Corrupção no Mato Grosso

Traficantes ganham proteção para ajudar investigações no MT

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27 de setembro de 1999, 0h00

Dois traficantes da quadrilha de Maria Luíza Almirão dos Santos, a Branca, deverão ser transferidos de uma cadeia de Mato Grosso para um presídio na região da fronteira com a Bolívia. Segundo uma fonte da Polícia Federal (PF), embora o superintendente Cláudio Luiz da Rosa não confirme, os detentos, cujos nomes estão sendo mantidos em sigilo, são considerados verdadeiros “arquivos vivos” sobre vendas de sentenças pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso, que se encontra sob investigação do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A PF estaria com pressa nessa transferência e já solicitou ao juiz responsável para que a remoção seja feita o mais rápido possível. Os traficantes estão correndo risco de vida. Os dois detentos deverão ser ouvidos no inquérito que investiga a venda de sentenças, que fazia parte das denúncias do juiz Leopoldino Marques do Amaral, encontrado morto no último dia sete, no Paraguai.

Na semana passada, dois integrantes da quadrilha da traficante Branca foram executados numa das celas da Penitenciária Regional de Mata Grande, em Rondonópolis. Os irmãos Claudinei e Deusneth Rodrigues Dutra foram massacrados por cerca de 50 presos durante o banho de sol da última quarta-feira. Oficialmente, os assassinatos ocorreram em conseqüência de “disputa pelo poder entre os presos”.

Deusneth estava com o alvará de soltura pronto e o Claudinei deveria

sair em breve. Os dois saberiam muito sobre a comercialização de sentenças ligadas ao narcotráfico. Segundo a mesma fonte da PF, o duplo assassinato teria uma conexão com os assassinatos do ex-policial civil Luiz Carlos de Siqueira e o traficante Dom Lúcio Salorram, em agosto deste ano. Há suspeitas de que as quatro execuções foram queima de arquivo a mando do narcotráfico.

No entanto, fontes da PF admitem que o ponto em comum entre os últimos quatros assassinatos é o tráfico internacional de drogas, tendo ainda uma possível ligação do policial Luiz Siqueira com magistrados mato-grossenses acusados por Amaral no envolvimento com o narcotráfico. De acordo com as investigações, os assassinatos de Siqueira e Dom Lúcio aconteceram de forma idênticas.

Embora o ex-policial Siqueira não tivesse ligação com o tráfico de drogas, a PF entende que por ele ter sido amigo de Dom Lúcio poderia estar envolvido com algumas das execuções a pedido do traficante.

Quatro dia antes de ser encontrado morto, o juiz Amaral viajou para Ponta Porã, na divisa com o Paraguai para se encontrar com o traficante Marcos Vítor Guerra que forneceria uma vasta documentação comprovando a venda de sentenças de traficantes, possivelmente da quadrilha da Branca.

Sob a direção de Ussiel Tavares, a seccional mato-grossense da Ordem dos Advogados do Brasil, foi a primeira a se mobilizar pelo esclarecimento das denúncias feitas pelo juiz Leopoldino Marques do Amaral contra desembargadores do Tribunal de Justiça, e a primeira a ser convocada pela família do juiz, quando ocorreu seu assassinato.

No decorrer das investigações sobre uma das denúncias – a venda de sentenças – a OAB se viu obrigada a cortar a própria carne para investigar sua categoria, uma vez que, se há “juiz corrupto, há também o advogado corruptor”. Esses e outros assuntos você confere abaixo com a entrevista concedida por Ussiel Tavares ao Diário de Cuiabá.

Diário – A OAB foi a primeira entidade a se mobilizar pelo esclarecimento do assassinato do juiz Leopoldino. Como a entidade avalia esse processo desde o surgimento da notícia do assassinato até hoje?

Ussiel – A OAB foi chamada desde o primeiro momento. Inclusive, nós nos posicionamos desde quando o juiz Leopoldino tornou públicas as denúncias contra o Tribunal de Justiça. Nós nos posicionamos, pedindo que aquelas acusações fossem apuradas. Num segundo momento surgiram aquelas denúncias contra o juiz. Ainda que fossem denúncias graves, nós suspeitávamos naquela época que as denúncias contra ele deveriam ser apuradas, mas que a existência delas não descredenciava as denúncias que ele havia feito. A sociedade sentia a necessidade de ver esclarecidas aquelas denúncias, ainda que algumas tenham sido muito genéricas, ainda que na própria CPI – e eu tive a oportunidade de acompanhar – algumas não tinham provas documentais. Mas, pela relevância que o caso tomou em nível nacional, acho que é obrigação do Tribunal der Justiça esclarecer tópico por tópico, para que a sociedade volte a acredita no Poder Judiciário, e para a tranqüilidade de todos. Não se admite que no Estado Democrático de Direito a ausência de um dos poderes. E o descrédito hoje do judiciário perante a sociedade faz com essa situação seja caracterizada, ou seja, a ausência de um poder no regime democrático.

