A opinião da Justiça

Leia entrevista exclusiva com o presidente do TRF da 4ª Região

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14 de setembro de 1999, 0h00

O presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Fábio Bittencourt da Rosa, assim como o presidente da OAB-SP, Approbato Machado, defende a extensão dos cursos de Direito. Para o juiz, antes de ingressar na carreira escolhida – magistratura, advocacia ou ministério público – o bacharel deveria passar por uma espécie de período de experiência, comprovando os conhecimentos adquiridos na lide diária com a Justiça.

Bittencourt é a favor da “quarentena” proposta no relatório da reforma do Judiciário pela deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP). Ele afirma que, depois de deixar o cargo, o juiz, desembargador ou ministro, deveria ficar até mais de dois anos distante da advocacia.

Na entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, o juiz se mostra contrário à criação das súmulas vinculantes e fala sobre a polêmica questão do valor das indenizações devidas pela União em razão da desapropriação de terras.

Veja a entrevista concedida pelo presidente do TRF da 4ª Região

Consultor Jurídico – O presidente da OAB-SP, Rubens Approbato Machado, defende que o bacharel, antes de entrar na carreira (magistratura, advocacia, ministério público) faça mais três anos de curso, para especialização. O que o sr. pensa a respeito?

Fábio Bittencourt da Rosa – Acho que seria o ideal. Todo juiz deveria ter experiência na advocacia. No entanto, para que isso ocorra, seria preciso mudar a Constituição, pois esta não permite que se faça qualquer diferença no acesso ao cargo. Em segundo lugar, não adianta colocar na lei que tenha tantos anos de formado, porque se o sujeito for funcionário público de uma determinada área, com curso superior, ele passará a ter esta condição de tempo. Então, isto não adianta. Ele precisaria ter tempo de prova do exercício da advocacia, ministério público, ou algo assim. É preciso que o juiz tenha se calejado na advocacia, para saber como deve agir na sua função. Portanto, sou totalmente a favor.

CJ – O que o sr. acha da idéia da relatora da Reforma do Judiciário, Zulaiê Cobra (PSDB-SP), de estabelecer quarentena para juízes depois que se afastam dos tribunais, antes de passarem a advogar?

Bittencourt – Sou totalmente a favor, também. Acho que deveria ser um período bem maior que dois anos, que é o tempo que se imagina. Os desembargadores, juízes de tribunais, ministros acabam tendo um âmbito de influência muito grande e, mercê deste poder que têm, conseguem transitar por determinados setores acumulando mais poder. E este poder é que vai lhes favorecer, posteriormente, em relação à concorrência no meio advocatício.

CJ – O aspecto mais pernicioso seria uma espécie de tráfico de influência?

Bittencourt – Eu não diria tanto. Falo mais no sentido do sujeito que se prevalece do nome que criou com base no exercício do serviço público. Ele não deve se aproveitar disso.

CJ – A súmula vinculante, pela sua ótica, deve ser irrestrita para qualquer tema?

Bittencourt – Em primeiro lugar, sou contra a súmula vinculante, porque não adianta nada, não resolve nada. A súmula vinculante não tem o mínimo sentido, pois não vai conseguir diminuir o número de processos no Judiciário. No entanto, isto é uma história longa, que não cabe, agora, explicar.

De qualquer forma, a súmula vinculante vai se deparar com problemas que dizem muito respeito ao sentimento popular, direito de família, direito penal, direito obrigacional, demandas que têm muito a ver com determinadas regiões do País, que não se prestam à súmula…

A súmula vinculante do Supremo teria maior sentido nas ações de direito público. O que abarrota os tribunais, hoje, é o direito público, especialmente as matérias que passam pela Justiça Federal. Vamos a um comparativo: enquanto um juiz do Tribunal Regional Federal do RS, sediado em Porto Alegre, tem, em média, três mil processos, um desembargador (estadual) tem 500/600 processos; alguns até 100, ou menos… Então, o grande número de processos é oriundo da Justiça Federal, onde se trata de matéria de direito público, e aí, sim, realmente, se compatibiliza com súmula.

