Profissão: advogado

Celso de Mello discorre sobre prerrogativas do advogado

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30 de janeiro de 2000, 23h00

Pela primeira vez, desde a Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu limites mais precisos sobre a ação e as prerrogativas dos advogados.

Ao contrário do que tentou fazer crer por seguidas vezes o Legislativo, as comissões parlamentares de inquérito, por mais graves que sejam os fatos investigados, não são superiores às garantias constitucionais.

O ministro do STF, Celso de Mello, proferiu um verdadeiro parecer sobre a amplitude do exercício da advocacia ao negar o pedido de reconsideração feito pelos deputados da CPI do Narcotráfico, contra a liminar que garantia o direito do advogado Carlos de Araújo Pimentel Neto se manifestar e orientar seu cliente durante depoimento aos parlamentares.

Segundo Celso de Mello, “qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos…”

Com exclusividade, a revista Consultor Jurídico publica a íntegra da decisão do ministro, que versa sobre os direitos e garantias concedidos aos advogados no exercício de sua profissão.

MANDADO DE SEGURANÇA N. 23.576-4 DISTRITO FEDERAL

(Pedido de Reconsideração)

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE: CARLOS DE ARAÚJO PIMENTEL NETO

ADVOGADO: CARLOS DE ARAÚJO PIMENTEL NETO

IMPETRADO: PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO

(CPI DO NARCOTRÁFICO)

EMENTA: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. ATUAÇÃO ABUSIVA. INADMISSIBILIDADE. SUBMISSÃO INCONDICIONAL DA CPI À AUTORIDADE DA CONSTITUIÇÃO E DAS LEIS DA REPÚBLICA. EXIGÊNCIA INERENTE AO ESTADO DE DIREITO FUNDADO EM BASES DEMOCRÁTICAS. DIREITOS DO CIDADÃO E PRERROGATIVAS PROFISSIONAIS DO ADVOGADO. LEGITIMIDADE. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO INDEFERIDO.

– O respeito incondicional aos valores e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a organização do Estado, longe de comprometer a eficácia das investigações parlamentares, configura fator de irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas pelas comissões legislativas.

A autoridade da Constituição e a força das leis não se detêm no limiar das Comissões Parlamentares de Inquérito, como se estas, subvertendo as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, pudessem constituir um universo diferenciado paradoxalmente imune ao poder do Direito e infenso à supremacia da Lei Fundamental da República.

Se é certo que não há direitos absolutos, também é inquestionável que não existem poderes ilimitados em qualquer estrutura institucional fundada em bases democráticas.

A investigação parlamentar, por mais graves que sejam os fatos pesquisados pela Comissão legislativa, não pode desviar-se dos limites traçados pela Constituição e nem transgredir as garantias, que, decorrentes do sistema normativo, foram atribuídas à generalidade das pessoas.

Não se pode tergiversar na defesa dos postulados do Estado Democrático de Direito e na sustentação da autoridade normativa da Constituição da República, eis que nada pode justificar o desprezo pelos princípios que regem, em nosso sistema político, as relações entre o poder do Estado e os direitos do cidadão – de qualquer cidadão.

A unilateralidade do procedimento de investigação parlamentar não confere à CPI o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais.

No contexto do sistema constitucional brasileiro, a unilateralidade da investigação parlamentar – à semelhança do que ocorre com o próprio inquérito policial – não tem o condão de abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir, à autoridade pública, poderes absolutos na produção da prova e na pesquisa dos fatos.

O Advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência técnica àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e o direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse, observando-se, desse modo, diretriz consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.


O exercício do poder de fiscalizar eventuais abusos cometidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito contra aquele que por ela foi convocado para depor traduz prerrogativa indisponível do Advogado, no desempenho de sua atividade profissional, não podendo, por isso mesmo, ser ele cerceado, injustamente, na prática legítima de atos que visem a neutralizar situações configuradoras de arbítrio estatal ou de desrespeito aos direitos daquele que lhe outorgou o pertinente mandato.

O Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre e independente, de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão.

A exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra e nem impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes investigatórios de que se acha investida.

