Continuação: 1ª sentença para revisão dos contratos de leasing
18 de março de 1999, 0h00
Há lúcidas pessoas tratando do assunto, como é o caso de Leonardo Roscoe Bessa, Promotor de Justiça da Segunda Promotoria de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Distrito Federal, cujo artigo abaixo transcrito foi publicado no Jornal Correio Braziliense e também está disponível na Internet, no também recomendável site jurídico chamado Neófito (http://www.neofito.com.br).
“A mudança repentina na economia atingiu diretamente os consumidores que celebraram contratos de execução diferida com cláusula de reajuste vinculada à variação cambial do dólar norte-americano. Os advogados das instituições financeiras e, também, o senso comum proclamam: o contrato é lei entre as partes; o que foi pactuado deve ser cumprido. Não é bem assim. Aliás, historicamente, nunca foi.
O Código de Hamurabi, de aproximadamente 2000 anos antes de Cristo, previa no artigo 48: ‘Se alguém tem um débito a juros e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá, nesse ano, dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros esse ano’.
Em Roma, nos seus treze séculos de história, existia previsão de alteração do conteúdo dos contratos, caso houvesse modificação das condições iniciais que estimularam o acordo.
Na Idade Média houve uma intensa preocupação com a denominada lesão nos contratos, especialmente com a usura.
Somente após a Revolução Francesa, que exaltou o individualismo e a liberdade quase absoluta, foi que a possibilidade de revisão contratual foi deixada de lado por alguns anos. O homem, sendo livre e igual, poderia, manifestando sua vontade, contrair obrigações perante terceiros. Por algum tempo não se falou mais na cláusula rebus sic stantibus. O Código Civil francês de 1804 explicitou: ‘O contrato é lei entre as partes’.
O pacta sunt servanda tornou-se verdadeiro dogma. Mas nem mesmo no século XIX acreditava-se piamente que o contrato tinha uma força cogente e absoluta. Se o acordo fosse celebrado sob algum vício de consentimento, poderia ser invalidado. Também negavam-se efeitos ao contrato com objeto ilícito, violador de norma de ordem pública.
Mas, especialmente após as duas grandes guerras deste século, os juristas e legisladores voltam a atenção ao conteúdo do contrato. Percebe-se que a igualdade entre os homens, declarada pela Revolução Francesa, era apenas formal. A desigualdade econômica, cada vez mais contundente, permitia abusos contratuais. Havia, de regra, imposição das cláusulas que privilegiavam uma das partes. Novas técnicas de contratação surgiram, onde a vontade passa a mero elemento formal. Destaca-se, no contexto, o contrato de adesão: uma das partes – economicamente mais forte – elabora o contrato, cabendo à outra simplesmente aderir ou não às disposições preestabelecidas, sem qualquer possibilidade de discussão do seu conteúdo.
Renasce, no início do século, a possibilidade de revisão dos contratos. Diversos países europeus promulgam leis com referência expressa à ‘teoria da imprevisão’. A resolução ou revisão dos contratos passaria a ser prevista em caso de agravamento imprevisto e exagerado para uma das partes.
No âmbito desse movimento de dirigismo contratual, atenção diferenciada foi conferida aos contratos em que uma das partes é naturalmente vulnerável, como o empregado, nas relações trabalhistas, e o consumidor, nas relações de consumo.
Especialmente na década de 70, vários países do mundo ocidental, preocupados com a vulnerabilidade do consumidor, promulgam leis visando à sua proteção contratual: Suécia (1971), Dinamarca e Venezuela (1974), Alemanha e México (1976), Inglaterra (1977), França (1978), