Direito Constitucional

Limitação constitucional de juros, sim!

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16 de janeiro de 2000, 23h00

Um dos temas que têm gerado maior grau de polêmica no seio da comunidade jurídica atualmente é a questão da limitação da taxa de juros a 12% ao ano, constante do §3º do art. 192 da Constituição Federal., dispositivo tal que preceitua textualmente que: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei disciplinar.”

Por certo, o texto do dispositivo invocado é absolutamente claro, não permitindo ao intérprete qualquer divagação ou exigindo esforço intelectual no desvendamento de seu conteúdo. Daí porque não haver, a priori, nenhuma razão para tão acirrada discussão, ante o escorreito disciplinamento dado ao tema pela Carta Fundamental.

A única observação a ser feita é a de que a lei a que se refere a redação final do parágrafo terá em vista disciplinar o crime de usura, as suas modalidades e punições, em que pese alguns setores da doutrina entenderem que esse diploma já existe e está em vigor : o Decreto 22.626/33, chamada Lei da Usura.

Pois bem, o Supremo Tribunal Federal, analisando a questão, objeto de discussão de um Ação Direta de Inconstitucionalidade intentada por um partido político, decidiu que o dispositivo em tela não é auto-aplicável, estando a sua aplicabilidade condicionada à edição da Lei Complementar exigida no caput do art. 192.

A partir daí, surgiu uma corrente que, amparada nos dizeres do decisum mencionado, entende que, enquanto não vier à lume a malsinada lei complementar, não haveria limitação à cobrança de juros no Brasil.

Chegam a afirmar, entre outras coisas, que para que se estabeleça a limitação de juros exigida na Constituição, mister primeiramente é conceituar o que seja juro real.

No entanto, alguns graves equívocos de interpretação e raciocínio jurídico acompanham inseparavelmente o entendimento dos que advogam essa tese, cujos argumentos, data vênia, não se sustentam nem sequer a título de mera argumentação hipotética.

Analisemos, pois, essas razões, rebatendo-as, de per si.

Dizem eles que por se tratar de um parágrafo, o dispositivo que estipula o limite de juros, está subordinado à redação do caput, que exige lei complementar para regular todo o Sistema Financeiro Nacional, aí incluída a taxa de juros e sua respectiva limitação.

Que, enquanto não houver a intenvencio legislatoris não há como dar aplicação ao limite mencionado na Constituição, estando as entidades financeiras e creditícias, componentes do Sistema Financeiro Nacional, absolutamente livres para a estipulação de seus juros, ressalvada a competência autorizativa do Conselho Monetário Nacional, expressa na Lei da Reforma Bancária. (Lei n.º 4.595/64).

Pois bem, antes de tudo, cumpre gizar que a defendida ausência absoluta de limites para o exercício da fixação da taxa de juros é idéia que afronta os princípios mais comezinho de qualquer ordenamento jurídico que se diga apoiado no Estado Democrático de Direito, que exige, antes de mais nada, limites. Assim, ao prelecionarem que não há limitação à cobrança de juros, estão os nobres defensores dessa corrente, outorgando às instituições financeiras uma prerrogativa repugnante ao próprio Direito, a de que podem elas exercer um direito de forma ilimitada, sem limites, prerrogativa essa que é negada, inclusive, ao próprio Estado (cf. princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, etc…). À todos, a par de adquirirem direitos e ostentarem prerrogativas, são impostas sujeições, daí não se poder falar em direitos absolutos.

Quanto à necessidade de edição de lei complementar para emprestar aplicabilidade à regra em comento, pergunta-se: Quando for editada a referida lei, poderá ela estipular juros acima do limite estipulado na Constituição? Não, sob pena de gritante inconstitucionalidade. Então, diante de tão simplória equação, não resta muito de palpável a estas razões.

Vamos então ao argumento de que a limitação está veiculada em um parágrafo, e que, por isso, se subordina ao texto do caput. Aqui, como veremos, já não há nem pudores de interpretação.

