Judiciário: uma visão realista

Marco Aurélio: País vive instabilidade normativa.

Autor

  • Marco Aurélio de Mello

    é ministro do Supremo Tribunal Federal presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do IMAE — Instituto Metropolitano de Altos Estudos das Faculdades Metropolitanas Unidas — FMU.

10 de agosto de 2000, 0h00

Nos dias atuais, é comum falar-se em crise. Muitos dizem-na linear, envolvendo o Estado como um grande todo. Outros a tem setorizada, distingüindo-a como restrita ao Judiciário. Aí, surgem as críticas exacerbadas, deixando-se de lado a visão abrangente, a visão racional, para potencializarem-se certos aspectos negativos.

As situações ligadas à administração, em si, não merecem destaque, porque isoladas e submetidas, antes mesmo da CPI do Judiciário, ao crivo da lei. Voltemos os olhos para o ofício judicante e, portanto, à atuação do Estado-Juiz e ao atendimento dos anseios populares. De Norte a Sul, a problemática é a mesma.

De um lado, surgem os magistrados em esforço sobre-humano, sacrificando a vida em sociedade, a própria dedicação ao aprimoramento constante, aplicando-se, a partir de obstinação insuplantável, à busca da solução dos conflitos de interesse.

O número de processos em curso, cada qual apresentando peculiaridades desafiadoras do intelecto, torna-os verdadeiros estivadores do Direito, afastando-os cada vez mais do trato deste como uma verdadeira ciência, a indicar, enquanto tal, a valia dos meios sempre a submeterem o fim, o desfecho das controvérsias.

Sim, é de importância maior o empréstimo de gradação a esses elementos, no que se lida com institutos, expressões e vocábulos com sentido específico, devendo estar sempre presente a fidelidade aos parâmetros de nossa ordem jurídica.

De outra parte, verifica-se o surgimento, sem precedentes, de conflitos de interesses, exigindo atuação imediata dos órgãos investidos da jurisdição, porquanto a permanência destas questões no cenário jurídico implica o abalo da paz social.

O desafio está na busca do equilíbrio de valores. A celeridade há de ser considerada sem o sacrifício do conteúdo. Podemos dizer que, nesse mister, não se pode exigir uma maior dedicação. Alcançou-se o limite, tendo em conta a razoabilidade.

É chegada a hora de reflexão direcionada a definir-se as causas da quadra vivida. O brasileiro apenas acredita na solução judicial. Diante de situação reveladora de posições antagônicas, aciona o direito cívico de acesso ao Judiciário, ficando em segundo plano os meios suasórios de equacionamento das divergências. Então é fácil detectar os motivos do grande número de processos.

Nos últimos anos, os sucessivos governos depararam com um mal maior — a inflação. Por isso, implementaram planos econômicos, resultando deles mudanças normativas substanciais. Confiram-se os planos: Delfim I, II e III; Dornelles; Cruzado I e II; Bresser; Arroz com Feijão; Verão; Collor I e II; Marcílio e Real.

Tal procedimento teria sido menos nefasto caso observada a organicidade do Direito. Todavia, a elaboração de projetos fez-se sem o acompanhamento de juristas, prevalecendo a participação dos tecnocratas. O resultado foi um mar de dúvidas sobre o alcance das novas normas jurídicas.

Ainda hoje, em que pese a passagem de anos sob a disciplina do plano real, continuamos no rescaldo dos incêndios provocados pelos diversos planos econômicos. Algumas matérias ainda não foram pacificadas, como ocorre, por exemplo, com a correção monetária relativa aos saldos das cadernetas de poupança objeto de bloqueio e das contas do FGTS.

Pois bem, convivemos com certa estabilidade financeira. Já não nos aflige a espiral inflacionária de dois dígitos ao mês, havendo chegado em 1989/1990 a cerca de noventa por cento. Surgiu outra instabilidade. Referimo-nos à normativa e, o que é pior, àquela introduzida mediante instrumental de acentuada excepcionalidade, como o quer a Constituição Federal, que é a medida provisória.

Prevista no campo da mesclagem das atividades de Poderes diversos — o Executivo e o Legislativo —, está jungida a requisitos rígidos: a relevância e a urgência do tema veiculado e a prazo de caducidade — trinta dias — sendo que, em se encontrando o Congresso em recesso, deve ser convocado para apreciação, em cinco dias, da medida provisória editada.

Essa providência somente é repetida na Lei Fundamental quanto ao estado de defesa, exceção ao dia-a-dia da vida dos brasileiros que, felizmente e ao contrário do que ocorre com a medida provisória, assim permanece. Esta é editada e reeditada sem peias, chegando-se, até mesmo, ao embaralhamento de matérias.

Ademais, não raro tem utilização provocadora de um maior desequilíbrio de forças, conflitando, assim, com os ares de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. À mercê da potencialização de interesses secundários do Estado — União, Estados propriamente ditos, Municípios, fundações públicas e autarquias — versam, costumeiramente, sobre tratamento privilegiado — e a expressão exata é essa — dispensado às entidades públicas.

Além disso, vem surgindo tendência espúria. Por meio de medidas provisórias — e, portanto, de instrumentos com força de lei de caráter precário e efêmero que acabam perpetuando-se no campo das relações jurídicas, sem que se conte com a manifestação dos representantes do povo — os Deputados Federais — e dos Estados — os Senadores — cerceia-se o ofício judicante, proibindo-se certos atos processuais sem uma razão plausível, ao menos socialmente aceitável.

O poder judicante pressupõe atividade que possa ser desenvolvida sem empecilhos. No exercício que lhe é pertinente, o órgão há de atuar com ampla liberdade, apenas submetendo-se à formação humanística e profissional daquele que o corporifica. Receamos, pelo andar das coisas e em tempo no qual se manuseia o instituto da medida provisória com a finalidade, até mesmo, de afastar jurisprudência da mais alta Corte do País, que dentro em pouco fiquem inviabilizadas ao cidadão comum, sob o ângulo da eficácia da prestação jurisdicional, demandas contra o Poder Público, tamanha é a construção normativa alicerçada em pseudo interesse coletivo.

Cabe àqueles compromissados com a paz social, com a segurança jurídica a ela inerente, vigília das mais cuidadosas, reafirmando, com verdadeira resistência republicana e democrática, a crença no Direito.

Sobressai o papel dos magistrados, insuplantáveis alquimistas dessa eletrizante ciência, cujo escopo derradeiro é a feitura da justiça.

Independentemente da falta de recursos, das limitações isoladas e momentâneas que lhes são impostas, da capa dos processos, da repercussão de certos atos processuais, hão de ser sempre os guardas imbatíveis da liberdade, cumprindo o dever de, em nome do Estado, dar a cada qual o que é seu. Assim o fazendo, honrarão o sacerdócio da toga.

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    é ministro do Supremo Tribunal Federal, presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do IMAE — Instituto Metropolitano de Altos Estudos das Faculdades Metropolitanas Unidas — FMU.

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