Violência policial

Favela Naval: conheça a sentença que condenou os policiais de Diadema.

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11 de dezembro de 2000, 11h34

Em 1997, as imagens da violência praticada por policiais militares na Favela Naval, em Diadema, chocaram o mundo. O juiz Pedro Aurélio Pires Maríngolo teve a árdua tarefa de decidir, no mesmo ano, a indenização pedida pela família de um homem assassinado.

O homem foi morto pelo soldado da PM, Otávio Lourenço Gambra, conhecido como “Rambo”.

O juiz concedeu, em primeira instância, a indenização por danos morais de R$ 50.000,00 para cada um dos irmãos do assassinado e R$ 150.000,00 para a mãe. Leia a seguir a sentença do juiz na íntegra.

Decisão

Trata-se de ação de “reparação de danos materiais e morais”, com pedido de antecipação de tutela, processada pelo rito comum ordinário, ajuizada por Efigênia Guilhermina Josino, Efigênia Evangelista Josino, Luiz Carlos Josino, Antônio Marcos Josino, Guilherme Leonardo Josino, Regina Josino, Manoelita da Conceição Josino, José Francisco Josino, Carlos Roberto Josino e Maria Acácia Josino Leite em face da Fazenda do Estado de São Paulo.

Segundo a inicial, que trouxe documentos, em suma, os autores são parentes (a primeira, mãe; os demais, irmãos) de Mário José Josino, morto em 07/3/97, na “Favela Naval” de Diadema/SP, por projétil de arma de fogo disparada pelo então Soldado PM Otávio Lourenço Gambra, vulgo “Rambo”, em episódio que se tornou muito conhecido porque gravado em fita VHS posteriormente divulgada em rede nacional de televisão, ocorrido em “operação de bloqueio” realizada, no início da madrugada daquele dia, por vários milicianos integrantes da 2ª Companhia do 24º Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo, quase todos expulsos da Corporação e pronunciados por vários crimes cometidos naquela noite, inclusive o de homicídio desse parente dos autores.

Fundados na disposição do artigo 37, parágrafo 6º da Constituição Federal de 1.988, demandam os autores a responsabilidade civil da requerida porque teria havido, no caso, abuso de autoridade e desvio de poder daqueles seus agentes, servidores no exercício da função policial militar, formulando ampla pretensão indenizatória, por danos materiais (apenas para a autora mãe da vítima, pensão mensal baseada no último salário real recebido por Mário – 7,68 salários mínimos, desde a data dos fatos) e por danos morais (para todos os autores, mãe e irmãos da vítima, a ser fixada pelo Juízo em montante que, efetivamente, compense o sofrimento deles).

Indeferido o pedido de antecipação de tutela, a requerida, regularmente citada, manifestou contestação alegando, preliminarmente, carência de ação (por ilegitimidade de parte ativa, relativamente ao pedido de reparação de dano material da autora mãe, porque o falecido Mário era casado e deixou viúva e filho impúbere, de maneira que apenas estes têm legitimidade para tanto), e sustentando, quanto ao mérito, em suma, que não há prova do vínculo de dependência econômica entre a autora mãe e o falecido Mário, cujo salário mensal de R$ 860,23 não comportaria a manutenção própria, da mulher, do filho e da mãe, que recebe proventos de aposentadoria e tem outros nove filhos para ampará-la; que não incidem, no caso, as regras dos artigos 1.547 e 1.557, parágrafo único do Código Civil e do artigo 49 do Código Penal; e que o arbitramento da indenização do dano moral deve ser feito pelo Juiz, na forma do disposto no artigo 1.553 do Código Civil, com equilíbrio e sem provocar enriquecimento sem causa, tal como exageradamente pretendido pelos autores, sendo aconselhável a adoção do critério estabelecido pelo Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4117/62).

Os autores manifestaram-se sobre a contestação, juntando documentos dos quais a requerida teve ciência; o processo foi saneado por decisão que designou audiência de instrução e julgamento, fixando o ponto controvertido sobre o qual se admitiu a dilação probatória; no decorrer da audiência, frustrada a tentativa de conciliação, foi ouvida apenas uma testemunha pelos autores, que desistiram da oitiva das demais, e as partes debateram a causa, sustentando cada qual os pontos de vista adversos anteriormente expendidos.

Relatados no essencial, passo a decidir:

1. A carência de ação alegada em preliminar na contestação confunde-se com parte da questão de mérito demandada, e juntamente com esta será conhecida.

2. Não se controverte sobre a obrigação da Fazenda do Estado de São Paulo de indenizar os danos causados, naquela noite fatídica, pela conduta criminosa dos policiais militares que participavam de uma operação “bloqueio” em via de acesso à Favela Naval, em Diadema/SP.

Não bastassem as circunstâncias da requerida não negar, na contestação, a responsabilização demandada e do Governador do Estado ter assumido expressamente tal obrigação indenizatória (Decreto nº 41.688, de 07/4/97 -), os fatos foram amplamente comprovados na fita VHS, gravada por um cidadão, que a Rede Globo de Televisão divulgou amplamente, inclusive e principalmente no trecho que interessa a este processo, qual seja, o dos inusitados disparos de pistola feitos pelo PM Gambra – vulgo “Rambo” – contra o veículo em que viajava o parente dos autores, que morreu porque atingido por um desses projéteis.


A controvérsia resume-se ao dimensionamento dos danos causados pela conduta dos policiais e na definição da indenização respectiva, porque aparentemente os autores não aceitaram a indenização extraprocessual proposta pelo Governador, se é que houve mesmo alguma proposta concreta nesse sentido…

3. Ilícito civil é o dano causado a outrem por dolo ou culpa, também nominado, desde o Direito Romano, “dano injusto”.

O pressuposto da responsabilidade civil, portanto, é a ocorrência do dano, pois o ato ilícito somente repercute na órbita do Direito Civil se causar prejuízo a alguém.

A responsabilidade da requerida, dita objetiva, emerge do disposto no artigo 37 parágrafo 6º da Constituição Federal de 1988.

Lastrada na “teoria do risco administrativo”, como ensina Helly Lopes Meirelles (1), ou simplesmente na “teoria do risco”, conforme lição de Yussef Said Cahali (2), essa responsabilidade se basta com o reconhecimento do nexo de causalidade entre o procedimento comissivo/omissivo da Administração Pública e o evento danoso verificado como conseqüência.

Todo dano injusto (assim considerados aqueles causados exclusivamente pela atividade, regular ou irregular, da Administração) sujeita a Fazenda Pública ao ressarcimento, do qual ela se exime, apenas, se provar ter sido ele causado, exclusivamente, por fato da natureza ou do próprio prejudicado (o dano, então, não mais se qualificaria, juridicamente, como injusto, razão pela qual deixa de ser indenizado).

O dano injusto, ainda, poderá implicar em responsabilidade indenizatória atenuada se concorrentes, na sua causa, a atividade da Administração (regular ou irregular) e o fato da natureza ou do próprio prejudicado.

O DANO ou prejuízo é a diminuição ou subtração de um bem jurídico; e indenizar significa ressarcir o prejuízo, ou seja, tornar a vítima indene, cobrindo todo o dano por ela experimentado: “perdas e danos” que, na linguagem do artigo 1.059 do Código Civil, abrangem não só o dano emergente ou direto (aquilo que a vítima efetivamente perdeu) como também o lucro cessante (aquilo que a vítima deixou razoavelmente de ganhar).

Quanto ao objeto, classifica-se ele em dano material (patrimonial em sentido estrito) e em dano moral.

Ocorre dano material quando a diminuição/subtração recai sobre bens jurídicos materiais da vítima; e ocorre um dano moral quando a diminuição/subtração recai sobre aspecto não econômico dos bens jurídicos da vítima.

Durante muito tempo foi controvertida, na doutrina e na jurisprudência, a possibilidade de se reconhecer e de se indenizar os danos morais.

Entendia-se que o dano material já compreendia o chamado dano moral, e que este, sem reflexos materiais, não seria indenizável.

Assim, por exemplo, não se admitia indenização do dano que se reduzisse à perda de escritos sem nenhum valor artístico ou literário, pertencentes ao pai do “escritor” falecido que nutrisse pelo caderno destruído sentimento de saudade e de respeito pela memória do filho.

No máximo, admitia-se composto e ressarcido o dano com a mera reposição do caderno destruído…

Prevalece nos últimos anos, entretanto, entendimento jurisprudencial, consagrado inclusive na Súmula do Superior Tribunal de Justiça (nº 37), no sentido de que são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato.

