Tutela cautelar

Política, Direito e Ética na tutela cautelar.

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9 de fevereiro de 2000, 23h00

O doce Rabi prometera: “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mateus, cap. 5, v. 6).

Se a Justiça é divina, o Direito é humano e tal caracter predomina quando se realiza através do Processo, na complexa e inescrutável relação entre pessoas que ali depositam a gama inumerável dos mais contraditórios interesses.

Justiça tardia é rematada injustiça, bradava Rui Barbosa no início deste século XX, o mesmo jurista que, aliado a Pedro Lessa, engendrou a denominada “Doutrina Brasileira do Habeas Corpus”, meio sumário que utilizava como alternativa então aceita ao excessivo apego às formas procedimentais que impregnava a prática forense.

O provimento cautelar é, assim, em sentido amplo, a tentativa do juiz de vencer a marcha inexorável da dimensão tempo, até que se chegue à decisão final do processo.

O tempo é o inimigo contra o qual o juiz luta sem tréguas – dizia Eduardo Couture – impondo-lhe três exigências inerentes à própria vida: ceder, retroceder e acelerar o seu curso.

Como lutar processualmente contra o tempo?

Piero Calamandrei indicou as modalidades cautelares e sua classificação aqui é lembrada porque ainda intangível às críticas:

– As instrutórias, em que se antecipa a produção de provas, como no procedimento da vistoria ad perpetuam rei memoriam ou a oitiva de pessoa que, provavelmente, não poderá aguardar a audiência de instrução;

– as tendentes a garantir a efetividade do próprio processo, como o arresto e o seqüestro, pois são inerentes ao poder de decidir os meios de garantir a própria decisão;

– as cauções, como aquela do art. 835 do Código de Processo Civil, aliás incompatível com o direito de acesso à jurisdição nesta época globalizada, ou como as que servem de contra-cautela, a neutralizar o risco que a efetivação de outra cautelar possa trazer ao requerido, v. g., o depósito prévio na ação rescisória; e, finalmente,

– as medidas provisionais, ou antecipatórias da tutela definitiva em que se adianta o provimento judicial que se espera ao final da causa, como, por exemplo, a liminar initio litis na ação possessória e no mandado de segurança, as antecipações referidas nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil, e a prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal, prevista no art. 312 da lei processual penal

– Insensato seria o juiz que decretasse a prisão preventiva daquele, que desde logo, se vislumbra será exculpado a final.

Abrangente, assim, o campo de atuação do magistrado em sede cautelar.

Antecipa-se a tutela quanto ao processo no julgamento da lide na hipótese do art. 330 da lei processual ou no provimento relatorial a antever o julgamento pelo colegiado, no art. 557.

Antecipa-se a tutela no plano do direito material, como está nos arts. 273 e 461 da lei processual, provendo o juiz, total ou parcialmente, o que, pela urgência, não poderá aguardar até o dia do trânsito em julgado da decisão.

Assim, a delibação cautelar, em qualquer de suas modalidades, tem a urgência como causa e como conteúdo a sumária cognição do tema posto como fundo da demanda, pois insensato seria o juiz que decretasse a prisão preventiva daquele, que desde logo, se vislumbra será exculpado a final (sobre a estrita vinculação da cognição cautelar à cognição do meritus causae, veja-se, por todos, os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Carlos Mário Velloso no Agravo Regimental à Suspensão de Segurança nº 846).

E, quanto a este requisito, legisladores, doutrinadores e juízes inocuamente se deliciam, quando não infernizam os demais, no intenso labor de nominá-lo através de expressões que nada mais são do que conceitos indeterminados, pois o legislador genérico e abstrato não desconhece as suas limitações em face do universo de situações que pretende regular, somente apuráveis a cada momento no caso concreto: fumus boni iuris, verossimilhança, probabilidade, plausibilidade.

Todos exigem a projeção do espírito do julgador na percepção da realidade fática, do trecho da História que os litigantes apresentam como fundamento do seu direito.

A Constituição de 1988, entre os princípios garantidores do “devido processo legal”, alçou ao patamar supremo a norma que então estava restrita ao nível do Código de Processo Civil, extraída de seu art. 332.

Do disposto no art. 5o, LVI, da Carta Magna, extrai-se, entre outras normas, aquela que municia o magistrado para o cumprimento do seu papel de árbitro dos conflitos sociais: “são admissíveis no processo todas as provas lícitas”.

Serve a prova para demonstrar a ocorrência do fato que é suficiente para gerar o alegado direito que se põe ao magistrado como fundamento do pedido.

Inibir a produção da prova é golpear o direito fundamental de acesso à Justiça, como a medieval prova diabólica, expressão de supremo desprezo ao jurisdicionado, a tisnar indelevelmente a toga do julgador que se espera o oráculo do Direito aplicado ao caso concreto.

Derrogaram-se, desde 5 de outubro de 1988, os textos legais condicionantes ou inibidores da prova, como, tomando por exemplo o Código de Processo Civil, o que está no art. 401, e até mesmo, os efeitos legais da prova, como a revelia do art. 319, que chegou até mesmo a ser interpretada como irracional meio de restrição do poder/dever judicial de convicção sobre a causa.

Sempre motivadamente – quer o mandamento constitucional do art. 93, IX, garantir legitimidade e autoridade ao ato de poder público – o juiz hoje está munido de amplos poderes para a sempre difícil tarefa de apreensão histórica dos fatos que interessam à causa.

O Estado Democrático de Direito reclama a pronta resposta dos órgãos jurisdicionais, conduzindo, cada vez mais, a atividade cautelar do juiz, posto no centro do turbilhão de conflitos que exigem solução urgente, como no conhecido caso de autorização ao Município do Rio de Janeiro para implodir edifício em ruína, ou para impor a transfusão de sangue a paciente em periclitação de vida, embora os seus parentes, por convicção religiosa, abominem tal prática.

Mas não bastam os requisitos da plausibilidade do alegado direito e da urgência do provimento reclamado para a concessão da cautelar.

Outro requisito exsurge naturalmente dos valores jurídicos postos em conflito, a mitigar ou mesmo anular as proibições legais da irreversibilidade do provimento e da satisfatividade que, aliás, inerente a qualquer provimento judicial, aí deve ser considerada sempre provisória, mesmo porque do disposto no art. 811 da lei processual se extrai a norma da responsabilidade objetiva do requerente quanto aos danos decorrentes do cumprimento da cautelar.

O requisito da adequada proporcionalidade entre os efeitos do provimento cautelar com a tutela do direito em periclitação ainda não figura expressamente no Código Processual, mas está em leis específicas sobre a cautelar contra a Fazenda Pública.

Esta aferição da proporcionalidade exige do juiz a valoração dos bens postos em conflito, transcendendo, aí, ao caráter econômico e chegando aos valores morais que, em determinado momento histórico, a sociedade considera essenciais para a sua existência e desenvolvimento.

Ao sopesar os valores em conflito, o magistrado cruza, finalmente, a ponte de ouro entre o Direito e a Ética, pois, esta é o fundamento daquele.

“O poder de acautelar é imanente ao julgar”, proclamou o Supremo Tribunal Federal em conhecidas decisões (ADCM nº 4, julgada em fevereiro de 1998; Representação nº 933, julgada em março de 1975).

Adotando o regime presidencialista de governo – caracterizado pela nítida separação da funções estatais – e garantindo o livre acesso à jurisdição, a Constituição de 1988 impõe aos tribunais o poder de acautelar, e este poder não pode ser limitado ou inibido pelas leis, que somente servem aos magistrados como indicadores não exaustivos de seu relevante papel de árbitros dos conflitos individuais e sociais.

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