Essa apregoada subordinação nunca se fez regra na interpretação de textos legais, ainda mais em se tratando de preceito fundamental, onde reina o princípio de que as normas desse quilate devem ser tomadas em sua latitude mais ampla, mormente quando se tratam de regras de caráter proibitivo, como é o caso do §3º do art. 192 aqui comentado.

Isso sem falar no fato de que o dispositivo em análise possui normatividade autônoma, disciplinando, ele mesmo, o seu raio de abrangência e eficácia. O parágrafo não pode é tratar de matéria alheia ao capítulo em que está inserido, mas pode, perfeitamente, disciplinar, de forma soberana e independente, algum aspecto do tema tratado na cabeça do artigo, inclusive restringindo-lhe o exercício.

Tome-se como exemplo mais patente o art. 5º da mesma Carta, que trata dos direitos e garantias fundamentais, cujo caput não guarda qualquer relação intrínseca com os seus incisos, pois estes, além de tratarem de temas variados, possuem, cada um o seu raio de abrangência e de eficácia, o que lhes empresta autonomia plena em relação ao caput. Os exemplos a partir daí multiplicam-se.

Sobre isso, fala o Dr. MAURO NICOLAU JÚNIOR, Juiz de Direito do Rio de Janeiro em artigo sobre o assunto: “Num mesmo artigo de lei, ou da Constituição, podemos ter várias regras, independentes umas das outras. O que o parágrafo tem de comum com o caput é que, por força de alguma lógica formal de organização extrínseca dos assuntos, os tópicos do caput (matéria geral nele tratada), é também matéria dos parágrafos. Isso, nem sempre, aliás, acontece. Depende de maior ou menor organização mental do redator. Muito contingentemente, no momento da redação, e mesmo assim, nada impede que a regra do parágrafo seja impeditiva do que consta do caput” (in “Norma constitucional de limitação de juros é auto aplicável ou meramente programática ?, Cadernos de Doutrina da Escola Paulista de Magistratura, APAMAGIS, São Paulo, out/99, pg.172)

E arremata “Todo parágrafo quando tecnicamente bem situado (e este não está porque tem autonomia de artigo), liga-se ao conteúdo do artigo, mas tem autonomia normativa.[…]. Tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma, sem referir-se à qualquer previsão legal ulterior, detém eficácia e aplicabilidade imediata.” (ibidem)

Assim não há, como se vê, qualquer fundamento jurídico na argumentação combatida de que a aplicabilidade do preceito seria fruto de uma leitura apressada e unitária do preceito em tela. A pressa e atecnia estão do lado daqueles que defendem a tese contrária.

Prosseguem as instituições financeiras afirmando que o conceito de juros reais, expressão utilizada na Constituição, ainda pende de precisão terminológica para ser aplicada a limitação.

Não é bem assim. A Constituição toma o termo juros reais em sua acepção comum, e em termos meramente vocabulares podemos conceituar juro como o preço pelo uso do dinheiro; é o lucro que advém da operação de circulação onerosa do dinheiro, é aquilo que excede à mera atualização do valor. O termo real expressa a natureza do ganho, a sua concretude, a sua liquidez, despida de encargos.

Além disso, o próprio dispositivo se encarrega de ensinar aos seus detratores o significado de juro real, qual seja, “comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito.”

O interessante aqui é notar que mesmo dizendo que não sabem exatamente o que são juros reais, as instituições financeiras nunca deixaram de cobrá-los. Dois pesos, duas medidas !

Ressalvam, adiante, a competência do Conselho Monetário Nacional para delimitar juros com os quais podiam operar as instituições financeiras. Essa delimitação, anotes-se, deve ser entendida, na prática, como liberação indiscriminada das referidas taxas.