Diário – A OAB levantou um questionamento sobre a correição que está sendo feita na vara onde o juiz Leopoldino atuava. O que vocês estão questionando?


Ussiel – Toda correição, feita em qualquer cartório e em qualquer circunstâncias, a OAB é convocada para participar. Especificamente neste caso nós tivemos a infelicidade de constatar uma falha administrativa, já que a correição começou no dia 18 de agosto, foi protocolado um documento aqui no mesmo dia, e infelizmente, por falha administrativa, essa comunicação não chegou às nossas mãos. Quero dizer que assumo publicamente essa falha administrativa, mas isso em nada altera o posicionamento anterior da OAB, no sentido de que a correição estava sendo presidida por um juiz que estava sendo acusado pelo juiz Leopoldino Marques do Amaral, e acreditamos que ele não teria a isenção necessária para conduzir esses trabalhos. Ainda que nenhuma acusação tenha sido provada contra ele, mas é necessário que para a própria transparência do Poder, que esse trabalho fosse conduzido por uma pessoa com maior isenção. Não se acredita que essa comissão seja capaz de introduzir qualquer tipo de provas que não existissem nos autos, não se considera essa possibilidade. Os outros três integrantes dessa comissão – o doutor Carlos Alberto Alves da Rocha, doutra Clarice e o doutro Dirceu dos Santos – nenhuma acusação pesa sobre eles, são profissionais respeitados, e a OAB em momento algum questionou a indicação destes três juizes. Questionamos sim a indicação do juiz Manoel Ornelas, porque pesava denúncia contra ele. Agora, esse posicionamento da OAB não visa atacar ninguém, não se pretende com isso fazer qualquer juízo precipitado do juiz Manoel Ornelas. Ele terá seu direito a resposta, assim como cada uma das denúncias deverão ser esclarecidas. Mas, naquela momento não seria indicado que os trabalhos fossem conduzidos pelo juiz Manoel Ornelas.

Diário – Geralmente as pessoas ficam inibidas para tocar em assuntos que possam macular a imagem de quem já morreu. Não estaria havendo essa sacralização do juiz Leopoldino Marques do Amaral, evitando-se dessa forma tocar em assuntos que possam manchar a memória dele?

Ussiel – Muito oportuna essa pergunta, mesmo porque eu já me manifestei anteriormente de que as denúncias contra o juiz Leopoldino Marques do Amaral deveriam ser apuradas até mesmo para se saber a extensão delas. Já que se fala que ele desviou R$ 530 mil, R$ 580 mil de dinheiro depositado em contas judiciais, eu acho que é necessário avaliar a extensão desse dano, se é que ele existe, até mesmo para o Estado ressarcir as pessoas que tenham sido lesadas. Até hoje só tem uma pessoa lesada, que eu tenho conhecimento, que é a senhora Maria Gorethe, que inclusive nos procurou para dizer que havia sido lesada. Em momento algum nós pretendemos afastar as denúncias contra o juiz Leopoldino. É necessário que elas sejam apuradas.

Diário – O desembargador Ernany Vieira teceu algumas críticas em relação ao posicionamento que a OAB tem adota neste caso, sobretudo em pedir a quebra de sigilo de desembargadores. O senhor admite que haja algum exagero da parte da OAB neste caso?

Ussiel – Acho que estamos vivendo um momento ímpar, onde todas as pessoas envolvidas com esse processo estão de uma forma ou de outra nervosas. Logicamente que isso incomoda a todo mundo. Para nós, enquanto advogados, é péssima essa imagem que hoje o judiciário detém. O desembargador Ernany deve estar muito envolvido nesta questão e se sentindo prejudicado pelas denúncias que existem contra ele, mas o que se pretende com o disque denúncia, com a quebra do sigilo bancários, é justamente a transparência que se espera das autoridades públicas. Com relação ao disque denúncia, por exemplo, até agora nós não recebemos nenhuma denúncia consistente. A maioria se resume a pessoas que perderam ações e ficaram inconformadas com o resultado da ação. A OAB não está atacando nem acusando ninguém, ela quer que essa história seja passada a limpo. Quanto a quebra do sigilo do bancário, os próprios desembargadores compareceram perante o presidente da CPI do Judiciário, no mesmo dia em que eu estava presente, pedindo para ser investigados. Um gesto muito importante para o Tribunal porque demonstrou a vontade de que essa história seja esclarecida. E se quer ser investigado, acho que um bom começo seria abrir as contas bancárias, o sigilo fiscal, para que definitivamente seja afastada a hipótese de envolvimento de qualquer dos desembargadores acusados.

Diário – Nem o desembargador Rubens de Oliveira, que é o seu antecessor aqui na OAB, topou esse desafio. Como vocês avaliam esse posicionamento – não dá para contar nem com ele no Tribunal?

