Súmula Vinculante

artigo: a súmula vinculante e a demissão do legislativo.

Autor

3 de julho de 2000, 0h00

Como se não bastasse o uso indiscriminado de medidas provisórias, pelo Executivo, a violar permanentemente o princípio constitucional da harmonia e da independência entre os Poderes da República, um novo dispositivo, recém-aprovado dentro do projeto de reforma do Judiciário, mais do que diminuir este Poder, atinge principalmente o próprio Legislativo. Trata-se da chamada súmula vinculante, apontada como panacéia para muitos dos males que prejudicam o bom funcionamento da Justiça. De acordo com o texto aprovado, no momento em que o Supremo Tribunal Federal criar uma súmula, ou seja, o extrato de uma decisão reiterada sobre determinada questão, todos os juízes do País terão que acatá-la e aplicá-la automaticamente. E os parlamentares, que já se acostumaram a ceder espaço para o Executivo legislar por meio de MPs, agora parecem não se importar que ministros do Supremo passem a editar súmulas com força, jeito e eficácia de leis. Na verdade, mais eficazes ainda do que as leis.

Somada à quebra da garantia da vitaliciedade dos magistrados, também trazida pelos reformadores do Judiciário, a súmula vinculante certamente produzirá mais do que juízes temerosos. Inúmeros princípios constitucionais e legais serão sacrificados, dentre eles o da ampla defesa, do contraditório, do duplo grau de jurisdição e do juiz natural. Quanto ao cidadão, para quem foi instituído todo o sistema judiciário, não receberá ele em sua petição inicial senão um carimbo a informar que aquela demanda já foi previamente decidida. E não se diga que a nobre finalidade do dispositivo – desafogar o Supremo – justifica a dramática perda da independência jurídica do juiz, pois existem outras maneiras de evitar o inchaço de processos repetitivos em tribunais superiores, com medidas mais simples e eficazes. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) apresentou proposta alternativa, que levaria ao mesmo resultado, sem o comprometimento da dignidade e da independência dos juízes brasileiros. Inicialmente adotada no relatório da deputada Zulaiê Cobra (PSDB/SP), a súmula impeditiva de recursos foi posteriormente suprimida. Admitia ela a possibilidade de recurso somente se a decisão do juiz de menor hierarquia fosse diferente da súmula do Supremo. Isto sem falar, ainda como alternativa, na singela alteração do caótico sistema processual vigente.

No entanto, possivelmente por não ter compreendido a extensão e a profundidade dos efeitos da súmula vinculante, o Legislativo, mais uma vez, demite-se do seu poder genérico de legislar. Parece claro que quem deve normatizar condutas de forma abstrata e geral é o parlamento, não os tribunais. Do contrário, seria de exigir do Judiciário ao menos o pressuposto básico da legitimação política pelo voto popular. O Judiciário tem a vocação de decidir caso a caso, concretamente. A lei – não a decisão judicial – é que deve ter caráter genérico e universal.

A emenda constitucional de reforma do Judiciário, porém, visa a consagrar no Supremo Tribunal Federal – de composição sujeita à indicação discricionária do presidente da República e a mera aprovação do Senado Federal – a possibilidade de dizer, na prática, o que é e o que não é lei, de estabelecer qual o alcance, em abstrato, das normas editadas pelo Congresso Nacional, ou seja, de decidir a respeito do que elas realmente querem dizer. E mais: com efeito retroativo que a própria lei, oriunda de um poder eleito pelo povo, não dispõe. Veja-se, a propósito, que ocorrido um fato em janeiro, editada uma súmula vinculante em março e julgada a demanda judicial (sobre aquele mesmo fato) em julho, será obrigatoriamente aplicada a súmula, mesmo sendo ela posterior ao fato em questão. O novo instituto terá, portanto, efeitos cronológicos superiores aos da lei, que não retroage.

Mas não é só. O Judiciário, ou melhor, o Supremo Tribunal Federal, concentradamente, decidirá qual o verdadeiro alcance das leis, na medida em que vier a interpretá-las de uma ou de outra forma. Desse modo, ao disciplinar abstratamente a vida em sociedade, estará substituindo o Legislativo naquilo que representa o núcleo da experiência republicana, com o agravante de não ter direta legitimação popular para atuar com tão amplo alcance político. E maior será a amplitude de tal instituto – ou da parcela de poder de que se demite o Legislativo – quanto mais abertos sejam os conteúdos das normas legais, com variadas e múltiplas possibilidades de interpretação, fenômeno crescente em nosso País. O Legislativo, malgrado toda a combatida tramitação legislativa, fará nada mais do que um projeto. Caberá ao Supremo transformá-lo verdadeiramente em lei, ou seja, em norma geral, dispondo definitiva e abstratamente sobre o que o Legislativo quis normatizar.

Tal atitude demissionária do Poder Legislativo não atenta somente contra ele próprio, que deveria ser o primeiro a lutar pela completa extensão de suas prerrogativas, mas alcança o próprio sistema de divisão de poderes. Não é do Executivo ou do Judiciário a tarefa de legislar, de regrar genericamente a universalidade da coexistência humana nesta Nação. Tal atribuição é do Legislativo, e não pode ele, sem afronta à cidadania, demitir-se daquilo que lhe deveria ser absolutamente indisponível. Ao entregar ao Judiciário o poder de normatizar abstratamente a vida social, comete o Legislativo (no mínimo, compartilhando prerrogativas até aqui exclusivamente suas) o grave equívoco político de abrir mão de significativa parcela de seu poder.

Somado ao sistema de medidas provisórias a cargo do Executivo, podemos concluir, com o advento da súmula vinculante, que o Legislativo restará, por iniciativa própria, reduzido a uma expressão incompatível com o modelo republicano de tripartição de poderes.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!