Ocorre que, a mesma Constituição que deu o prego, deu também martelo. No ADCT, art. 25, restaram revogadas as delegações de competências a órgãos do Executivo, de matérias conferidas, pela Constituição, ao Poder Legislativo. Portanto, a partir da entrada em vigor da nova ordem constitucional, o CMN não possui qualquer poder de ingerência na fixação de taxas de juros, e mesmo que ainda tivesse, suas estipulações não poderiam ultrapassar o limite constitucional de 12% ao ano.

Esbarram os defensores daquela corrente, ainda, no texto do art. 173, §4º da Carta Constitucional, que impulsiona o Estado a reprimir o abuso do poder econômico e o aumento arbitrário dos lucros. Afinal não é de outra coisa que aqui se trata senão abuso de poder econômico e aumento arbitrário de lucros.

Disso trata também o CDC (Código de Proteção e Defesa do Consumidor), que consagra o princípio da boa-fé nas relações negociais, princípio esse que não se compraz com o arbítrio pretendido pelos defensores dessa corrente, pois veda a estipulação de vantagem exagerada em detrimento do consumidor, fulminando de nulidade absoluta a cláusula contratual que a estabeleça. E nem se cogite de polemizar a aplicação das regras protetivas da relação de consumo aos entes bancários, ante a clareza do disposto no §2º do art. 3º do CDC.

Nem podem as instituições financeiras escorar-se na edição da Súmula 596 do STF, que consagra o entendimento a elas favorável. Primeiro porque súmula não é lei; também não possui força vinculativa, nem tampouco tem o poder de revogar norma legal, muito menos constitucional e em pleno vigor; e segundo, porque a Súmula referida é a cristalização do entendimento equivocado que reina naquela Corte, conforme os fundamentos aqui exaustivamente esposados.

Um último argumento poderia ser sacado da mágica cartola dos bancos. Esse, supralegal. O de que entendimento contrário inviabilizaria o funcionamento da economia brasileira, ante a quebra do Sistema Financeiro Nacional.

Aí eles seriam relembrados de que lei, e principalmente, norma constitucional, enquanto estiver em vigor, tem de ser cumprida e ao Poder Judiciário, ao invés de dar guarida a interesses espúrios, cabe a tarefa árdua de fazer efetivas as normas jurídicas.

Não pode a lei, enquanto possuir regular vigência, ser flexibilizada, para consertar desacertos da Economia ou ser responsável pela estabilidade de um sistema baseado em sanha e ganância, avalizado por um Executivo submisso e covarde, que paga suas contas com dinheiro público.

O funcionamento da economia é que deve adequar-se aos ditames constitucionais e, não o contrário.

A regra constitucional que limita a prática de juros é, portanto, de aplicabilidade plena e imediata, não estando a depender de qualquer regramento posterior para ser devidamente aplicada. Está em plena harmonia com os preceitos que inspiram e objetivos a que almejam a intervenção do Estado no domínio econômico.

Felizmente, a maioria esmagadora dos Tribunais Estaduais e Federais, contrariando a posição adotada pelas Cortes Superiores e seguindo a esteira do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul, Corte de louvável vanguarda, repudiam a tese empresária e dão ao dispositivo em foco a aplicabilidade merecida.

Com efeito, não há possibilidade jurídica de se admitir como plausíveis quaisquer argumentos em defesa da não-aplicabilidade da regra limitativa inserta no referido §3º do art. 192, ante a harmonia daquele preceito com os objetivos traçados pelo legislador constituinte, harmonia essa que nem a decisão do Supremo, guardião da Constituição, conseguiu demover.

De se lamentar profundamente a mencionada decisão, que vem à baila num momento em que o país, mergulhado nas incertezas de um governo estúpido e desencontrado, mais necessita das suas instituições para a garantia de obediência aos preceitos normativos que regem e estruturam o seu corpo social. E o papel do Judiciário, como dito, é exatamente fazer efetivos esses preceitos, restabelecendo a segurança jurídica, tendo em vista os fins sociais a que a norma se dirige e as exigências do bem comum, pois assim quer o Direito, assim quer a Justiça.

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