Reforma para o Banco Mundial

Artigo: Uma reforma para o Banco Mundial

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18 de abril de 2000, 0h00

Em vários países da América Latina, face ao fenômeno conhecido por globalização, tem sido proposto um modelo de desenvolvimento baseado em grande parte no financiamento do capital externo. Não me cabe aqui analisar os acertos ou equívocos de tais propostas de desenvolvimento nacional, a que estão associados processos de diminuição do Estado na exata medida do aumento das instâncias de mercado, propagando-se a idéia de que o mercado será suficiente para gerir e disciplinar, com justiça, a vida em sociedade, o que certamente não é verdadeiro, sobretudo em países com índices de ainda grave desigualdade social.

Muitas vezes, a interpretação dada por um Judiciário independente aos postulados constitucionais e legais constitui estorvo aos interesses dos detentores dos capitais e à globalização econômica. Isto pode ser observado a partir da análise de fatos que concretamente estão ocorrendo no dia-a-dia de nossos países. Hoje, contudo, mais do que interpretar fatos, podemos ter acesso a propostas concretas de agências financeiras mundiais, que mais do que nunca demonstram o interesse específico, enfático e crescente no Judiciário dos países, digamos, periféricos.

Veja-se, por exemplo, o documento do Banco Mundial que tem o título O setor judiciário na América Latina e no Caribe – elementos para reforma. Trata-se do Documento Técnico 319 daquela agência financeira internacional. Tal documento, cuja primeira edição já data de meados de 1996, produzido nos Estados Unidos, com suporte técnico de Malcolm D. Rowat e Sri-Ram Aiyer, e com pesquisa de Manning Cabrol e Bryant Garth, prevê claramente a necessidade de reformas de fundo nos Poderes Judiciários da América Latina e do Caribe.

Propõe, então, um projeto de reforma global, com adaptações às condições específicas de cada país, mas com a mesma natureza e com a mesma lógica: quebrar a natureza monopolística do Judiciário, melhor garantir o direito de propriedade e propiciar o desenvolvimento econômico e do setor privado, fragilizando a expressão institucional do Poder Judiciário e tornando-o menos operante nas garantias de direitos e liberdades, desde que estejam em jogo as necessidades do capital, sobretudo do capital internacional.

O desenvolvimento econômico é, por certo, finalidade a ser obtida pelos governos. Mas não é, decididamente, tarefa do Judiciário. O Judiciário não produz e não deve produzir desenvolvimento econômico. O Judiciário produz e deve produzir justiça.

Nenhum dos pontos contidos no conjunto de propostas apresentadas pelo Banco Mundial toca verdadeiramente as causas do mau funcionamento da Justiça em nossos países, entre as quais estão, reconhecidamente, a hipertrofia legislativa, a violação reiterada, pelo Poder Público, de normas legais e da própria Constituição, para não falar, no caso brasileiro, da dolosa e reiterada interposição, pela administração pública, de recursos judiciais em milhares de casos que sabe de antemão que será malsucedida.

De acordo com o referido documento, “muitos países da América Latina e do Caribe já iniciaram a reforma do Judiciário, aumentando a demanda de assistência e assessoria ao Banco Mundial”.

Todavia, ressalta, “os elementos da reforma do Judiciário e algumas prioridades preliminares precisam ser formuladas”. Quem as está formulando? Os povos latino-americanos e caribenhos? Seus juízes, seus operadores do Direito? Não. Quem está formulando tais propostas é o Banco Mundial.

No caso da reforma do Poder Judiciário brasileiro, coincidentemente as linhas mestras dos projetos apresentados no Parlamento Nacional com o beneplácito do governo federal são em tudo similares às propostas do Banco Mundial, bastando-se, para chegar a tal conclusão, a mera leitura do Documento Técnico 319 e dos projetos reformadores.

Não somente o novo perfil genérico ou, digamos, ideológico do Poder que emergirá da reforma pretendida é a cara da proposta do Banco Mundial. Os mais importantes institutos propostos na reforma constitucional brasileira são previstos, de forma específica ou genérica, no documento da agência financeira referida: súmulas com efeito vinculante, medidas avocatórias, incidente per saltum de inconstitucionalidade, controle externo do Poder, Escola Oficial de Magistratura com staff centralizado, juizados arbitrais, concentração de poder nas cúpulas do Judiciário e subtração de autonomia dos juízes em geral.

Enfim, um Poder Judiciário verticalizado, com acentuação da disciplina interna e afrouxamento da possibilidade de disciplinamento difuso de condutas, sobretudo no que diz respeito ao controle da legalidade e da constitucionalidade de leis e atos administrativos dos demais Poderes, estas elaboradas crescentemente no sentido de favorecer as políticas econômicas internacionais.

Aí está, com efeito, um processo em pleno desenvolvimento tendente a suprimir ou pelo menos a esmaecer, tanto quanto possível, a independência dos juízes na América Latina e no Caribe, que só se constitui em independência porque está fundada na possibilidade de dizer-se o direito com base unicamente no sistema legal e na consciência dos julgadores.

Não, por certo, nos interesses parcializados de um setor da sociedade internacional que, preocupado com a maior possibilidade de lucro em uma sociedade crescentemente globalizada (do ponto de vista econômico), por certo não tem qualquer compromisso com a melhoria das condições de vida e, para tanto, com a equânime distribuição de justiça para os nossos povos. Isto porque a globalização não visa a distribuir mais dignidade, mais direitos, mais justiça. Consiste ela em fenômeno puramente econômico. Suas regras derivam da busca do lucro. Não existe outro interesse preponderante em tal processo.

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