Concentração de renda

Presidente da OAB critica governo brasileiro na França

Autor

19 de novembro de 1999, 23h00

A política governamental do Brasil privilegia o poder econômico externo em detrimento dos direitos sociais das pessoas. É por isso que o país continua encabeçando o vergonhoso ranking da pior distribuição de renda no planeta.

Essa foi a linha do discurso do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Reginaldo de Castro, que participou neste sábado (20/11) do Congresso Internacional de Direito e Economia promovido pelo Barreau de Paris – entidade francesa eqüivalente à Ordem dos Advogados brasileira.

O presidente da OAB afirmou aos franceses que, depois de um longo período de inflação, o atual governo conseguiu contê-la. Em contrapartida, o índice de desemprego chegou a níveis até então desconhecidos e a renda dos assalariados diminuiu brutalmente, fazendo crescer o nível de pobreza no Brasil.

Para Castro, tem cabido às entidades civis como, por exemplo, a ABI e a própria OAB a defesa dos direitos das classes esquecidas pelo governo. O advogado fez um paralelo entre a história do Brasil e as lutas da Ordem na defesa desses interesses.

Leia a íntegra do discurso de Reginaldo de Castro

Senhora Presidente,

Caríssimas e Caríssimos Colegas,

Mais que um privilégio, considero uma honra participar desta solenidade. Não só para agradecer e retribuir a presença de Mme Dominique de la Garanderie na XVII Conferência Nacional dos Advogados Brasileiros, recentemente realizada no Rio de Janeiro, mas também pela oportunidade de abordar o tema central destes debates, de especial interesse para o meu país, em particular, e para os países em desenvolvimento de maneira geral.

Embora fundada em 1930, a Ordem dos Advogados do Brasil tem sua origem em 1843, com a criação do Instituto dos Advogados Brasileiros, cujos estatutos, em seu art. 1º, previam como principal objetivo a constituição da OAB. Congregando hoje 450 mil filiados, tornou-se nesses 69 anos, a maior corporação profissional do país e a segunda em seu gênero no hemisfério ocidental.

Aprovada a sua constituição pelo governo provisório, através do decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930, um mês após a revolução desse ano, a Ordem dos Advogados do Brasil se viu obrigada, logo depois da reconstitucionalização em 1934, a dissentir e a enfrentar o governo do presidente Getúlio Vargas.

Isto ocorreu em 1935, quando se verificou o levante comunista de cunho militar que terminou servindo de justificativa à longa noite de agonia que foi o Estado Novo, implantado em 1937. A OAB assumiu seu papel institucional de defesa do Estado de Direito, dos princípios democráticos e do aprimoramento da ordem jurídica, gravemente atingidos ou suprimidos durante 8 anos.

Era a Ordem que supria a inexistência de uma Defensoria Pública em nosso país, tendo que oferecer, nos estreitos limites de uma ordem política autocrática, com a supressão do “habeas-corpus” e do “mandado de segurança”, a assistência judiciária possível, a todos que o sistema de poder acusava de adversários da ordem política e social, processando-os perante um Tribunal de Segurança Nacional.

Tornou-se emblemática e um exemplo histórico, a atuação memorável do grande advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto, símbolo da resistência democrática, invocando a lei de proteção aos animais para preconizar o mesmo tratamento assegurado aos irracionais, em favor dos participantes do levante comunista de 1935.

O papel da Ordem consistiu, durante todo esse período em mobilizar a consciência democrática, por todas as formas possíveis, inclusive nas exigências que culminaram, depois de intensa mobilização popular, ao lado dos estudantes, com o rompimento de relações com o Eixo e o alinhamento do Brasil ao lado dos Aliados, na segunda guerra mundial.

O afundamento de navios mercantes brasileiros de cabotagem em nossas costas, com a perda de vidas civis de um estado até então neutro, possibilitou a declaração do estado de beligerância contra as nações do “Eixo” e a participação da Força Expedicionária Brasileira de 25.000 homens que lutou incorporada ao V Exército americano no “front” da Itália. Com a derrota do nazismo na Europa, a ditadura brasileira tornou-se inviável e o papel político dos Advogados brasileiros reunidos na sua Ordem tornou-se cada vez mais ativo na luta pela redemocratização de 1945.

