Corte de ponto de grevistas

Conheça o parecer da OAB contra o corte de ponto de grevistas

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7 de junho de 2000, 13h29

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) aprovou nesta terça-feira (07/06) parecer que declara inconstitucional o corte do ponto dos servidores públicos federais em greve. O estudo foi feito a pedido do presidente Reginaldo de Castro à Comissão Nacional de Direito Social da entidade.

O parecer considera inconstitucional o Decreto nº 1.480/95, o qual tem sido utilizado pelo governo para justificar o corte do ponto dos funcionários em greve. O posicionamento da OAB deve subsidiar as entidades representativas dos servidores em ações judiciais propostas para reaver o pagamento integral dos salários

A seguir, os principais trechos do parecer:

Resumo: Servidor público federal – direito de greve – art. 37, VII, da CF – Decreto nº 1.480, de 3.5.1995 – decreto autônomo – manifesta inconstitucionalidade.

1. Em razão de visita à sede da Ordem dos Advogados do Brasil em 1º de junho de 2000, de comissão dos servidores públicos federais em greve, o Excelentíssimo Senhor Presidente Nacional, Doutor Reginaldo Oscar de Castro, solicitou ao signatário, em caráter de urgência, a emissão de parecer sobre a viabilidade jurídica de o Governo Federal proceder ao desconto de dias parados em razão de greve, estribado no Decreto nº 1.480, de 3 de maio de 1995. De fato, segundo cópia de contra-cheque trazida a exemplo, procedeu-se a descontos de vencimentos sob rubrica baseada no referido decreto, assim consignada: “faltas-paralisa. Dec. 1.480/95”.

2. Assim, tem como objeto o presente parecer proceder a uma análise do Decreto nº 1.480, de 3.5.95, que “Dispõe sobre os procedimentos a serem adotados em casos de paralisações dos serviços públicos federais, enquanto não regulado o disposto no art. 37, inciso VII, da Constituição”, em face do Ordenamento Constitucional em vigor, mormente em relação ao apenamento do servidor que se encontra exercendo o direito de greve.

3. Inicialmente, merece registro que o decreto sob comento pode ser classificado como um decreto autônomo, ou seja, é independente no mundo jurídico, não se prende a lei nenhuma que eventualmente visasse regulamentar.

4. Nota-se que o decreto sob exame, ato de manifesto abuso, busca mascarar-se como uma regulamentação do Regime Jurídico Único dos Servidores Civis da União – RJU (Lei nº 8.112/90), ao referir-se aos artigos 116, X, e 117, I, que aludem, na realidade, a faltas ao serviço e não a greve, espécies de ausências ao trabalho de naturezas absolutamente diversas e inconfundíveis. Diga-se, aliás, que o RJU nada tratou sobre greve, razão pela qual o decreto que pretenda regulamentar aquela lei não poderia cuidar do tema, sob pena de evidente extrapolação de seu limite, de forma inconstitucional, portanto.

5. Tão inábil a dissimulação que acabou por citar expressamente o artigo 37, inciso VII, da Carta Magna, na ementa e no artigo 1º, dizendo que “Até que seja editada a lei complementar” nele prevista, que as faltas decorrentes de greve serão tratadas segundo os termos do Decreto. Aquele artigo constitucional, sim, realmente respeita a greve, mas a forma única de regulamentá-lo é por lei, vale dizer, por ato emanado do Poder Legislativo, jamais por decreto, uma ato tipicamente executivo.

6. Segundo CELSO RIBEIRO BASTOS, “no nosso sistema jurídico-constitucional inexistem os regulamentos autônomos, a despeito de parte da doutrina, sem dúvida minoritária, insistir na possibilidade, entre nós, da edição de regulamentos independentes. A razão é a seguinte: o art. 84, IV, diz caber ao Presidente da República editar decretos e regulamentos para fiel execução das leis. O art. 5º, II, por sua vez, reza que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’.