O ordenamento positivo brasileiro garante ao cidadão, qualquer que seja a instância de Poder que o tenha convocado, o direito de fazer-se assistir, tecnicamente, por Advogado, a quem incumbe, com apoio no Estatuto da Advocacia, comparecer às reuniões da CPI, nelas podendo, dentre outras prerrogativas de ordem profissional, comunicar-se, pessoal e diretamente, com o seu cliente, para adverti-lo de que tem o direito de permanecer em silêncio (direito este fundado no privilégio constitucional contra a auto-incriminação), sendo-lhe lícito, ainda, reclamar, verbalmente ou por escrito, contra a inobservância de preceitos constitucionais, legais ou regimentais, notadamente quando o comportamento arbitrário do órgão de investigação parlamentar lesar as garantias básicas daquele – indiciado ou testemunha – que constituiu esse profissional do Direito.

– A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos e nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência e nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.

Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que não podem e não devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitarem os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal.

DECISÃO: Trata-se de pedido de reconsideração, que, formulado pelo Senhor Presidente da CPI/Narcotráfico, visa à reforma de decisão por mim proferida no âmbito de processo mandamental instaurado contra abusos alegadamente cometidos por esse órgão de investigação legislativa, que teria, injusta e arbitrariamente, impedido o exercício, por Advogado, das prerrogativas jurídicas inerentes ao desempenho de sua atividade profissional.

A decisão que se pretende modificar foi por mim assim ementada (fls. 45):

“COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. ADVOGADO. DIREITO DE VER RESPEITADAS AS PRERROGATIVAS DE ORDEM PROFISSIONAL INSTITUÍDAS PELA LEI Nº 8.906/94. MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA.

A Comissão Parlamentar de Inquérito, como qualquer outro órgão do Estado, não pode, sob pena de grave transgressão à Constituição e às leis da República, impedir, dificultar ou frustrar o exercício, pelo Advogado, das prerrogativas de ordem profissional que lhe foram outorgadas pela Lei nº 8.906/94.

O desrespeito às prerrogativas – que asseguram, ao Advogado, o exercício livre e independente de sua atividade profissional – constitui inaceitável ofensa ao estatuto jurídico da Advocacia, pois representa, na perspectiva de nosso sistema normativo, um ato de inadmissível afronta ao próprio texto constitucional e ao regime das liberdades públicas nele consagrado. Medida liminar deferida.”

A ilustre autoridade apontada como coatora – depois de enfatizar que sempre respeitou todas as prerrogativas profissionais “necessárias ao bom exercício” da Advocacia e que apenas negou, ao ora impetrante, “prerrogativas que nem a Constituição, nem a Lei, nem o Regimento Interno da Câmara dos Deputados lhe conferem” (fls. 62) – assim resumiu a sua visão em torno dos fatos que motivaram a impetração do presente mandado de segurança (fls. 62):


“Para evitar que seu cliente depusesse sobre fatos que lhe eram desfavoráveis, mas sobre os quais se dispunha a discorrer, o Impetrante quis se manifestar utilizando a palavra, como se Deputado fosse. Impedido de fazê-lo, começou a vociferar e recusou-se a retornar a seu lugar, sendo retirado da sala pelos policiais que faziam as vezes de seguranças da Câmara dos Deputados naquela sessão, na cidade de Campinas. O ato do advogado enquadrou-se, em tese, no crime contra as CPIs previsto no art. 4º, I da Lei 1.579/52, porquanto daquela maneira, com assuadas, tentou impedir o regular funcionamento da Comissão. Não foi preso em flagrante justamente porque a CPI respeita os profissionais do direito.” (grifei)

O Senhor Presidente da CPI/Narcotráfico, com alegado apoio no princípio da separação de poderes, sustenta que não se há de conceder ao Advogado, que atua perante Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito de tribuna, eis que essa faculdade – consistente na prerrogativa da manifestação oral ou do uso da palavra – assiste, unicamente, no âmbito da instituição legislativa, ao membro do Congresso Nacional, de tal modo que ao Advogado somente caberá – sempre observada a peculiaridade de que inexiste contraditório na esfera do inquérito parlamentar – a possibilidade de meramente protestar, quando for o caso, “por escrito” (fls. 67).

Passo a apreciar o pedido de reconsideração formulado pela Presidência da CPI/Narcotráfico.

