Muito além do Nicolau

Historiador analisa o Judiciário brasileiro

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12 de agosto de 2000, 0h00

Entrevista transcrita do site www.no.com.br

Nos últimos cinco anos, enquanto o Juiz Nicolau inflacionava o TRT paulista, o historiador Luiz Werneck Vianna, com a equipe do Iuperj, centro de pós-graduação em ciências sociais no Rio de Janeiro, fazia com cuidados cirúrgicos a vivissecção do Judiciário brasileiro.

Abriu-lhe as entranhas em milhares de entrevistas com juízes. E tirou das pesquisas dois livros que descrevem as mudanças da carreira, por trás da fachada pachorrenta que geralmente guarda os segredos da corporação. Provam que a carreira, apesar das aparências, está em ebulição e o país mais perto do que nunca de experimentar um fenômeno global, que é a judicialização da vida política.

Por essas e outras, nem insistindo se arranca de Werneck uma palavra sobre o caso Lalau. Ele está preocupado com coisas mais sérias, como se vê nesta entrevista em que, emoldurado por livros, o professor falou ao site www.no.com.br emoldurado pelos livros de seu gabinete, sob o olhar de Karl Marx e Antônio Gramsci, dois orixás do marxismo que não foram apeados de suas paredes:

Opinião:Não importa o que se pense da Justiça do Trabalho, a meu ver não se entende o que ocorreu com ela nos últimos 20 anos sem levar em conta a emergência do PT. Antes da entrada em cena desse partido, os sindicatos, através dos vogais, exerciam certo controle da Justiça Trabalhista, havia um mecanismo interno que de algum modo abria para o mundo externo o funcionamento desses tribunais. Iam para lá os melhores quadros do movimento sindical, gente de esquerda, até comunistas. Isso foi abandonado pelos sindicatos petistas, que adotaram uma postura de contestação geral à Justiça do Trabalho.

Por princípio?

Luiz Werneck Vianna É preciso lembrar que, do outro lado, havia os planos econômicos que tornaram decisivo para o governo controlar diretamente nos tribunais do trabalho as decisões contra perdas salariais. Como se viu outro dia no depoimento do ex-secretário da presidência da República Eduardo Jorge, as relações do Executivo com a Justiça Trabalhista se tornaram meio “clientelistas”. Entre aspas.

A carreira dos juizes envelheceu?

Werneck – Pelo contrário, está rejuvenescendo muito nos últimos anos. Da década de 70 para cá, a revalorização do curso do Direito tem muito a ver com a criação dos concursos públicos para a Justiça, que dão acesso a carreiras de defensores públicos, procuradores, juízes. São concursos muito disputados, que estão mobilizando a nova classe média brasileira.

As mulheres já são 30% da magistratura brasileira. No Rio de Janeiro, mais de 40%. O Judiciário atrai jovens que, de um golpe só, a passagem por um concurso que de fato é muito difícil, têm condições de resolver a vida.

Tente ver o que acontece na escolas de magistratura. A maioria das turmas é feminina. Essa gente, até pela idade, chega ao Judiciário com uma atitude muito particular.

Qual?

Werneck – Eu imagino que esses jovens, que fazem esse esforço maluco – porque o concurso é um esforço maluco – têm um sentido de independência, inclusive política, muito forte. Em parte, porque isso é típico da idade. Depois, porque não devem a função a ninguém. Para essa gente, tomar decisões não assusta muito. É o que, aliás, se vê muito com os procuradores.

Para quem faz Direito, a advogar não é mais atraente?

Werneck – Formar uma banca exige capital cultural e social muito grandes. Mais social do que cultural. Quem agüentar dez, quinze anos de noviciado provavelmente vai ganhar muito dinheiro. O problema é atravessar esse aprendizado na idade em que a maioria das pessoas, por um motivo ou por outro, é compelida a casar. A menos que o candidato tenha recursos de família, que sustente a longa iniciação, ou a sorte de cair direto num grande escritório onde uma tia conhece o advogado. Mesmo assim, ganhará pouco durante muito tempo. Por isso, os concursos para carreiras na administração pública mobilizam os melhores quadros da geração. E pode não parecer, mas ainda há, sempre houve vocações para a administração pública.

Isso é típico das novas carreiras, como a de procuradores?

Werneck – Não. Concursos para juízes costumam ter até dois mil candidatos, para quinze, vinte vagas. E por causa deles o Judiciário se tem democratizado muito. Pode-se dizer que as provas são formuladas com certo viés doutrinário, para selecionar candidatos de inclinação conservadora. Mas o fato é que a velha corporação não está resistindo à mudança. No começo ficou meio assustada com a invasão de jovens, sobretudo de mulheres. A primeira mulher entrou num tribunal paulista há quatro, cinco anos. No Rio, a abertura foi mais rápida. Diga-se de passagem que o livro que fizemos, Corpo e Alma da Magistratura Brasileira, ajudou muito a transição a acontecer. Usamos uma pesquisa contratada pela Associação dos Magistrados para conhecer que cara eles iam tomando a carreira Ouvimos, para isso, quatro mil juizes em 1995.

Não foi difícil, para cientistas sociais, entrar num mundo tão fechado?

Werneck – Inicialmente, houve uma queda de braço. Eles queriam nos contatar para fazer uma pesquisa interna. Eu disse que não era intelectual de aluguel, só faria um trabalho científico, independente. Eles discutiram isso muito lá entre eles e acabaram por abrir seus arquivos. Mandamos questionários para 12 mil juízes e 4 mil responderam, o que não é mau. Demos sorte, porque na época nos baseamos num livro feito na França por Jean Luc Bodigel, La Magistrature, un corps sans âme. Mas lá, nem é preciso fazer pesquisa. Está tudo nos anais. No Brasil, em contraste, nos chamou a atenção a origem social da magistratura, porque 30% dos juízes têm origem em setores subalternos da sociedade. Pais com profissões manuais, só com o curso primário, essas coisas. Nós resolvemos fazer com ele, reunindo-nos semanalmente com os juízes, um deles foi logo depois presidente do tribunal, outro presidiu a associação. A pesquisa em si foi um instrumento de poder, quem passou por ela teve um recurso extra para carreira.