Diante de tão inequívocos parâmetros, é perfeitamente lícito afirmar-se o caráter de execução dos nossos regulamentos, emanados em desenvolvimento da lei. Podem, entretanto, agregar elementos à norma legal, para tornar suas obrigações de mais fácil aplicação. São insuscetíveis, entretanto, de criar obrigações novas, sendo apenas aptos a desenvolver as existentes na lei. Eis porque serão sempre secundum legem sob pena de extravazamento (sic) ilegal de sua esfera de competência.”

7. O trecho citado em caráter ilustrativo exemplificativo bem serve para deixar nítido o verdadeiro e único alcance para a forma legislativa denominada “decreto”, sendo certo que, a par de haver corrente minoritária segundo a qual pode ser editado independentemente de lei, o nosso Judiciário, inclusive o Supremo Tribunal Federal, intérprete último das normas constitucionais, alinha-se unissonamente com a maciça maioria.

8. Nesse sentido, cabe considerar que a edição de decretos no âmbito do Poder Executivo tem seu fundamento de validade no disposto no artigo 84, IV, da Constituição Federal, verbis:


“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(…)

IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.

9. O artigo 84, inciso IV, da Carta Constitucional, acima impresso, traduz o denominado Poder Regulamentar da Administração Pública, ou seja, a competência para editar atos normativos denominados decretos e regulamentos, os quais se destinam a viabilizar a fiel execução das leis, por meio de um aclaramento de seus preceitos, orientando a sua aplicação. O Direito Brasileiro só admite expedição de decretos com efeito tão apenas regulamentar, para dar executoriedade mais clara à lei, torná-la indene de dúvidas.

10. Destarte, a edição de decretos e regulamentos pressupõe a prévia existência de uma lei que, em face do que dispuserem esses atos normativos menores, terá sua execução melhor desenvolvida. Frise-se que, em razão de sua condição hierárquica inferior, os decretos e regulamentos não podem inovar no conteúdo nem extrapolar os limites da lei, sob pena de manifesta inconstitucionalidade.

11. De outra forma, aliás, não poderia ser, porquanto a vigente Constituição, bem presente o que dispõem os seus artigos 5º, II, e 37, caput, transformou em dogma o princípio de que somente a lei em sentido formal pode inovar no universo jurídico. Vale dizer, não possuindo o decreto a natureza jurídica de lei em sentido formal, este não pode criar direito novo.

12. A inconstitucionalidade do decreto sob análise reside no argumento de que, ao contrário de se destinar a regulamentar uma lei preexistente, ele caracteriza-se por ser um ato normativo autônomo, cujo objetivo precípuo é o de inovar a ordem jurídica, ao regulamentar os efeitos da deflagração do movimento grevista no serviço público, sem que lei ordinária viesse a disciplinar a matéria.

13. O artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal é taxativo ao enunciar que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. A palavra lei, conforme JOSÉ AFONSO DA SILVA , in casu, “para a realização plena do princípio da legalidade, se aplica em rigor técnico, à lei formal, isto é, ao ato legislativo emanado dos órgãos de representação popular e elaborado de conformidade com o processo legislativo previsto na Constituição”.

14. Destarte, conclui-se que qualquer ato normativo que busque inovar o direito, à exceção da lei em sentido formal e de outros atos que com ela se equiparem (leis delegadas e medidas provisórias), deve ser taxado de inconstitucional, por afronta direta ao princípio da legalidade.

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO realça o fato de o regulamento ser, sempre, dependente da lei. Revela que a lei é fonte primária do direito e o regulamento fonte secundária, inferior.

15. E mesmo para aqueles representantes da doutrina vencida que crêem na existência e na constitucionalidade dos decretos autônomos, como é o caso de HELY LOPES MEIRELLES, a convicção de que esta espécie de ato normativo não pode cuidar de matérias expressamente reservadas à lei é indiscutível.

16. Para expungir qualquer dúvida sobre o tema e demonstrar o desrespeito e desconsideração do Poder Executivo para com a Constituição Federal, cumpre salientar a jurisprudência emanada do Supremo Tribunal Federal, absolutamente tranqüila, uníssona mesmo, em harmonia com a tese ora defendida.

