Aspectos Jurídicos da Reprodução Assistida (RA)
30 de setembro de 1999, 0h00
“O homem tornou-se o primeiro produto da evolução capaz de dominar a própria evolução” F. Jacob
Como se vê rotineiramente nos meios de comunicação, as técnicas científicas de Reprodução Assistida tem gerado não só bebês, mas, também, polêmicas acerca dos limites (ou da falta deles) quanto a sua utilização.
No entanto, ainda que a medicina evolua a passos largos, os Tribunais brasileiros ainda não se manifestaram sobre casos concretos envolvendo questões decorrentes destas técnicas.
A jurisprudência, a nível mundial, é paupérrima e a doutrina começa, apenas, a engatinhar.
Não é pacífica a aceitação destas técnicas. O assunto é polêmico e desperta as mais diversas reações na opinião pública por motivos de ordem religiosa, moral, ética e legal.
Mas se é verdade que estas técnicas não são mais novidade para a medicina atual, então é indispensável discuta-las, questiona-las, despertar a consciência de todos para a necessidade de disciplina-las sob o prisma da legalidade, moralidade e ética.
Este, pois, o objetivo de nosso trabalho.
Inseminação Artificial
As questões que surgem no âmbito jurídico a respeito desta técnica situam-se, basicamente, no questionamento em relação à origem do sêmen empregado, o momento da sua utilização e a necessidade de consentimento de ambos os cônjuges.
A espécie homóloga (aquela na qual o sêmen utilizado pertence ao marido ou companheiro da mulher receptora) é a que apresenta menor índice de contestações, visto que não altera as estruturas jurídicas existentes, na medida em que a paternidade biológica coincide com a legal.
Contudo, a questão polêmica desta espécie diz respeito ao congelamento de sêmen e à possibilidade de utilização do mesmo sem o consentimento do cônjuge ou companheiro ou, ainda, após a sua morte.
Consentida a inseminação e realizada contemporaneamente à colheita do material genético, a reprodução dar-se-á de acordo com os parâmetros legais, pois o nascimento ocorrerá dentro dos limites abrangidos pela presunção do artigo 338 do Código Civil Brasileiro, e haverá correspondência entre a paternidade jurídica e a biológica.
Isto não ocorre, todavia, quando o cônjuge não concede a autorização ou quando deixa o material genético depositado em um banco de sêmen para futura inseminação, vindo, posteriormente, a falecer.
Apesar da impossibilidade de contestação da paternidade em função do exame do DNA (ácido desoxirribonucléico – moléculas que contêm o patrimônio genético de cada ser), surge o questionamento sobre a necessidade de autorização expressa e suas conseqüências no âmbito do Direito das Sucessões, principalmente no que tange ao patrimônio do doador.
Como em qualquer contrato de depósito, o material guardado nos bancos de sêmen continua sendo uma “propriedade” daquele que o produziu, podendo este até mesmo requerer sua inutilização a qualquer tempo. Este requerimento eqüivaleria a uma revogação do ato praticado e da ordem de depósito.
Inobstante tais fatos, sua utilização em processos de inseminação dependeria, exclusivamente, de autorização prévia e expressa a fim de que o direito intrínseco de cada indivíduo (de decidir sobre o ato de ser pai ou não) não seja ferido.
Neste sentido determinou o Conselho Federal de Medicina (Resolução nº 1.358/92) que “o consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. (…) O documento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil” (grifo nosso).
Determinou o referido Conselho, ainda, que “estando (a mulher) casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou companheiro, após processo semelhante de consentimento informado” (grifo nosso).
O Conselho Federal de Medicina, embora tenha deixado à margem os aspectos jurídicos da questão, buscou harmonizar o uso das técnicas de RA com os direitos civis dos cidadãos, além de regulamentar princípios de ética médica.
Quanto à inseminação artificial heteróloga (aquela na qual se utiliza material genético pertencente a terceiro doador) pode-se chegar a outras conseqüências, visto que a hereditariedade jurídica diverge da biológica, fazendo com que as normas de presunção de paternidade preceituadas no Código Civil tornem-se obsoletas.
Algumas legislações, v.g. a da Líbia, condenam a utilização desta técnica em virtude das implicações causadas nas relações entre os cônjuges, entre pais e filhos, entre doador e cônjuges.
Nos países nos quais sua prática não é condenada, há a exigência de consentimento expresso do cônjuge que assumirá a paternidade jurídica, a fim de que se mantenha o equilíbrio e a estabilidade familiar.
As legislações mais modernas impedem que o cônjuge que consentiu a inseminação de sua mulher com o sêmen de terceiro, obtenha provimento negativo da investigação de paternidade, independentemente dos lapsos temporais divergentes da presunção legalmente instituída. Isto significa que deve prevalecer a segurança do “status” de filho, que não pode ser perturbado por modificações posteriores no ânimo dos cônjuges.
Em alguns países como o Canadá, Grécia, Holanda e Portugal é vedado ao marido que consentiu a inseminação, utilizar-se da investigação judicial de paternidade. No entanto, nos três últimos países exige-se que o nascimento se dê dentro dos limites temporais estabelecidos pela presunção legal.
Nas hipóteses não autorizadas, a legislação dá prazo decadencial (variável em cada país) para a contestação da paternidade. Trata-se, portanto, de preservação da situação jurídica de filho que não pode, de um momento para o outro, ver-se completamente destituído de seu “status familiae”.