CJ – O que lhe parece a idéia de indenizar pelo preço atual de mercado desapropriações feitas há décadas, segundo reza projeto de lei do deputado Celso Giglio (PTB-SP)?

Bittencourt – Bem, o assunto é delicado porque envolve problema político e jurídico. Do ponto de vista jurídico, eu diria assim: se a União, através de suas autarquias – no caso, o Incra – não pagou no devido tempo, deverá pagar com os acréscimos decorrentes da lei. Outro raciocínio provocativo: – ah, não!, não se deve pagar a desapropriação porque está muito cara, mas se deve pagar outro tipo de indenização, então, numa ação pessoal, num acidente de trânsito? O indexador vai ser igual. A diferença é a seguinte: numa determinada lide, onde vai se aplicar o mesmo fator de atualização, esta lide tem uma grandeza pequena. Agora, o que nós temos são desapropriações de fazendas imensas. Nós temos uma desapropriação que corre nos foros de Chapecó e Cascavel, porque se trata de uma área que abrange de Santa Catarina e Paraná. Hoje, existem cidades dentro desta área; uma coisa fantástica a extensão desta fazenda. Realmente, é um valor imenso em questão. Agora, existe um problema político, sem dúvida nenhuma. É que os indexadores aplicados a estas áreas revelam que o valor está muito maior do que o atual.


CJ – Seria um problema de cálculo? Vícios?

Bittencourt – Nada disso. O problema é que o governo, com a sua política monetária, nos inúmeros planos fracassados que implantou neste País, sempre manipulou indexadores de inflação, expurgando a inflação real. E o Judiciário não se dobrou a esta política absurda do governo, que quer impor perdas às pessoas. Quer dizer: a inflação foi 40%? Não, por uma ginástica mental do monetarista, ela passa a ser 26%. O Judiciário não aceita isso e manda pagar a inflação real, e não a que o governo ‘maquiou’. Então, aplica-se estes indexadores a estas indenizações antigas e, aí, resultam em valores altos. Este é um problema sério. Agora, nós temos, também, nesta questão da desapropriação, o problema de áreas imensas em faixa de fronteira. E muitas terras dentro de área pública. Portanto, não deveriam ser indenizadas.

CJ – O mesmo projeto sugere que se possa interpor ações rescisórias a qualquer tempo. O que o sr. pensa disso? Indo além: o que lhe parece o uso de rescisórias apenas para corrigir os cálculos dos valores indenizatórios?

Bittencourt – Eu não sei o que o deputado entende por corrigir o cálculo. Se for erro material, não é necessária ação rescisória, pois o juiz pode reconhecer isto a qualquer momento. Agora, se a questão é discutir critérios de cálculo, então ele quer criar, nesta hipótese específica, uma forma de não existir mais coisa julgada. Quer dizer: se 50 anos depois for possível entrar com ações rescisórias, não existirá mais coisa julgada.

CJ – O poder público alega que não tem como pagar as indenizações que deve. Em face dessa alegada impossibilidade e do direito dos desapropriados, como solucionar o problema? Um parecer da Fazenda nacional admite pagamento dos valores devidos em dinheiro, através dos Títulos da Dívida Agrária (TDAs). Esta solução lhe parece factível?

Bittencourt – Olha, esta questão do poder público não pagar as indenizações, na minha opinião, é um problema puramente político. Recentemente, os jornais noticiaram que o Proer (programa de ajuda aos bancos) deve R$ 22 bilhões ao governo. E o governo não cobra do Proer, dos bancos, que têm os maiores lucros do sistema econômico brasileiro. Então, é realmente uma questão política… Estes R$ 22 bilhões do Proer pagariam todas as desapropriações que o Incra deve e ainda sobraria dinheiro. Portanto, é uma opção do governo prestigiar ou não uma decisão judicial. Hoje, o Poder Judiciário está sofrendo inúmeras restrições, e esta questão dos precatórios é apenas mais uma das formas de aviltar a Justiça, fazendo com que suas decisões não tenha eficácia. Isto consolida a idéia central da preocupação do governo, que é com o lucro.

CJ – Qual o saldo da chamada CPI do Judiciário?