E isso porque, embora alguns danos morais possam levar a prejuízos materiais, na essência são eles absolutamente distintos (os primeiros levam em conta o outro lado do ser humano, seus sentimentos, afeições, crenças, etc.), de maneira que, em havendo relação de concomitância ou de conseqüência entre eles, o resultado indenizatório é duplo: um pelo dano material e outro pelo dano moral.

Hoje em dia admite-se, no exemplo acima dado, que o dano material daquele pai (o caderno destruído) seja reparado com o fornecimento de um caderno novo, e que o dano moral (a perda dos escritos do filho falecido) seja compensado por algo que atenue o sentimento dessa perda no espírito do pai.

A responsabilização por qualquer dano (material ou moral) leva à conseqüência indenizatória (no sentido amplo).

A indenização do dano material se resolve com a reparação, assim entendida a restauração econômica, integral, do bem patrimonial atingido.

A indenização do dano moral, contudo, não se resolve pela reparação (a dor não tem preço e os bens jurídicos de substância psicológica, cultural ou ecológica também são incomensuráveis). Os danos morais, portanto, irreparáveis por natureza, são indenizáveis pela compensação (se o dinheiro não paga o preço da dor e não faz ressurgir uma obra de arte ou uma floresta secular destruídas, é capaz, contudo, de ensejar na vítima sensações que amenizem as agruras resultantes desse dano não econômico, até porque a alegria é da mesma natureza transcendental da tristeza, de maneira que a primeira, propiciada pelo dinheiro, pode neutralizar ou compensar a segunda, decorrente do dano moral).


A dificuldade, nesse tema, não reside na identificação do dano moral. Este é reconhecido quando se pergunta, diante do fato, se alguma quantia de dinheiro é capaz de revertê-lo.

Se a resposta for positiva, estaremos diante de um dano material puro ou de um dano moral com reflexos materiais, que se indeniza pela reparação.

Se a resposta for negativa, estaremos diante de um dano moral puro, que deve ser indenizado pela compensação, e as dificuldades, então, residiriam na fixação do “quantum” compensatório, em razão da ausência de critérios objetivos para tanto, e na definição dos titulares desse direito à indenização compensatória (a dor psicológica, muitas vezes, atinge parentes próximos e remotos do injustamente morto, além de não parentes…).

A primeira dessas dificuldades, entretanto, é uma falsa questão. A lesão moral não pode ficar impune pela impossibilidade da previsão legislativa de um critério objetivo que trate da equipolência entre bens extrapatrimoniais (são incompatíveis de homogeneização as coisas heterogêneas).

A solução para ela, então, há de ser encontrada, em cada caso concreto, pela via jurisdicional, sopesados o sofrimento da vítima do dano moral e a capacidade econômica do agressor, em raciocínio semelhante ao da fixação da pensão alimentícia no Direito de Família, ressaltando-se o caráter punitivo (pena civil) e pedagógico da indenização, também tendente a prevenir, evitando, que o agente persevere na conduta culposa que causou o evento danoso.

A superação da segunda dificuldade também demanda alguma reflexão sobre as circunstâncias de cada caso concreto, porque não é todo e qualquer sentimento de perda, de dor, de sofrimento, de frustração ou de tristeza, por exemplo, que se caracteriza como dano moral indenizável.

Indenizáveis por compensação são os danos morais sofridos apenas por quem se achava ligado de forma tão profunda, íntima e próxima com o objeto perecido que a superação desse trauma de perda, se for mesmo possível, exige alguma compensação extraordinária sem a qual a sobrevida normal se torne custosa e difícil, senão impossível…

Sobre danos morais, em especial a respeito da perda de um filho pelo pai ou pela mãe, o Direito das nações sul americanas de origem hispânica (Peru, Chile e, em especial, a Argentina) é mais explícito que o Direito brasileiro, como se infere da lição de Jorge Mosset Iturraspe (3), ilustre civilista portenho:

“La vida de los hijos representa para los padres, desde el ángulo de los sentimientos, un valor incomparable. El padre o la madre vem en sus hijos el fruto de su amor, la continuación de sus vidas más allá de las propias, y esperan recibir de ellos buena parte al menos, del cariño que han depositado, como consuelo y ayuda espiritual en los altos años de la vida.