17. Sobre o tema, insta salientar que a jurisprudência do Excelso Tribunal firmou-se no sentido de se ter por cabível a ação direta de inconstitucionalidade quando a impugnação referir-se a decreto autônomo, tal sua inaceitável intrusão no ordenamento.

18. Havendo restado indubitável que decreto depende de lei que o anteceda e constatado que o Decreto nº 1.480/95, ora em estudo, não regulamenta nenhuma norma jurídica acerca do direito de greve, resulta, por conseqüência, manifestamente inconstitucional, sendo eivados de vício quaisquer atos que se lastreiem nessa norma jurídica.

19. Evidentemente não se pode olvidar análise de importante aresto da Suprema Corte, que veio a firmar entendimento, por maioria, vencidos três excelentíssimos ministros — Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso e Marco Aurélio -, de que o direito de greve no serviço público depende de lei complementar (agora meramente ordinária após o advento da Emenda Constitucional nº 19/98), cuja ementa restou assim redigida:

“EMENTA: Mandado de injunção coletivo – Direito de greve do servidor público civil – Evolução desse direito no constitucionalismo brasileiro – Modelos normativos no direito comparado – prerrogativa jurídica assegurada pela Constituição (art. 37, VII) – Impossibilidade de seu exercício antes da edição de lei complementar – Omissão legislativa – Hipótese de sua configuração – Reconhecimento do estado de mora do Congresso Nacional – Impetração por entidade de classe – Admissibilidade – Writ concedido.”


(Mandado de Injunção nº 20-DF, Relator ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 19.5.94, acórdão publicado no DJU de 22.11.96, pág. 45.690) – (destacamos)

20. Impende notar, de início, que o sistema legislativo estatal está em mora decretada há seis (6) anos sem que haja saído da inércia, da omissão. De outra parte, tem-se que o Excelso Tribunal não fixou qualquer punição pelo exercício do direito previsto constitucionalmente, não cabendo ao administrador fazê-lo. Do surgimento de uma greve, reconhecendo-a a Administração, somente pela via judicial poderá obter autorização para impor conseqüências punitivas, sob pena de rematado abuso de poder, haja vista inexistir qualquer lei que o permita atuar, exatamente pela falta de regulamentação. É importante lembrar que a ausência legislativa deve gerar efeitos não apenas contra quem exercite o direito ainda não regulamentado, os servidores, mas também para quem administra, impedindo aplicação de punições ao próprio alvedrio. Afinal, em posição tão confortável, iria, realmente, o Poder Público preocupar-se em legislar a respeito?

21. Por outra lado, não se pode também desconsiderar que o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo, reiteradamente, com base na interpretação lançada no acórdão acima transcrito, que é lícito ao administrador descontar os dias de não comparecimento ao trabalho em razão de movimento paredista, considerando falta ao trabalho

22. É preciso distinguir bem duas hipóteses diversas na motivação legal, na fundamentação do desconto de vencimentos dos dias de paralisação grevista: (a) a Administração não reconhece ou ignora a greve e faz o desconto como mera falta ao serviço ou (b) a Administração reconhece a greve e faz o desconto dos dias parados em razão dela.

23. No primeiro caso, a postura administrativa de descontar dias parados, embora tenhamos seríssimas ressalvas a este tipo de enquadramento por entendermos completamente diferentes as faltas normais ao serviço e o não trabalho em razão de greve, vem tendo o respaldo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, diante da ausência de regulamentação do exercício do direito de greve no serviço público.

24. No outro caso, todavia, em que a Administração reconhece a greve, que salvo melhor juízo se harmoniza com a situação estudada, há outra situação. A motivação do ato administrativo, elemento essencial a toda ação emanada do poder público, neste caso, é deveras inconstitucional, invalidando o próprio agir.

25. A explicitação do dispositivo legal é necessária porque o administrador público deve ater os seus atos à bitola estrita da legalidade, ou seja, de que nada pode fazer sem previsão em norma jurídica anterior. Enquanto o particular pode fazer o que não é proibido, o agente administrativo, de qualquer grau hierárquico, só pode fazer aquilo que é expressamente autorizado por lei.