Se anda tão mexido por dentro, por que então, visto de fora, o Judiciário brasileiro dá a impressão de que não se mexe?

Werneck – Em parte, porque o Judiciário foi o último Poder a ser afetado pela transição política brasileira. Quando foi afetado, não estava pronto para responde à novidade. Nossa pesquisa, por sinal, foi encomendada por causa do clima de perplexidade que se instalou no Judiciário logo que a transição se abateu sobre ele e a opinião pública passou a lhe cobrar mudanças.

Como o controle externo?

Werneck – Isso foi secundário. O problema foram as reclamações contra a sua morosidade, sua desfuncionalidade. A conversa sobre controle externo veio depois e acabou juntando ainda mais a classe. É curioso, mas tudo o que nosso imaginário aplicar aos militares serve para definir os juizes. Eles formam uma corporação com identidade própria e orgulho profissional. E, com a transição, junto com as bandeiras da liberdade, democracia e transparência, veio uma questão que rachou o Brasil em dois partidos, o do mercado e o da administração pública. Logo depois da Constituinte, elegemos Fernando Collor, um presidente do mercado. E esse partido, que sob vários nomes sempre existiu, ao ganhar as eleições partiu imediatamente para tirar da frente a Constituição de 1988, vista como obra do partido da administração. Ora, acontece que a Magistratura brasileira é visceralmente simpática ao partido da

administração.

Ou seja, conservadora?

Werneck – Isso não quer dizer, e isso nós vimos claramente na pesquisa, que fosse refratária à modernização. É preciso compreender que, no Judiciário, todas estruturas estão encaixadas como num móvel feito sem pregos. É uma visão de mundo.

Não se fica anos e anos exposto a uma concepção dessas para depois se dobrar da noite para o dia a exigências da lógica econômica. Trata-se além disso de uma profissão fortemente alicerçada na religião. Há missas até hoje rezadas nos tribunais. Assim, diante da pressão dos governos que encarnavam o partido do mercado, o Judiciário resistiu, como se dissesse “o mundo de vocês é o da economia, o nosso é o do direito”.

Daí as liminares de um lado, as queixas contra “a indústria das liminares” do outro, enfim a campanha oficial para remover o Judiciário do caminho do desenvolvimento brasileiro. Controle externo é detalhe. No fundo, o que está em jogo é a noção de que, com esta Constituição e este Judiciário, o país não pode crescer. E isso os governos estão há muitos anos escandindo sobre o Judiciário.

Com que resultado?

Werneck – O resultado foi a maior compactação da magistratura e, ao mesmo tempo, um esforço interno de renovação através da seleção de quadros. Puseram os jovens que prestaram concurso para juiz em escolas onde os professores são juizes aposentados, septuagenários lidando com meninos. Ali se faz a ponte entre a tradição e a juventude.

Isso tudo não contrasta com o fato de que hoje o juiz brasileiro mais conhecido é um foragido da polícia?

Werneck – Este país, como se vê em A Construção da Ordem, um livro belíssimo de José Murilo de Carvalho, foi criado por magistrados. Com tanto peso na História brasileira, ela não pode deixar de ter raízes. No interior, principalmente, juiz ainda é referência social, política e moral.

Não é isso que está nas manchetes.

Werneck – E daí? Não acontece a mesma coisa com o futebol brasileiro, que para os jornalistas está em crise mas ganha no gramado? Ninguém ganha as partidas que nossa seleção ganha sem ter por trás uma grande organização. E esta organização capilar, envolvendo milhões de pessoas na institucionalização do futebol, ninguém teve a coragem ainda de dizer que é uma obra-prima brasileira. Fruto de uma catástrofe, que foi a derrota de 50. Eu tinha 12 anos quando o Brasil perdeu aquela Copa. Chorei como se fosse morrer. Acho que o país teve a mesma reação e decidiu que aquilo nunca mais poderia acontecer. Ninguém no mundo tem uma organização de futebol como a nossa. Exceto, talvez, o balé russo.

Mas a influência do Judiciário está diminuindo?

Werneck – Ao contrário. A Constituição de 1988 deu ao Judiciário instrumentos que ele não tinha. Não foram os juizes que os encomendaram. Muito menos a esquerda, que jamais pensou no Judiciário como aliado. É o caso das ações diretas de inconstitucionalidade, que ainda não descobri como foram parar na Constituição. Existindo, foram usadas pelos governadores, quando as constituintes estaduais começaram a pintar o caneco. Os procuradores começaram a disparar essa nova arma. E só em 1998, foram 1.945 ações desse tipo. Com isso, o Judiciário entra na modelagem do Estado brasileiro. Com a guerra fiscal entre os Estados, meteu-se pela primeira vez no cerne da questão federativa, por exemplo.

É essa a judicialização da política?

Werneck – O mundo inteiro está discutindo isso, na presença do judiciário na vida privada, interferindo nas relações entre pais e filhos, marido e mulher, aluno e professor. Casamento moderno é a três, marido, mulher e juiz. É uma perturbação da vida moderna.

Como a esfera pública não está funcionando, a república não está funcionando, o Judiciário virou o muro das lamentações. Isso é sintoma da depreciação da política, esvaziamento dos partidos, fragmentação da vida social, demolição do Estado de bem-estar. Aí, todo mundo corre para a Justiça.

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