Y desde la perspectiva económica, que tanto preocupa a quienes carecen de un patrimonio solvente y temen, com fundamento, el desamparo y la miseria en la vejez, significa la probabilidad cierta de un apoyo material. Algo así como la devolución a los padres de lo que los hijos recibieran durante los primeros años de su vida.”

Induvidoso, como se intui e se presume, o enorme dano moral que sofrem os pais pela morte injusta do filho, cujo pressuposto não é e nem se confunde com o eventual prejuízo material que dessa morte injusta possa advir para eles, se também dependiam economicamente do falecido.

Também os outros parentes (sangüíneos, legais ou por afinidade), diretos ou colaterais, daquele que foi injustamente morto podem sofrer dano moral por tal desaparecimento, que não pode ser confundido com o dano patrimonial daqueles que dependiam economicamente do falecido.

Tanto quanto aquelas pessoas não aparentadas com o injustamente morto, mas que a ele eram ligadas por vínculo sentimental ou afetivo cujo abrupto rompimento implica em sofrimento psicológico de toda sorte.

O problema dessa proliferação de vítimas do dano moral, que a doutrina hispânica denomina “catarata de damnificados”, deve ser resolvido, segundo Iturraspe (4), “por la vía de la relación de causalidad adecuada; o sea que, en lugar de agregar un requisito para la existencia del daño jurídico, extraño a nuestras tradiciones, se debió dejar en manos de los jueces la decisión acerca de la relación entre el hecho antijurídico y el perjuicio, a los fines de excluir de la indemnización a todos aquellos que no fueram una consecuencia inmediata o mediata previsible”.

O Código Civil argentino, nos artigos 1078 e 1099, confere expressamente às vítimas diretas do ato antijurídico a legitimidade ativa para a demanda indenizatória do dano moral, restringindo-a, no caso de homicídio, aos herdeiros necessários da vítima.

Mas, explica Iturraspe (5), essa restrição legislativa decorreu de uma reforma (Lei nº 17.711, de 1968) que, pondo fim à discussão sobre se caberia ou não a indenização do dano moral puro cumulativamente com o dano material, consagrou a restrição para não se passar de um sistema particularmente proibitivo a outro amplamente permissivo.


Assim, o texto legal não impede que se entenda, com base na equidade e com limites que o Juiz encontrará em cada caso concreto, que a ação de indenização do dano moral compete, também, a todos os parentes do morto, além dos herdeiros necessários, e a todas as pessoas, a ele fortemente ligadas, que aleguem ter sofrido lesão, ainda que indireta, de legítimo direito subjetivo.

E, arremata o professor argentino (6), “es caprichoso presumir el dolor en los parientes íntimos y negar esse mismo dolor en cabeza de los amigos o de la novia o el novio.

Debe quedar en manos de los jueces detener la ‘catarata de damnificados’, en consideración a las circunstancias de cada caso, el patrimonio del victimario y el patrimonio de las víctimas, la intimidad que hace producir el padecimiento o gravedad del dolor, etc. El juez debe estar alerta para evitar que el daño invocado se convierta en enriquecimientos injustos para las presuntas víctimas y en un empobrecimiento excesivo para el victimario.

No debemos olvidarnos que en caso de ser varios los damnificados que reclamam indemnización por el daño moral, este rubro puede ser considerado en forma independiente respecto de cada víctima y conceder-se sumas distintas a cada una de ellas, teniendo en cuenta sus particularidades”.

4. Nestes autos, relativamente à desnecessária e criminosa morte de Mário José Josino pelos agentes policiais militares da requerida, a demanda indenizatória é de sua mãe e de seus irmãos.

Consta que a viúva e o filho menor do falecido ajuizaram, representados pelos mesmos advogados, idêntica ação em face da requerida que foi distribuída para a 6ª Vara de Fazenda e que já foi julgada.

Era de toda conveniência o julgamento, senão simultâneo, das duas ações por um único juízo, não apenas pelo evidente liame de conexão existente entre elas (mesmo objeto e mesma causa de pedir – artigo 103 do CPC); vínculo objetivo que não comporta nenhuma discricionariedade do juiz na avaliação de uma suposta “intensidade”, porque “tertius non datur”: a conexão existe ou não existe; se existe, haverá a modificação de uma das competências, pela regra do artigo 106 do CPC.