Ussiel – Eu e o desembargador Rubens mantemos até hoje um estreito relacionamento de amizade. Agora, como ex-dirigente da Ordem, e ao fim que se propõe o Quinto Constitucional – que é justamente ter dentro do Tribunal um interlocutor da sociedade civil organizada, que é esse representante – na prática, o que ocorre infelizmente, é que próprio indicado pela Ordem acaba virando desembargador, na essência da palavra. Admiro esse posicionamento do desembargador Rubens Oliveira, até porque não existe nenhuma acusação contra ele. Ele veio a público, numa atitude corajosa de defender o Tribunal, mas acho que ele acabou se expondo desnecessariamente, porque contra ele não pesa qualquer denúncia. Acho que as pessoas que deveriam responder pelo Tribunal são exatamente aquelas que têm denúncias contra si. Entendo a posição. Por sua própria habilidade, o desembargador Rubens de Oliveira entendeu que ele teria maior isenção para tratar do assunto. Mas, infelizmente ele foi defender uma situação muito difícil de ser defendida, uma causa muito difícil de ser defendida. Mas, entende-se a posição dele, porque hoje ele é um desembargador, ele não é mais presidente da Ordem.


Diário – Uma das denúncias mais graves entre as feitas pelo juiz Leopoldino era a venda de sentenças. Se há venda de sentenças, naturalmente há no mínimo o assentimento do advogado. Foi por isso que a OAB abriu procedimento para investigar a participação de advogados nestas denúncias?

Ussiel – Com certeza. Se houver juiz corrupto, desembargador corrupto, é porque há advogado que se propõe a esse tipo de trabalho. Então, esse é o nosso papel enquanto instituição voltada ao respeito pela ética. Acredito que todos os advogados envolvidos devem ser punidos, se possível até eliminados dos quadros da Ordem.

Diário – Os nomes o senhor não pode revelar, mas quantos advogados estão sendo investigados pela OAB?

Ussiel – Num primeiro momento, surgiram dois nomes que a Ordem, de ofício, determinou a instauração de processo disciplinar, mas no decorrer dessas investigações e até mesmo do trabalho da CPI e da Polícia Federal, que vem investigando alguma coisa, se aparecerem outros nomes, imediatamente serão abertos processos disciplinares. Porque não se admite viver nessa insegurança de existir juizes corruptos porque há advogados corruptores. É bom que se esclareça definitivamente para que não fique nenhuma dúvida na sociedade sobre essa mancha que ficou sobre o Tribunal de Justiça.

Diário – Além de ser presidente da OAB é também advogado militante. O senhor não teme retaliações do Tribunal de Justiça por causa dos posicionamentos que está tomando neste momento ao pedir investigação?

Ussiel – Olha, estou cumprindo minha função institucional. Se tivesse medo de alguma coisa não assumiria a presidência da Ordem. Lógico que a grande maioria – eu diria que até que se prove o contrário, todos os desembargadores são pessoas íntegras, honestas – e não tenho motivo para sofrer retaliação, porque aqueles a quem estou fazendo acusação, se servir a carapuça, deverá ser afastado do Tribunal. Então não tenho porque temer retaliação.

Diário – A OAB e a CDL realizaram uma manifestação pedindo justiça no caso, e a Assembléia criou uma CPI do Narcotráfico, que tem certa ligação com o caso. O senhor avalia que a sociedade está dando uma reposta à altura da necessidade?

Ussiel – O clamor social é muito grande. Esse assunto é conversado é qualquer esquina. Sobre a morte do doutor Leopoldino – se há corrupção no Tribunal de Justiça ou não – houve uma manifestação pública. Acho que foi bastante representativa, pelo número de entidades que compareceu. Todos se manifestaram, e o sentimento unânime é a necessidade de apuração das denúncias feitas contra o Tribunal de Justiça e também contra o juiz Leopoldino, além das circunstâncias da sua morte. Há natural distanciamento, até dos advogados – alguns se distanciaram do processo, por temer justamente aquilo a que nos referimos anteriormente, que é a questão da retaliação. Mas entendo que essas são pessoas descompromissadas com o Direito, descompromissadas com o próprio estatuto da OAB. Quando você ingressa nos quadros da Ordem você presta um compromisso solene, prometendo exercer a advocacia com dignidade, com respeito aos direitos humanos, observando a cidadania, pugnando pela rápida administração da justiça, das instituições. Então, um advogado que está tomando esta postura, está se distanciando dessa discussão, desonrando um compromisso que ele assumiu quando ingressou nesta Casa. Mas, infelizmente, existem alguns profissionais assim. Acredito, no entanto, que o sentimento da maioria dos advogados neste momento é passar este Poder a limpo. Todos esses acontecimentos vêm ao encontro de uma antiga reivindicação da Ordem, que é a necessidade da reforma do Poder Judiciário. Cito até uma frase do juiz Leopoldino Amaral, que num evento público dizia que o poder Judiciário não precisa de reforma, ele precisa ser demolido. O controle externo da magistratura é uma coisa muito importante.

Fonte: Diário de Cuiabá

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