parecer, in Revista de Direito Administrativo, vol.84/323-4, citado no referido V. Acórdão do STJ).

Dessa forma, em havendo apossamento administrativo com a perda da propriedade, o proprietário, não importando qual seja, deve ser indenizado, sob pena de enriquecimento ilícito, pois o apossamento de um bem sempre importa em aumento de patrimônio de quem o recebe em detrimento de quem o perde.

Ademais, o art.2º do Dec. lei 3.365/41 não exclui nenhum bem da possibilidade de desapropriação e o art.5º, XXIV da Constituição Federal não limita também os bens que podem ser desapropriados.

Ante o exposto, é lícito concluir que os bens de uso comum do povo, previstos no art.66, I, do Código Civil, são bens de propriedade dos entes públicos que os administra e têm seu domínio, sendo o povo apenas beneficiário; podem ser desapropriados pela entidade administrativa superior, mediante pagamento de indenização. No caso de apossamento administrativo também caberá indenização, evitando-se, assim, além da ilegalidade jurídica, o enriquecimento ilícito daquele que deles se apossam.

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