A restauração do regime democrático, no ano seguinte, representou o reconhecimento de sua atuação na defesa da ordem democrática. A Constituição de 1946 instituiu o que denominamos de “quinto constitucional”, ou seja, a composição do Tribunal Federal de Recursos e dos Tribunais de Justiça dos Estados com um quinto de suas vagas ocupadas obrigatoriamente por advogados indicados pela Ordem, da mesma forma como tornou compulsória sua participação nos concursos públicos para o ingresso na magistratura.


Foi uma fase em que o aprimoramento da ordem jurídica ocupou nossa atuação, retomada vigorosamente depois do regime militar de 1964, quando novamente tivemos que enfrentar toda a sorte de limitações decorrentes da supressão da liberdade de imprensa e da revogação, como em 1937, dos direitos e garantias individuais, em razão dos Atos Institucionais que submeteram os civis a julgamentos pela Justiça Militar nos crimes tipificados numa draconiana lei de segurança nacional.

As transformações por que passou o país entre a década de 50 e os anos 90, quando à nossa população de 52 milhões de pessoas se viu acrescida de mais 110 milhões de habitantes, triplicando-a em menos de meio século, explicam as agruras e angústias que hoje dominam a questão da exclusão social, depois de pelo menos três décadas sob o regime inflacionário e de descontrole fiscal.

O poder de mobilização e organização social cresceu de forma visível na sociedade brasileira, mas os desequilíbrios na distribuição de renda e nas possibilidades de acesso às condições mínimas de bem-estar, obrigam aqueles que têm maior poder de reverberação, como é o caso dos Advogados, a assumirem um papel de reivindicação política que ao mesmo tempo preserve as conquistas da liberdade e assegurem maior igualdade para todos, em face da pobreza e da miséria que ainda assola boa parte da população.

Em decorrência do aumento da conflitividade política e dos confrontos de natureza ideológica, em torno de modelos de desenvolvimento econômico e participação social, a Ordem dos Advogados do Brasil atuou de forma ainda mais ativa para o fim do regime militar e a restauração democrática que se consumou com a Constituinte de 1987.

Como reconhecimento por seu papel na vida pública brasileira, recebeu a OAB mandato expresso da Constituição de 1988, hoje em vigor, para velar pela constitucionalidade do ordenamento jurídico nacional, através das Ações Diretas de Inconstitucionalidade que lhe cabe propor perante o Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 103, inciso VII do texto constitucional.

Da mesma forma, os constituintes aprovaram a redação do art. 133, segundo o qual “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos termos da lei”.

Nossa luta, como se vê, não se limita apenas à preservação dos direitos e garantias dos profissionais do Direito, como nos países que já alcançaram graus razoáveis e desejáveis de participação nos resultados das conquistas coletivas, mas a de um mandato explícito de natureza constitucional que nos obriga a atuar politicamente em defesa do aprimoramento institucional do país e em favor da preservação da ordem jurídica democrática. Junto a todos os Conselhos Regionais funciona uma Comissão Permanente de Defesa dos Direitos Humanos. É esta atuação, inúmeras vezes incompreendida por quase todos os governos que nos dá legitimidade para atuarmos em nome da sociedade brasileira.

Decorre dessa circunstância, sem dúvida, a surpresa dos nossos colegas de outros países manifestada durante a última Conferência Nacional dos Advogados brasileiros quando, entre temas de interesse estritamente profissional, aos quais deram apreciada e brilhante cooperação como conferencistas, enfrentamos uma extensa pauta de questões políticas e de reivindicações sociais.

Esta tem sido uma característica marcante de inúmeras entidades civis em nosso país, como as que reúnem os cientistas, congregados na Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência e na Associação Nacional dos Pós-Graduados em Ciências Sociais. A OAB desenvolve ações conjuntas com outras entidades, em especial a Associação Brasileira de Imprensa e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Assim ocorreu, por exemplo, durante o processo de “impeachment” do ex-presidente Fernando Collor, quando coube aos presidentes do Conselho Federal da Ordem e da ABI, subscreverem o processo para o julgamento político do então presidente da República. Vale assinalar que foi o primeiro processo dessa natureza, levado a termo num regime presidencialista, em todo o mundo, culminando com a perda do mandato do chefe do governo e sua inabilitação para exercer cargos públicos por oito anos.

O nosso país ainda sofre de enormes disparidades, como as que assinalou Jacques Lambert nesse livro emblemático que é “Os dois Brasis”. A concentração de renda atingiu nível insuportável, um dos mais altos do mundo, e sem similar em nações com a nossa expressão política, demográfica e econômica. Depois de um longo período de inflação, o atual governo logrou contê-la, porém às custas de um programa econômico que aumentou o desemprego a níveis até então desconhecidos, consumou um conflitivo e amplo processo de privatizações em todos os setores produtivos, diminuiu a renda dos salariados pelo virtual congelamento de seus salários e fez crescer o nível de pobreza, como de resto em toda a América Latina.


