DNA, a fronteira da verdade?

DNA, a fronteira da verdade?

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26 de janeiro de 2000, 23h00

A descoberta da verdade, meio pelo qual se chega a solução do conflito de interesses, deve ser exercida pelas partes e pelo Juiz de forma mais ampla possível, mas tem como limites os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, quer no sentido físico quer no sentido espiritual, pressupostos básicos de qualquer Estado democrático.

Negativa do réu não implica em presunção de paternidade, mas tão somente em fato que, no conjunto de provas, pode ser considerado em seu desfavor.

A questão, como se vê, é de alta indagação e pode ser assim resumida: na ação de investigação de paternidade o investigando está obrigado a submeter-se ao exame hematológico para apuração da paternidade?

Sempre nos preocupamos com essa matéria e, data venia, partindo de um raciocínio simplista, o resultado do exame hematológico pelo método conhecido como DNA passou a ser visto pelos Juízes, de maneira Geral, como um dogma.

Esquecidos talvez, independentemente das questões ético-jurídicas, que o assunto desperta, de que por trás do biombo da afirmação científica, há outras questões instrumentais e morais que nem sempre corroboram a grande certeza pré-estabelecida pela ciência.

Em data recente, jornais do Brasil inteiro noticiaram e alertaram para os perigos das conclusões do exame hematológico (DNA) procedidos, muitas vezes, em laboratórios sem os recursos indispensáveis ou até, o que é mais grave, inidôneos.

As razões que nos levam a sufragar o entendimento que o investigando pode validamente rebelar-se contra a determinação judicial de submetê-lo à perícia hematológica são as seguintes.

É certo que o fim do processo é a solução do conflito de interesses, a descoberta da verdade , e que para consegui-la é dado as partes e ao Juiz, responsável pela decisão do litígio, lançar mão de todos os meios de prova possíveis e imagináveis.

A regra insculpida no Código de 1939 era a seguinte (Art. 208).

“São admissíveis em Juízo todas as espécies de prova reconhecidas nas leis civis e comerciais”

O atual Código de Processo, sob o influxo de novas idéias nascidas certamente da necessidade de proteger as pessoas da onipresença sufocante do Estado hodierno, redigiu de forma mais prudente o art. 332, que tratado mesmo tema.

“Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que funda a ação da defesa”

O Código Procesal Civil y Comercial da República Argentina foi muito mais enfático (art. 379).

“La prueba deberá produzir-se por los médios previstos expresamente por la ley y por los que el Juez disponga, a pedido de parte o de oficio, siempre que no afecten la moral, la libertad personal de los litigantes o de terceros o no estean expresamente prohibidas para el caso”

Como diz o notável processualista gaúcho, Alcides de Mendonça Lima, in Revista de processo, nº 43, pag. 138, em artigo sob o título – A eficácia do meio de prova ilícita no Código de Processo Penal brasileiro.

“Os meios de prova podem ser legítimos (se configurados em lei expressamente, tanto do C.P.C, como em outros textos) e lícitos (não configurados em leis mas admissíveis, se “morais”, como, antes do Código de 732 já se admitiu no Brasil, por praxe forense, a inspeção judicial altamente incluída no C.P.C, art. 440 e ss). Um meio legítimo poderá tornar-se ilícito se obtido ou for produzido fora dos ditames morais; mas se o meio ilícito será sempre, evidentemente, ilegítimo, porque, além de não ser estatuído em lei ainda está maculado por qualquer ato do interessado.”

A Constituição de 88 também não descuidou do assunto, dizendo no art. 5º, LVI.

“São inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos.”

Portanto, já a essa altura, podemos afirmar, com base na normatividade vigente, duas coisas.

1º – que todos os meios de prova destinados à apuração da verdade devem ser utilizados pelas partes,

2º – que são imprestáveis como prova os dados obtidos por meios ilícitos bem como imorais.

Isto é, aos superiores interesses da Justiça no esclarecimento dos fatos, devem-se opor aos valores éticos e morais tidos pela nossa cultura pressupostos da dignidade da pessoa humana.

É sabido que o Estado moderno, mais do que em qualquer tempo, agigantou-se, fazendo com que o Leviatã de Thomaz Hobbes parecesse, aos nossos olhos, um pequeno camaleão alado.

O Estado de nossos dias, municiado com um arsenal tecnológico nunca sonhado, é capaz de tudo, sufocando o ser humano e empurrando-o até aos mais longínquos limites da sua intimidade pessoal.

Invade a privacidade das pessoas, pode vê-las e ouvi-las á distância, quer saber quanto têm no banco, quantos imóveis possui, quais são seus negócios, enfim, o homem está hoje enredado nos tentáculos de um monstro que ele mesmo criou.

A sua última fronteira, a derradeira cidadela, é a lei.

A verdade, cuja busca incessante é a meta, não deve ser conseguida de qualquer maneira.

Há um preço que ninguém pode pagar: o que compromete a dignidade do homem.

Diz a Constituição Federal no art. 5º, II, de 1988:

“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.”

E não há nenhuma que obrigue o investigando réu a submeter-se ao exame hematológico.

Trata-se de prova que envolve a própria pessoa na sua dimensão física e na sua dimensão moral. Portanto, só o agravante pode decidir sobre a conveniência de submeter-se ao teste, certo que arcará com os ônus decorrentes da negativa, mas essa é outra questão.

Estamos em área dispositiva onde o Estado não pode se sobrepor aos interesses das partes envolvidas.

Se estivéssemos lidando com matéria coagente, de ordem pública, o enfoque seria um pouco diferente. Mesmo assim, a descoberta da verdade no processo penal jamais ultrapassou os limites da decência do réu, que tem o direito de silenciar ou até de mentir no seu interesse.

O marxismo-leninismo na União Soviética, que deu no que deu, tinha como um dos pontos cardeais de seu sistema político-autoritário o princípio de que “os fins justificam os meios”.

Se isso fosse correto, se a descoberta da verdade não tivesse limites, a probatio prabatissima do direito intermediário teria plena atualidade, submetendo-se o réu a todas as torturas e violações da narco-análise, do lie detector, e outros engenhos criados para vilipendiar ainda mais o ser humano, já tão esmagado pelas distorções atuais da sociedade, com o único objetivo do esclarecimento da “verdade”.

Crime de desobediência?

Ficta confessio?

Nenhuma coisa nem outra. Quanto á primeira, não haveria desobediência por falta de amparo legal da prova. Quanto á segunda, porque ninguém, em sã consciência, poderia afirmar que o filho gerado foi produto de uma determinada relação sexual. Figure-se, portanto, a hipótese de plurium concubetium, então, a negativa do réu implicaria na presunção da paternidade? Parece-nos que não.

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