26. Em adição à regra geral da motivação de todo ato administrativo, é garantia prevista na legislação comum de que não se procederá a desconto na remuneração do servidor público, senão em decorrência de lei ou mandado judicial. É o que prescreve o artigo 45 da Lei nº 8.112/90 (RJU), ferido no episódio:

“Art. 45. Salvo por imposição legal, ou mandado judicial, nenhum desconto incidirá sobre a remuneração ou provento” (destacamos).

27. Ora, como já se demonstrou anteriormente, o ato administrativo de desconto dos dias parados, no exemplo trazido à OAB, lastreou-se no Decreto nº 1.480/95, que é um decreto autônomo, portanto inconstitucional. Inválido o motivo legal, inválido o próprio ato administrativo. Evidencia-se, assim, a ilegalidade e abuso de poder, ferido que resta, portanto, o princípio da legalidade, inscrito nos artigos 37, caput, e 5º, II, da Constituição Federal.

28. O texto é bastante claro e há de imperar no caso presente, no sentido de que, em persistindo alguma dúvida quanto a ser devido ou não o pagamento, que o Governo Federal procure a via judicial própria para permitir-lhe não proceder aos pagamentos, pois é certa a inexistência de preceptivo legal permissor do desconto de vencimentos em razão de greve, até porque os vencimentos dos servidores públicos são protegidos pelo princípio da irredutibilidade, inscrita no art. 37, XV, da Constituição Maior, em dupla via maltratado: tanto pelos descontos procedidos nos vencimentos, quanto pelos mais de cinco (5) anos de omissão quanto à aplicação da atualização monetária na data-base dos servidores, sem qualquer explicação formal.

29. Se a repetida edição de medida provisória vem sendo amplamente criticada pela doutrina, pela jurisprudência e, acima de tudo, pela sociedade brasileira, que a reputa idêntica ao instrumento legislativo do ordenamento jurídico pretérito denominado “decreto-lei”, no meio político apelidado de “entulho autoritário”, a utilização de decreto autônomo, que sequer pode ser submetido à apreciação do Poder Legislativo como aquela outra espécie de norma oriunda do Executivo, deve, seja pela sociedade, seja por esta Ordem dos Advogados do Brasil , ser repudiada veementemente, como instrumento que é de potencializado autoritarismo e desrespeito inaceitável ao Estado Democrático de Direito.

30. Por todo o exposto, são as seguintes as conclusões extraídas do presente estudo:

a) verificaram-se descontos nos contra-cheques dos servidores públicos federais, com base no Decreto nº 1.480/95;

b) o Direito Nacional só admite decreto de caráter regulamentar, jamais de natureza autônoma, como reiterada e historicamente vem decidindo o Supremo Tribunal Federal;

c) o Decreto nº 1.480/95 “Dispõe sobre os procedimentos a serem adotados em casos de paralisações dos serviços públicos federais”, sem que exista lei reguladora da espécie, razão pela qual tem natureza jurídica autônoma e conseqüentemente é inconstitucional, por ferimento ao art. 84, IV, 5º, II, e 37, caput, da CF;

d) o julgamento do STF (MI 20) relativo ao direito de greve colocou o Estado em mora legislativa desde 1994, ao passo que, apesar de haver entendido não exercitável a greve no serviço público, não fixou parâmetros de punição em caso de deflagração do movimento social;

e) a prática de desconto de dias parados em razão de greve é também ilegal naquilo que afronta o art. 45 do RJU, segundo o qual “salvo por imposição legal, ou mandado judicial, nenhum desconto incidirá sobre a remuneração ou provento”;

f) os vencimentos dos servidores públicos são protegidos também pelo art. 37, XV, da CF, que preceitua a irredutibilidade de vencimentos e proventos, o que acontece no presente caso, pelo desconto inconstitucional;

g) a utilização de decreto deve ser repudiada veementemente como instrumento que é de potencializado autoritarismo e desrespeito inaceitável à Constituição Federal, ao Estado Democrático de Direito e à Justiça Social.

Roberto de Figueiredo Caldas

Presidente, em exercício, da Comissão Nacional de Direitos Sociais

Ordem dos Advogados do Brasil

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