O Brasil adotou a receita do chamado consenso de Washington, depois do México, da Argentina, da Bolívia e do Chile. A globalização criou uma expectativa de que, com a intensificação do comércio mundial, através da supressão das barreiras e de sua liberação, os países voltariam a crescer. Gerou paralelamente a crença de que a competitividade exigiria a concentração e a fusão de empresas e a liberdade dos movimentos de capitais, tanto para aplicação nos setores produtivos, quanto nas Bolsas de Valores.

No Brasil, a estabilidade econômica teve o alto preço do endividamento interno e externo, fazendo com que a só a dívida pública interna atingisse cerca de 50% do PIB. Aumentamos nosso déficit no balanço de pagamentos e na balança comercial.

Essas políticas que geraram perspectivas tão positivas, provocaram resultados reconhecidamente negativos. Os países em desenvolvimento transformaram-se nas vítimas preferenciais do chamado capital volátil, na realidade o capital especulativo, com as crises que se sucederam, primeiro no México, depois nos países do Sudeste asiático, em seguida na Rússia e logo após no Brasil. Permito-me lembrar que a mecânica desse processo é exatamente a mesma que sofreu a Grã-Bretanha no início dos anos 90, levando o seu governo a fazer com que a libra esterlina deixasse o Sistema Monetário Europeu.

O problema de tornar eficaz o Direito num mundo globalizado é que não lidamos com interesses em confronto de diferentes países, mas sim do confronto de países com interesses privados, em alguns casos com a tolerância, a conivência e até a participação dos governos interessados. São adversários sem nome, sem face, sem residência, sem endereço, num mercado sem normas, sem regras e sem qualquer limitação de natureza ética ou política.

Recentemente, atendendo à representação da OAB, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, declarou inconstitucional lei federal que violava direitos adquiridos e o exercício desse ato de soberania do país, mereceu da publicação “The Economist” texto insultuoso ao Tribunal, sob o fundamento de que isto feria o interesse dos investidores externos.

Há um evidente conflito entre o ordenamento jurídico do país e o modelo econômico da globalização, obrigando-nos a reagir para preservar os princípios universais relativos à irretroatividade da lei, a intocabilidade do ato jurídico perfeito e acabado e os direitos adquiridos.

Em nosso caso, como muitas das decisões do governo visam a preservar esses interesses econômicos, em detrimento da normalidade e do respeito à ordem jurídica mesmo quando violentam direitos sociais, a OAB, como em outras épocas, cumpre o seu papel, promovendo a intervenção do poder Judiciário. Estamos defendendo o interesse coletivo da sociedade civil.

É visando prevenir essas práticas danosas e nocivas que temos promovido encontros de advogados dos países do Mercosul, embora estejamos conscientes de que é necessária uma atuação a nível internacional bem mais ampla e sistemática. A comunidade internacional está consciente do seu dever de proteger os direitos humanos e reprimir as práticas de sua violação, onde quer que ocorram. Estamos pendentes da ratificação necessária à criação de um Tribunal Penal Internacional que já foi admitido por 89 países.

Mas nunca nos preocupamos com as atividades predatórias de grupos e vastos interesses econômicos, que ninguém controla, mesmo sabendo que delas advém a pior das violações dos direitos do cidadão, o agravamento da pobreza e a intensificação da miséria e a destruição do emprego.

Paralelamente, estamos lançando as bases da instituição, com os países amazônicos, de um “Tribunal Ambiental” para denunciar e prevenir ações de agressão à natureza daquela que é a mais vasta região de biodiversidade em todo o mundo de inigualável importância para nossos países.

Como se vê, não atuamos por voluntarismo, mas pela percepção histórica de que onde as instituições públicas são frágeis, permeáveis a influências externas, ou de baixo rendimento e eficiência, temos o dever de compartilhar o destino de nosso povo, buscando soluções que os governos nem sempre estão aptos a dar ou empenhados em viabilizar. Este tem sido o nosso papel.

Só assim estaremos lutando para deixar de ser os dois Brasis da década de 50, para nos tornarmos o Brasil único, singular, diversificado e igualitário a que aspiramos ser no novo século que se aproxima.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!