Como a ação da viúva e do filho do falecido Mário já foi julgada, desapareceu a finalidade da reunião de processos que este Juízo determinaria, se fosse oportunamente provocado, para que se pudesse superar o complexo e angustiante problema da fixação da quantidade de dinheiro destinada a compensar os distintos danos morais decorrentes de um mesmo fato.

Sim, porque (7) “pese a todas estas dificultades, conviene tener en claro y poner de resalto dos cuestiones: em primer lugar, que la suma de dinero a pagarse ha de ser la traducción lo más real posible del valor del menoscabo sufrido; y cuando decimos esto aludimos a que como regla, la reparación debe ser plena, integral, cubriendo todo el menoscabo y haciéndolo com un criterio realista. Sin generosidad – que puede resultar fácil, por tratarse del dinero ajeno – pero también sin egoísmos, como los que a veces parecen inspirar ciertas sentencias.

Se deve huir de toda ‘reparación’ que no sea tal, de los resarcimientos que tienen un carácter meramente simbolico y apuntam más a producir un resultado ejemplificativo – no siempre logrado – que a borrar el menoscabo padecido, devolviendo a la víctima lo que es suyo y que le fuera quitado injustamente. La segunda cuestión radica en la aplicación por los jueces de la virtud de la prudencia, que consiste en actuar com moderación, discernimiento, buen juicio y circunspección”.

5. Embora se possa, em tese, considerar que o falecido Mário, casado e com um filho menor, pudesse prestar algum auxílio financeiro a sua mãe e, também, a algum de seus muitos irmãos, a verdade é que não restou comprovado que qualquer dos autores, inclusive a mãe, efetivamente, fosse dele dependente econômico.

Afinal, com salário mensal registrado de R$ 861,18 brutos e morando com a própria família (mulher e filho) em casa de aluguel, não é crível que Mário pudesse prestar regular auxílio mensal de dois salários mínimos à sua mãe que, segundo essa única testemunha ouvida, é aposentada por invalidez e reside em casa própria, embora modesta, com outros quatro filhos solteiros ou descasados que também trabalham.

Logo, não há como deferir para a autora mãe do falecido qualquer indenização reparatória de dano patrimonial, que no caso inexistiu; descabida a alegação de que tal reparação seria devida porque, em tese, essa mãe poderia dele haver alimentos (artigos 396 a 398 do Código Civil), posto não caracterizadas as situações contempladas nos artigos 399 e 400 do mesmo Código Civil.

6. Mas induvidosamente os autores têm direito à indenização compensatória dos danos morais que experimentaram com a abrupta e criminosa morte de Mário, mãe e irmãos dele, agravados pelas estúpidas circunstâncias em que tal morte se deu.


Tenha-se presente, desde logo, estar comprovado o fato de que Mário era bom filho e companheiro de seus irmãos, com os quais estava e bem convivia regularmente, aos finais de semana, em reuniões de família na casa materna, a quem visitava diariamente.

Aliás, a existência desse forte vínculo afetivo familiar nem foi posta em dúvida pela requerida na contestação, que admitiu ser razoável o pagamento de cem salários mínimos para cada autor, tendo por parâmetro a indenização prevista no Código Brasileiro da Telecomunicações (Lei nº 4117/62) para os danos à honra veiculados por mídia eletrônica.

Mas os parâmetros para a fixação da indenização compensatória devida aos autores devem ser outros, como ressaltado nos itens 3 e 4 – supra, porque Mário José Josino não foi morto na Penitenciária do Estado, em contexto de rebelião de presos, e nem por ter resistido a alguma correta ação de policiais ou por ter sido confundido com algum bandido. Também não foi ele atingido por bala perdida de algum enfrentamento de perigosos marginais com a Polícia do Estado.

Mário foi covardemente abatido pela irresponsabilidade e pela displicência com que o Estado, há muito, gerencia os assuntos da Segurança Pública, em especial no controle da atividade funcional daqueles servidores públicos, fardados ou não, que devem ser armados, treinados, bem pagos e fiscalizados para agirem em defesa da sociedade e não para exterminá-la.

