O Projeto de Código Civil

A OAB e o projeto de Código Civil

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23 de janeiro de 2000, 23h00

Em elaboração há mais de três décadas, somente agora, quando o Projeto de Código Civil depende apenas do pronunciamento da Câmara dos Deputados sobre as emendas aprovadas pelo Senado Federal, é que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se lembra de propor a rejeição do projeto com base nas mais incabíveis alegações.

Em primeiro lugar, não faltou breve alusão a duas ordens de argumentos já sobejamente contestados por mim, seja neste jornal, seja em meu recente livro O Projeto de Código Civil, cuja segunda edição foi publicada, no fim do ano passado, pela Editora Saraiva. Refiro-me a uma suposta época de “decodificação”, na qual se daria preferência a legislações esparsas, como o Código do Consumidor, ou o Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme exemplos lembrados, quando a Holanda acaba de promulgar o seu novo Código Civil e o Japão se apresta a fazê-lo, após uma série de recentes códigos civis latino-americanos… A outra argüição se refere à pretensa “inatualidade” do projeto, por não cuidar da concepção “in vitro”, etc., quando tal matéria exige, por sua natureza, legislação especial, abrangendo, além de normas de direito civil, regras pertinentes à engenharia genética, bem como precauções de caráter administrativo, como tem sido reconhecido em toda parte do mundo. Aliás, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América – países do common law – nem mesmo existem códigos civil, e é neles que mais avançada se acha a legislação sobre geração extra-uterina…

Mas a oposição da OAB ao projeto se funda especialmente em matéria de Direito de Família, com asseverações que refletem tão-somente pontos de vista subjetivos dos intérpretes, com base em antiquada hermenêutica literal, sendo as objeções superáveis por meio da dominante interpretação estrutural e concreta.

A precipitação com que se pronunciou a OAB é tão evidente que nem sequer houve cuidado na escolha do texto a ser lido e criticado – após tantos anos de silêncio! – não obstante a cautela que teve o Senado Federal de fazer duas publicações oficiais, em 1997, do projeto na íntegra, abrangendo as emendas por ele introduzidas, e discriminando-as em separado. O certo é que as citações dos artigos, objeto de inopinada condenação, não correspondem à numeração do projeto aprovado pela Câmara Alta, bastando salientar que é criticado, por exemplo, o § 4º do art. 1.539 que não tem parágrafo nenhum… Conhecedor da matéria, foi-me possível localizar as objeções tardias e verificar sua total insubsistência.

No fundo, tudo se reduz ao equívoco de pensar que, pelo fato de não haver mais filhos “legítimos” – uma vez que a Constituição de 1988 igualou a todos eles -, o casamento tenha deixado de ser a união familiar por excelência. Para prová-lo basta lembrar que o § 3º do art. 226 da Carta Magna, ao reconhecer a união estável como entidade familiar, acentua que deve a lei facilitar sua conversão em casamento.

É óbvio, por outro lado, que, se o Projeto de Código Civil prevê a forma e o processo do casamento, se entende que este, como todo ato jurídico formal, pode ser comprovado mediante certidão do respectivo registro, tal como previsto no artigo 1.542 do projeto.

A maior parte das objeções é no sentido de que o Senado Federal não teria corrigido os dispositivos que consagram a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, o que a Constituição vigente repele. Essa aversão dos críticos ao emprego do substantivo legitimidade resulta da não compreensão de que o que a Carta Magna declara é que são igualmente legítimos tanto os filhos do casamento como os naturais, os adulterinos e os adotivos. É óbvio que todos os casos apontados pressupõem a satisfação das condições legais que lhes correspondem. Desse modo, não vejo por qual motivo deveria ser considerado inconstitucional o art. 1.550 (numeração correta), segundo o qual a anulação do casamento não obsta a legitimidade do filho concebido ou havido antes ou na constância dele, servindo esta norma como preceito extensível a outras espécies de filiação.

Por outro lado, é incompreensível que se critique o artigo 1.516 por referir-se somente à capacidade de a mulher casar aos 16 anos, silenciando quanto ao homem, pois, se naquele caso, há compreensíveis razões biológicas, no caso do homem prevalece a regra geral de 18 anos, que é, segundo o projeto, a idade da maioridade.

Quanto ao art. 1.535, que fixa o assento do livro do registro, silenciando sobre o nome a ser assinado pela mulher, é evidente que não estamos perante um numerus clausus, tanto mais que predomina cada vez mais a decisão da mulher de conservar seu nome de solteira. Seria absurdo que, não havendo referência a esse fato, fosse ele vedado…

Quanto à crítica às regras do casamento por procuração, basta verificar o que explica admiravelmente o saudoso mestre Clovis Couto e Silva, na Exposição de Motivos que dedicou ao assunto, mostrando a razão da solução adotada.

São de igual jaez as demais críticas, as quais de maneira alguma poderiam levar à inexorável conclusão da não aprovação do projeto pela Câmara dos Deputados, ao corte do tronco por falhas em poucos ramos… Ainda que as críticas fossem procedentes, compreende-se que a solução natural seria, não a rejeição global do projeto, mas a correção de alguma lacuna porventura existente mediante projeto de lei, mesmo porque o novo Código Cível só entraria em vigor após um ano, permitindo longa vacatio legis para eventuais correções ou complementos.

O que não se compreende, absolutamente, é que se pretenda desprezar o monumental trabalho levado a termo pelos maiores juristas da sociedade civil e do Congresso Nacional.

Eis aí a oportunidade que teria a OAB de sanar a omissão de tantos anos, com a elaboração de regras complementares, porventura indispensáveis.

Reprodução do artigo publicado em 22 de janeiro de 2000 no jornal “O Estado de S.Paulo”.

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