Bittencourt – A CPI do Judiciário, na verdade, foi erro. O Judiciário é um poder e, portanto, não pode ser investigado. A CPI é um inquérito policial. Não pode haver inquérito policial de um poder. O que pode haver é uma investigação de determinadas pessoas corruptas, como no caso apontado do juiz Nicolau dos Santos Neto (de São Paulo) e seu colaborador Luiz Estevão (senador PMDB-DF). Aí, então, esta CPI deveria ser do Senado, também, porque tem um senador envolvido. Mas esta CPI, controle externo do Judiciário e coisas deste tipo decorrem da omissão do Judiciário em punir as pessoas que maculam a sua imagem. Acredito que se o tribunal de São Paulo não tivesse sido omisso, cumprisse seu dever, não haveria este clamor público. No entanto, hoje, a CPI do Judiciário praticamente sumiu das preocupações diárias, porque revelou casos tópicos: o juiz Nicolau, o problema do TRT da Paraíba, alguma coisa na Amazônia etc. E acabou. Agora, a corrupção, infelizmente – por estarmos num país pobre e de cultura incipiente – ainda grassa. E grassa entre todos os poderes e na iniciativa privada, em grande parte, diga-se de passagem.

CJ – Pela imprensa, sabe-se que, cada vez mais, os jovens vêm abraçando a magistratura. Até que ponto o conhecimento jurídico não teria de estar aliado à experiência de vida para qualificar as decisões judiciais? Nos outros países é diferente?

Bittencourt – Bem, nos outros países, a forma de acesso à magistratura é diferente, não é por concurso público, como no Brasil. Como presidente da Comissão de Concurso para Juiz Federal da Quarta Região já há quatro anos, posso dizer, sem medo de errar, que 70% dos candidatos têm menos de 30 anos. Quer dizer, a maciça maioria é jovem. Mas por que será que só jovem quer fazer concurso? Porque os que têm mais experiência não querem ganhar pouco. Sabe quanta ganha um juiz – que passa por um verdadeiro calvário até ser admitido e, portanto, precisa ser competente? Ganha R$ 3.700,00 por mês.


Isto, certamente, é a metade do que ganha um advogado já bem estabelecido na sua atividade. Não vale a pena. Os bons advogados não aceitam ganhar pouco. Então, estamos passando por esta crise na magistratura. Na época em que fiz concurso para juiz federal – eu advogava já há 14 anos – tinha juízes do Trabalho, procuradores da República, juízes de Direito, procuradores da Fazenda nacional ou autarquias que queriam ser juízes federais.

Hoje, ninguém mais quer ser juiz federal. E sabe por quê? Porque um juiz federal praticamente ganha menos do que todas estas carreiras. E além de ganharem mais, todas estas carreiras ainda têm disponibilidade de tempo para advogar ou exercer outras atividades. E o juiz? O juiz deve dedicação exclusiva à sua função, não pode fazer mais nada. Nós empobrecemos o juiz, empobrecemos o cargo. Então, nós abrimos inscrições e ninguém se inscreve, só os que estão começando a vida. Não há mais interesse na magistratura porque ela está pagando muito pouco.

CJ – Como o sr. vê as críticas da imprensa ao Poder Judiciário? Os juízes estão sendo incompreendidos na mídia?

Bittencourt – Existem vários componentes nesta relação difícil. Primeiro componente: o Judiciário sempre descontenta pessoas. Quando eu julgo, alguém sai descontente. O Antônio Carlos Magalhães procurou o Judiciário para bater, certo? Ótimo! O Judiciário está sempre descontentando pessoas. Tem sempre alguém irritado com um juiz. Outra coisa: o juiz não sabe polemizar, não sabe conversar, não sabe se abrir, não sabe informar. Esta vocação para o gabinete torna o juiz “trancado”, de difícil comunicação, e isto prejudica mais ainda o Judiciário. O juiz não bota para fora a sua realidade. Mas este comportamento é do sistema. Nós vivemos situações muito diferenciadas. Não podemos oferecer nada para ninguém. Muitas pessoas se aproximam de nós apenas para obter vantagens. Então, a gente acaba fazendo uma couraça para se proteger.

