Censura à palavra

Censura à palavra

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29 de fevereiro de 2000, 0h00

Preocupam as freqüentes concessões de liminares pelo Judiciário, obstativas de publicações ou divulgações de imprensa.

Os juizes, via de regra, atendem a pedidos formulados por pessoas não interessadas nesta ou naquela publicação, as quais, às vésperas da divulgação indesejada, ajuízam ações cautelares, com solicitações urgentes de liminares, argumentando que, por serem invioláveis a privacidade, a honra e a imagem da pessoa, conforme estabelece o artigo 5º, X, da Constituição Federal, tal fato confere-lhes a condição jurídica de impedirem, mediante ação, a publicidade da matéria jornalística que os esteja envolvendo, independentemente da natureza e do interesse público do texto.

As decisões judiciais têm sido prolatadas com convicção e firmeza, a demonstrar que parte do Judiciário está segura da sua competência para censurar a imprensa, toda vez que se convencer que um interesse individual esteja sendo ameaçado por ela.

O tema é relevante e exige criteriosa reflexão, pois estão sendo interpretados, como isométricos, conceitos de dimensões jurídicas distintas, o que dá ensejo aos tais disparatosos julgamentos. É certo que o legislador constituinte, talvez motivado pelo clima reativo sob o qual foi sancionado o novo Texto, após décadas de regime autoritário, dispôs, dentro do mesmo título, princípios de direito público, que consagram a liberdade sem censura da expressão intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX) e o livre acesso às informações de interesse social (art. 5º, XIV), ao lado daqueles, de natureza privada, que protegem a imagem, a honra e a privacidade do indivíduo (art. 5º, X).

Isto não significa que conceitos diversos possam ser interpretados como isonômicos, até porque, se assim fosse, estar-se-ia admitindo dentro da Constituição a convivência de antagonismos.

A liberdade, mormente no campo da expressão ou da palavra, assim como o acesso do cidadão à informação, constituem-se regras essenciais do Estado Democrático de Direito (art. 1º), pairando acima da competência de quaisquer dos poderes constituídos, enquanto vigorar o regime político adotado pelo País. Enquanto valor/fruto de conquista política da sociedade não poderá ser limitada, por ser fator limitativo da própria competência do Estado, conforme dispõe o art. 220 da Carta.

Usando a mesma equação com a qual Maximiliano(1) dimensionou as esferas da ética e do direito, pode-se dizer que a órbita da liberdade, como conceito fundamental do Estado, e a das normas reguladoras das relações sociais do indivíduo, são concêntricas, sendo o raio da primeira mais longo, tanto que circunscreve a segunda. Esta, por sua vez, tem naquela o pressuposto essencial da sua existência jurídica. O grande filósofo e jurista Miguel Reale(2) afirma ser “a ética a realização da liberdade e o direito a sua garantia” destacando também que a norma jurídica não obriga “em razão do puro querer de quem a emana (ou a aplica), mas sim em virtude da pressão objetiva que os valores exercem no meio social”(3).

Por primeiro, portanto, o Judiciário ou qualquer outro poder, é absolutamente incompetente para reprimir a liberdade de expressão e de comunicação no País.

Segundo, a confusão entre os princípios de ordem pública e os de natureza privada, reguladores das relações do indivíduo em sociedade, contraria a lógica, pois coloca no mesmo plano valorativo conceitos jurídicos diferentes.

Rui Barbosa(4), neste texto magnífico, dá a medida da liberdade, sobretudo a de imprensa, eleita por ele como condição da Pátria: “Acima da pátria ainda há alguma coisa: a liberdade; porque a liberdade é a condição da pátria(…) é o único bem, cujo sacrifício a pátria não nos pode reclamar”. Ou: “De todas as liberdades é a de imprensa a mais necessária e a mais conspícua: sobranceia e reina entre as mais. Cabe-lhe, por sua natureza, a dignidade inestimável de representar todas as outras”.

A imprensa deverá ser responsável, mas sobretudo deverá Ser. Responsabilizá-la e penalizá-la por atos ilícitos é função do Estado, porém, sacrificá-la pelo emprego da censura prévia, é ato que agride a estrutura do regime político.

Pontes de Miranda(5), comentando a Carta de 67, assinala que quando o texto diz que não será tolerado o cometimento de determinadas infrações, jamais está admitindo a pré-censura, mas a faculdade de o Estado editar leis penais a respeito. “… comete crime de polícia – o crime de vedar a livre manifestação do pensamento”.

No campo dos interesses particulares, as violações ocorrem freqüentemente, sem que isto desestabilize o grupo social, malgrado possam até incomodar as normas de convivência, sendo certo que para esses casos o Estado dispõe de regras claras para tutelar os interesses em conflito. A Constituição e a legislação especial instituem penalizações adequadas às lesões no campo da privacidade, honra, imagem e aos abusos cometidos pela imprensa (vide art. 5º, V e X, C.F.).

Em meio à turbulência causada por julgamentos equivocados, apraz citar decisões sensatas, como a prolatada pelo S.T.F., julgando caso de imprensa, da qual extraio excerto do culto Ministro e ex-presidente, Dr. Celso Mello(6): “A liberdade de imprensa, na medida em que não sofre interferências governamentais ou restrições de caráter censório, constitui expressão positiva do elevado coeficiente democrático que deve qualificar as formações sociais genuinamente livres”.

Mesmo assim, atos censórios grassam nas instâncias menores e a perplexidade se acentua quando se sabe que o projeto de “Lei da Mordaça” foi recentemente aprovado na Câmara, impondo limites à liberdade de expressão, independentemente do interesse público.

Doutos certamente escreverão sobre o assunto com profundidade, porém, na opinião do autor destas linhas, se sancionado o projeto, com o texto atual, estar-se-á legalizando, contra a Constituição, a censura prévia no País.

Notas

(1) Hermenêutica e Aplicação do Direito – Forense – 1981 – pg.1 60

(2) Filosofia do Direito – 1996 – Saraiva – pg. 219

(3) O Direito como Experiência – 1998 – pg. 248

(4) Obras Seletas (T.P. – Tomo II, 327) Dicionário de Conceitos e Pensamentos – 1967

(5) Comentários à Constituição Federal de 1967 – art. 150, § 8º, pg. 153

(6) Inquérito nº 870-2 – RJ – Rel. Min. Celso de Mello

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