Ou seja, é necessário que o Governador do Estado, a quem exclusivamente cabe, por delegação constitucional, o poder administrativo de polícia de segurança pública nesta unidade federativa, faça mais que lamentar em artigo de jornal a morte, também estúpida, de um menino seqüestrado por policial militar que, nas horas de folga, fazia “bico” de segurança para o pai da criança; e muito mais que publicar no Diário Oficial decretos tais como o de fl. 159.

Também não basta que se dê a policiais envolvidos em mortes um afastamento temporário das funções para uma reciclagem psicológica que os afasta dos turnos de folga e que os impede de reforçar, com “bicos”, os magros e infames salários; e nem basta a demagógica propositura da extinção de uma corporação policial em favor de outra, tão ou mais deteriorada e desviada que a Polícia Militar.

Tenha-se presente que Mário foi fuzilado, naquela madrugada, no momento em que ele e seus três companheiros de infortúnio deixavam, de carro, o local onde se realizava aquela desregrada e criminosa operação de bloqueio.

Mas, antes deles e depois deles, naquela mesma noite, outros cidadãos foram brutal e cruelmente molestados por aquele bando de degenerados, como se viu na fita VHS amplamente divulgada pela mídia.

É importante ressaltar que tal gravação foi realizada por um cidadão daquela comunidade para comprovar, não o inesperado homicídio de Mário, mas os desvios de conduta dos integrantes daquela 2ª Companhia do 24º Batalhão da Polícia Militar, que há muito tempo agiam daquela maneira, naquele mesmo local, sem que os Oficiais responsáveis se dignassem a conferir as reclamações, várias, que chegavam aos quartéis, mais preocupados, esses gordos oficiais superiores da Polícia Militar, alguns em garantir o sucesso dos empreendimentos comerciais da família, outros em garantir convites “vip” para a corrida de “Fórmula 1” de Interlagos, e outros, ainda, preocupados em escamotear os fatos, como eles se deram, da mídia, do Governador e de seu Secretário de Segurança; tudo conforme se apurou, inclusive em depoimentos colhidos por Comissões da Assembléia Legislativa, vários diretamente televisionados, e amplamente divulgados pela imprensa.

Mário José Josino morreu atingido pelo projétil disparado da arma usada pelo soldado “Rambo”, que certamente será responsabilizado criminalmente por seu tresloucado ato, mas tal morte, efetivamente, foi causada pela ineficiente e irresponsável forma com que o Governador do Estado, o Secretário da Segurança Pública, o Comandante Geral da Polícia Militar, o Comandante do Policiamento do ABCD, o Comandante do 24º Batalhão da Polícia Militar e o Comandante de sua 2ª Companhia (Diadema), cada qual na sua faixa de influência administrativa, cuidam da (in)segurança pública e da (in)disciplina da tropa.

Lembre-se que aquele destacamento pervertido da Polícia Militar era composto por soldados, cabos, sargento e um Aspirante a Oficial. Lembre-se, também, que aquela fatídica noite da morte de Mário, não era a primeira em que aquele descontrolado bando de degenerados assim agia no local, humilhando, torturando, agredindo e extorquindo cidadãos comuns, miseráveis, humildes e… honestos!

Daí o sofrimento incomensurável dos autores, mãe e irmãos do falecido Mário.

Sofrem a ausência do parente querido, morto sem nenhum motivo por policiais, depois de ter sido por eles espancado e humilhado; sofreram porque viram e vão rever nas televisões, sempre que se tratar do tema violência policial, todas as cenas, quadro a quadro, dessa agressão brutal e letal gravada em fita VHS; sofreram com as primeiras reações dos policiais envolvidos, antes que a mencionada gravação chegasse a conhecimento público, no sentido de que Mário seria um bandido morto em enfrentamento; e sofreram com o descaso da Administração estadual de Segurança Pública, que não agiu, propriamente, no esclarecimento dos fatos, na indenização dos danos sofridos pelas vítimas daqueles policiais ou no amparo e conforto das famílias ultrajadas, mas apenas reagiu, tímida, burocrática e demagogicamente, acuada pela opinião pública provocada pela divulgação dos fatos pela mídia.


Tanto sofrimento moral exige uma compensação econômica de algum vulto que, além de implicar em penalização da requerida, deva propiciar aos autores algum sentimento de satisfação que neutralize ou compense, de alguma forma, a tristeza que lhes foi imposta pelos agentes da Segurança Pública estadual.