Com relação à pessoa do doador, exigem as legislações existentes, providências de ordem sanitária a fim de que se obstaculize inseminações incompatíveis (p.ex., tipo sangüíneo) e se incentive a proximidade entre as características do doador e do casal receptor. Além disto, há a necessidade de manutenção do sigilo sobre a identidade do doador que, se casado, deve apresentar, também, o consentimento da esposa.
É sobre este ponto que residem os maiores questionamentos, pois em se julgando oportuno vedar o uso da ação de investigação de paternidade ao pai jurídico que consentiu na inseminação, não previu-se se tal direito se estenderia ou não ao doador em face do filho.
Como o material genético depositado nos bancos de sêmen continua sendo propriedade daquele que o produziu, então, existe o direito intrínseco do doador de, tempos mais tarde, exigir informações sobre a utilização do seu sêmen. A partir disto, poderia o pai biológico utilizar-se da ação investigatória de paternidade, requerendo para si direitos que foram concedidos ao pai jurídico.
Quanto ao filho, reserva-se-lhe, como direito inerente à sua personalidade, a possibilidade de conhecer a identidade do doador. Isto se dá, em primeiro lugar, por se tratar o direito à identidade de um direito personalíssimo, e, portanto, insuscetível de obstaculização.
Sobre esta questão, o CFM decidiu que o sigilo é obrigatório e que as informações sobre pacientes e doadores pertencem, exclusivamente, às clínicas ou centros que mantêm serviços de RA, in verbis:
“IV – Doação de gametas ou pré-embriões.
1. ………………………………..
2. Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice versa (grifo nosso).
3. Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador” (grifo nosso).
Em contrapartida, a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), estabelece o direito inarredável dos filhos e também dos pais de pleitearem o reconhecimento deste status:
“Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação” (grifo nosso).
“Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça” (grifo nosso).
Apesar de indiscutível a prevalência da Lei Federal sobre a resolução do CFM teremos, nos casos concretos, a necessidade de acionarmos o judiciário a fim de que sejam solucionadas questões oriundas desta colisão, por absoluta falta de normas regulamentadoras específicas.
Ainda na esteira das polêmicas, importante salientar que os filhos devem ter acesso aos dados biológicos do doador para a descoberta de possível impedimento matrimonial, pois da inexistência deste processo poderá decorrer relações incestuosas. Sendo totalmente anônima a paternidade, nada impede que irmãos (filhos nascidos de material pertencente ao mesmo doador) ou mesmo o próprio doador e uma filha contraiam casamento por absoluta ignorância com relação as suas verdadeiras origens.
É claro que a ciência já conhece as conseqüências genéticas que poderão se manifestar nos filhos deste matrimônio dito incestuoso, mas ainda que assim não fosse, existe a proibição legal preceituada no art. 183, I e IV do CCB, que torna o casamento nulo.
Dizem as instituições que se profissionalizaram no fornecimento de sêmen, que têm a cautela de expedir o produto para regiões distantes umas das outras, mas isto apenas reduz o risco, pois a mobilidade do homem no mundo de hoje é muito grande e, portanto, pode ocorrer de que se perca o controle sobre a utilização do material genético.
Fecundação “In Vitro”
Quanto à utilização deste método no âmbito jurídico também surgem questões a solucionar com referência, principalmente, à determinação da paternidade e da maternidade.
Com relação à paternidade os problemas suscitados são, basicamente, semelhantes aos examinados na inseminação artificial, pois o embrião, à semelhança do sêmen, também pode ser congelado para posterior utilização (pós-morte, p.e.) ou resultado de uma fecundação com sêmen de doador.
No concernente à determinação da maternidade, é importante salientar que a gestação pode se dar através da doação de um óvulo. Nesta hipótese, teríamos uma mãe biológica (doadora) e uma mãe jurídica, fazendo com que haja quebra do milenar postulado de que “mater semper certa est” (a maternidade é inequívoca).
Tradicionalmente, ou segundo normas vigentes, a verdadeira mãe é aquela que dá a luz. O Novo Dicionário Aurélio assim conceitua: “Mãe: qualquer mulher ou fêmea que deu à luz a um ou mais filhos”.
Partindo-se deste conceito, a mulher que gerou um filho que é produto de material genético de outra, tem o direito de registrá-lo, validamente, como seu.
Quanto à doadora vigeriam as mesmas regras de não identificação e de impedimento de promoção de ação investigatória de maternidade, que examinamos relativamente ao doador de sêmen, na fecundação artificial heteróloga.
Tal hipótese, no entanto, não pode ser acolhida, pois não revela um caráter de sólida verdade.
A maternidade e mesmo a paternidade passaram a fundar-se em uma nova explicação: o ato de vontade.
Segundo Arnaldo Rizzardo, Juiz do Tribunal de Alçada do RS, “o vínculo de legitimidade do filho repousa no consentimento expresso dos cônjuges, … repousa em razões de ordem espiritual”.
Apesar de não ser abrangente, esta é a nova diretriz que o direito tomou frente a este aspecto da Reprodução Assistida, pois a filiação não comporta compartilhamento entre mais de um pai ou mais de uma mãe.
Para ilustrar a possibilidade de outros desdobramentos jurídicos, nos referimos aos mais intrigantes casos dos quais se teve notícias, ou seja, do casal chileno Mário e Elsa Rios, da viúva Corinne Parpalaix e de uma italiana anônima de 62 anos.
Em 1978, quando a filha de 10 anos do casal chileno faleceu, eles tentaram ter outros filhos. Não tiveram êxito.
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