Sistema Postal

Artigo - Sem a nova Lei Postal não haverá concorrência

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26 de abril de 2000, 0h00

“Não há que se confundir no nosso Sistema Constitucional monopólio com serviço público. Este também leva a um regime monopolístico, mas não se cifra a isto. Há também, neste caso, um regime jurídico especial”(Celso Bastos, comentando o art. 177 da CF, “Comentários à Constituição do Brasil”, p. 165)

Em notícia publicada na revista Consultor Jurídico no último dia 19, o presidente do Sindicato Nacional das Empresas de Encomendas Expressas expõe suas preocupações em relação ao Projeto de Lei Geral do Sistema Nacional de Correios. Não poderia tecer considerações sobre os aspectos econômicos ou mercadológicos expostos pelo sindicalista, pois não é minha área de conhecimento. Mas é preciso registrar que tais opiniões não refletem unanimidade no meio postal – nem nacional nem internacional. No mesmo artigo, porém, são apresentados argumentos de que o projeto encaminhado pelo governo ao Congresso Nacional seria inconstitucional. E isso não é verdade.

Um dos ramos jurídicos mais complexos e de difícil operação é o direito econômico. A ordem econômica na Constituição é terreno árduo, pontuado por conceitos herméticos, de compreensão difícil. Até mesmo iniciados ilustres cometem pequenos equívocos ao interpretar tais normas. Se é assim para os juristas, pior ocorre com quem não conhece bem o Direito, mas se vê instado a emitir opiniões jurídicas. O resultado costuma ser terrível. Na verdade, o texto em tramitação no Congresso Nacional nada tem de inconstitucional. Muito pelo contrário.

Duas seriam as supostas incompatibilidades do texto com a Constituição. A primeira, que o projeto previria “o monopólio da atividade postal”, algo inconstitucional por não constar do rol de atividades monopolizadas pela União (art. 177 da CR). Depois, porque estaria a propor que a atividade postal seja subordinada à regulamentação estatal exercida por um órgão regulador específico, algo que contrariaria a Constituição.

O projeto não cria nem prevê um monopólio postal. Até porque tais serviços já são hoje monopólio da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Ao contrário, o projeto pretende acabar, num prazo entre cinco e dez anos, com tal monopólio, abrindo plenamente o setor à concorrência, que hoje inexiste. Prevê-se a continuidade desta situação de monopólio apenas para evitar pôr em risco uma atividade pública essencial: oferecer ao cidadão um serviço postal básico e remunerado por tarifas acessíveis à parcela mais pobre da população.

A confusão cometida pelo autor, ao tentar entrar no campo jurídico, decorre da não percepção de que a atual Constituição não trata o serviço postal como uma singela atividade privada, que todos os indivíduos podem explorar livremente. O art. 21, X, da Carta elege o serviço postal como um serviço público de competência da União. Isso já o faz passível de um regime jurídico específico, que pode, como mostra a lição transcrita acima, ensejar a exploração em monopólio.

A Constituição não obriga o monopólio postal. Mas ao definir tal serviço como um serviço público, permite que ele seja explorado em regime de exclusividade, mormente quando esta for condição essencial para a sua manutenção. Cumpre a lei, e o texto criticado nada mais é que um projeto de lei, definir a abrangência do serviço público constitucional e dizer como se dará sua exploração (se em monopólio ou em regime de competição). Somente o leigo pode invocar o art. 177 da Carta para analisar o regime de exploração do serviço postal.

O outro argumento de suposta inconstitucionalidade é ainda mais frágil. Fosse verdadeiro e seria inconstitucional toda a reformulação que o governo e o Congresso estão a realizar no Estado brasileiro deste 1995. As profundas reformas por que passaram os setores de energia, telecomunicações, vigilância sanitária, petróleo, saúde complementar, têm como traço comum o estabelecimento de uma forte regulação estatal, exercida por órgãos específicos (normalmente agências). Tal atividade estatal é expressamente prevista no art. 174 da Constituição Federal. Lá vemos que o Estado é agente normativo e regulador da atividade econômica. Ora, se este é o papel do poder público para qualquer atividade (do comércio à indústria, da agricultura aos serviços) tanto o mais deverá ser numa atividade tão essencial que o constituinte obrigou a União a manter.

A postura defendida pelo representante sindical aqui mencionado aponta para uma auto-regulação pelos próprios agentes econômicos que não encontra eco nem em nossa tradição jurídica nem no que hoje se verifica no âmbito da Comunidade Européia, e mesmo com o que ocorre nos Estados Unidos. Aliás, diga-se que o modelo de regulação indireta por agências, que ora surge na América Latina e na Europa, tem como fonte o próprio direito administrativo americano. De resto, basta passar os olhos pelo projeto para verificar que nele não se prevê qualquer “uper-poder”, e sim um rol claro de competências, todas absolutamente compatíveis com a moderna atividade regulatória.

Defender que o Estado brasileiro abdique de qualquer regulação sobre um segmento vital do setor de comunicações constituiria uma ousadia que, temos certeza, não conta com a concordância do jurista citado no artigo, meu dileto colega de Departamento na Universidade. Até mesmo para quem não é jurista fica patente a incompatibilidade entre a determinação constitucional para a União “manter o serviço postal” e a postulação de que o Estado abandone o serviço apenas ao livre jogo de mercado, arriscando a existência do serviço essencial e abrindo mão até mesmo de cumprir sua obrigação de agente normativo e regulador desta atividade.

De todo modo, é sempre importante o debate. Ele dá a oportunidade, por exemplo, de reiterar que o Projeto de Lei Geral do Sistema Nacional de Correios tem sido muito elogiado nos foros postais internacionais como um documento jurídico de vanguarda em âmbito mundial. E permite inclusive lembrar que, aprovado o projeto, restará superada a clandestinidade em que hoje atuam todos aqueles que tentam explorar a atividade postal e que, vez por outra, recebem por isso condenações judiciais, como demostra a pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Certamente o Congresso Nacional não se impressionará com tão frágeis argumentos e saberá dar ao Brasil uma Lei Postal consentânea com o “regime democrático e a virada do milênio” – que, aliás, só ocorrerá no final do ano vindouro.

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