A fixação desse “quantum” compensatório, que na hipótese vertente será feita agora, deve levar em consideração, de um lado, todo esse sofrimento injustamente causado a Mário e aos autores pelos agentes da requerida, e, de outro lado, a necessidade de punir a Administração Policial do Estado pelo ineficiente e irresponsável desempenho de seus agentes, policiais e políticos, de maneira a forçar um aprimoramento desse serviço público que, sobre interessar a todos, indistintamente, deve se prestar, ainda, para prevenir, evitando, que episódios semelhantes tornem a infelicitar famílias como a dos autores; frutos certos da indisciplina e da absoluta ausência de comando nas instituições policiais.

E para que não se alegue que o controle jurisdicional da atividade governamental se faz “a posteriori”, ao estilo da “engenharia de obra pronta”, confira-se na sentença deste mesmo Juiz sobre o “caso Adriana Caringi” (processo nº 164/91 – 3ª Vara da Fazenda Pública), datada de 09/8/91, nesse particular inteiramente confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo Superior Tribunal de Justiça, que em 19/3/90 (data do fuzilamento daquela moça por um atirador de elite da Polícia Militar) a Polícia de São Paulo já era despreparada, indisciplinada e descontrolada, mencionados nesse julgado os nomes dos responsáveis diretos por aquela tragédia (Oficiais da PM e Delegado de Polícia, então Diretor de Departamento) que, não por mera coincidência, foram também os responsáveis e principais protagonistas do desnecessário e sangrento “massacre do Carandiru”, ocorrido dois anos depois, quando só então se cuidou de afastá-los desse tipo de serviço…

Arbitro, assim, a título de indenização por danos morais, uma compensação em dinheiro na quantia de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) para cada um dos autores irmãos, e na quantia de R$ 150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais) para a autora mãe do falecido Mário; descabendo juros compostos que, nas indenizações por ato ilícito, são devidos apenas por quem praticou o crime (nº 186 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça).

7. Ante o exposto e pelo mais que dos autos consta, julgo parcialmente procedentes os pedidos, extinto o processo com fundamento no artigo 269 – inciso I do Código de Processo Civil, para condenar a requerida a pagar, a título de compensação por danos morais, R$ 150.000,00 para a autora Efigênia Guilhermina Josino, e R$ 50.000,00 para cada um dos outros nove autores (Efigênia Evangelista Josino, Luiz Carlos Josino, Antônio Marcos Josino, Guilherme Leonardo Josino, Regina Josino, Manoelita da Conceição Josino, José Francisco Josino, Carlos Roberto Josino e Maria Acácia Josino Leite); tudo corrigido monetariamente conforme a Lei nº 6.899/81 e seu regulamento, a partir da data desta sentença, com acréscimo dos juros de mora (0,5% ao mês), estes contados da data da morte de Mário José Josino (07/3/97), nos termos do nº 54 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

Reconhecida a natureza alimentícia desses créditos, deverão eles ser pagos de uma só vez, com atualização monetária até a data do efetivo pagamento, nos termos do disposto nos artigos 57 parágrafo 3º e 116 da Constituição Estadual de 1989.

Sucumbente, fica a requerida condenada, também, no ressarcimento da taxa judiciária e demais despesas processuais eventualmente adiantadas pelos autores, inclusive honorários advocatícios ora fixados, na forma do artigo 20 parágrafo 4º do CPC, em 10% (dez por cento) do valor total da condenação principal; tudo corrigido monetariamente conforme a Lei nº 6.899/81 e seu regulamento.

Sujeita-se esta sentença ao duplo grau de jurisdição, de maneira que os autos, decorrido o prazo e independentemente da manifestação de apelação pelas partes, deverão ser remetidos, com nossas homenagens, ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Seção de Direito Público).

P.R.I.C.

São Paulo, 24 de outubro de 1.997.

Pedro Aurélio Pires Maríngolo – Juiz de Direito

1″Direito Administrativo Brasileiro”; RT; 15ª edição; páginas 545/560.

2 “Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência”; Saraiva; 1984; páginas 355/377.

3 “El Valor de la Vida Humana”; Rubinzal-Culzoni Editores; 3ª edição; página 137.

4 obra citada; páginas 171 e 172.

5 obra citada; páginas 172/174.

6 obra citada; página 177.

7 Jorge Mosset Iturraspe; obra citada, página 189.

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