A presente causa – motivada por grave denúncia resultante de alegados abusos que teriam sido praticados pela CPI/Narcotráfico contra o exercício, por Advogado, do direito de dar assistência técnica e de prestar orientação jurídica àquele que o constituiu – suscita reflexões necessárias em torno das relações que se estabelecem, no âmbito de uma sociedade democrática, entre o Direito e o Poder.

O regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não tem condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis, pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.

Na realidade, o respeito incondicional aos valores e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a organização do Estado, longe de comprometer a eficácia das investigações parlamentares, configura fator de irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas pelas comissões legislativas.

A autoridade da Constituição e a força das leis, por isso mesmo, não se detêm no limiar das Comissões Parlamentares de Inquérito, como se estas, subvertendo as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, pudessem constituir um universo diferenciado paradoxalmente imune ao poder do Direito e infenso à supremacia da Lei Fundamental da República.

Se é certo que não há direitos absolutos, também é inquestionável que não existem poderes ilimitados em qualquer estrutura institucional fundada em bases democráticas.

A investigação parlamentar, por mais graves que sejam os fatos pesquisados pela Comissão legislativa, não pode desviar-se dos limites traçados pela Constituição e nem transgredir as garantias, que, decorrentes do sistema normativo, foram atribuídas à generalidade das pessoas.

Nesse contexto, não se pode tergiversar na defesa dos postulados do Estado Democrático de Direito e na sustentação da autoridade normativa da Constituição da República, eis que nada pode justificar o desprezo pelos princípios que regem, em nosso sistema político, as relações entre o poder do Estado e os direitos do cidadão – de qualquer cidadão.

Não se questiona a asserção de que a investigação parlamentar reveste-se de caráter unilateral, à semelhança do que ocorre no âmbito da investigação penal realizada pela Polícia Judiciária. Inexiste qualquer dúvida, também, de que a natureza do inquérito parlamentar – tanto quanto se verifica com o próprio inquérito policial – revela-se incompatível com a prática do contraditório.

A decisão concessiva da medida liminar, cuja reconsideração é ora postulada, não desconsiderou, em momento algum, o sentido de unilateralidade e o caráter inquisitivo do procedimento de investigação parlamentar.

Cabe advertir, no entanto, como já proclamou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sob a égide da vigente Constituição, a propósito do inquérito policial (que também é conduzido de maneira unilateral, sem observância da garantia do contraditório, tal como ocorre com a investigação parlamentar), que a unilateralidade desse procedimento investigatório não confere ao Estado o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais:


“INQUÉRITO POLICIAL – UNILATERALIDADE – A SITUAÇÃO JURÍDICA DO INDICIADO.

O inquérito policial, que constitui instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento administrativo destinado a subsidiar a atuação persecutória do Ministério Público, que é – enquanto dominus litis – o verdadeiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária.

A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações.

O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.” (RTJ 168/896, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Torna-se evidente, portanto, que a unilateralidade da investigação parlamentar – à semelhança do que ocorre com o próprio inquérito policial – não tem o condão de abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir, à autoridade pública, poderes absolutos na produção da prova e na pesquisa dos fatos.

É por essa razão – como pude enfatizar na decisão concessiva da medida liminar (fls. 51) – que, embora amplos, os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito não são ilimitados e nem absolutos, daí resultando, consoante estabeleceu a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, que esses órgãos de investigação parlamentar não podem formular acusações e nem punir delitos (RDA 199/205, Rel. Min. PAULO BROSSARD), nem desrespeitar o privilégio contra a auto-incriminação que assiste a qualquer indiciado ou testemunha (RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 79.244-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), nem decretar a prisão de qualquer pessoa, exceto nas hipóteses de flagrância (RDA 196/195, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RDA 199/205, Rel. Min. PAULO BROSSARD).

Na realidade, tendo-se presente esse contexto, assiste ao Advogado a prerrogativa – que lhe é dada por força e autoridade da lei – de velar pela intangibilidade dos direitos daquele que o constituiu como patrono de sua defesa técnica, competindo-lhe, por isso mesmo, para o fiel desempenho do munus de que se acha incumbido esse profissional do Direito, o exercício dos meios legais vocacionados à plena realização de seu legítimo mandato profissional.

O Advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência técnica àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e o direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse, observando-se, desse modo, diretriz consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

Continua em Comunidade Jurídica

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