Acredito, por outro lado, que a imprensa não entende a linguagem do juiz. O juiz fala empolado, numa linguagem que não chega à população. E também acho que a mercadoria da imprensa é aquela que satisfaz o público. O jornal que tem a boa mercadoria do público, vende. É uma questão ética e cultural do Jornalismo, hoje, no mundo inteiro. Alguém já viu nos jornais que, se não fosse a Justiça federal, os aposentados estariam ganhando uma miséria? Que muitos perderiam seus imóveis não fosse a atuação da Justiça Federal? Alguém já viu ou ouviu um elogio à Justiça Federal, nestes casos? O Judiciário passa estas informações à imprensa, mas, de um modo geral, elas não são veiculadas. E por quê? Porque não é um produto que vende. Aqui no Sul, por exemplo, a gente pune o grande crime. Aqui, não passa mesmo, pode ser rico, não interessa! Praticou crime, vai para cadeia mesmo. Mas isto aí nos incompatibiliza muito. Justiça Federal é poder público. Só que, hoje, o poder público está se dobrando à iniciativa privada. E quando alguém resiste, é uma força que incomoda.

CJ – Qual a sua opinião sobre a idéia do tribunal arbitral? Isto não comprometeria o mito da justiça oficial, de Estado? O Estado estaria sendo “rifado” pela iniciativa privada nesta questão?

Bittencourt – Bem, o tribunal arbitral, o juízo arbitral, é uma tentativa de modificação do nosso sistema e da nossa cultura jurídica. Ele funciona muito bem nos Estados Unidos. Lá, existe um sistema de solução de lides – especialmente na área econômica – muito bom. Nós não temos esta cultura. Lá, existem quase duas dezenas de grandes empresas. Aqui, talvez não tenhamos 10 grandes empresas. O juízo arbitral não se compatibiliza bem com a nossa realidade e com a nossa cultura, que é a solução de lides através do poder estatal. Este juízo arbitral é mais uma forma convencional de solucionar as discórdias do que outra coisa. Nossa economia é frágil, não oferece espaço para este tipo de iniciativa, ainda. Esta justiça alternativa é boa para épocas de estabilidade, não para os momentos que estamos vivendo hoje.

Confira o histórico do presidente do TRF da 4ª Região, Fábio Bittencourt.

Fábio Bittencourt da Rosa nasceu em Bagé, no interior do Rio Grande do Sul, em 6 de julho de 1946. Começou seus estudos básicos no Colégio Espírito Santo, passando logo após para o Colégio Auxiliadora. Em 1957 deixou sua cidade natal e fixou residência em Porto Alegre, com sua mãe, Zoila Bittencourt da Rosa.

Na capital gaúcha, seus estudos secundários foram concluídos no Colégio Nossa Senhora do Rosário. Em 1966, passou a cursar Direito na Universidade Federal do RS (UFRGS), formando-se em 1970. Resolveu voltar a Bagé para advogar junto com seu pai, Telmo Candiota da Rosa, por lá permanecendo 14 anos.

Nessa época, além da militância no Direito Cível e Criminal, Fábio também lecionou Direito Penal na Universidade Regional da Campanha (UrCamp) e fez concurso para procurador do então INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), assumindo este cargo em 1976.

Posteriormente, fez e passou no concurso para o cargo de promotor de Justiça do RS, ficando 21 dias, no entanto, nesta função, pois resolveu apostar na carreira de juiz do Trabalho no Tribunal da Quarta Região, em São Jerônimo, também no RS. Depois de permanecer nessa jurisdição por um ano, Fábio Bittencourt da Rosa volta a Porto Alegre para ocupar o cargo de juiz Federal na Sexta Vara da Capital. Pediu remoção, então, para a Quarta Vara de Fortaleza, no Ceará, no ano de 1986.

Em 1989, foi promovido para o Tribunal Regional Federal (TRF) da Quarta Região, que tem sede em Porto Alegre. O magistrado é um dos membros da composição original do Tribunal, tendo galgado todos os postos até chegar à presidência do órgão, em 21 de junho passado.

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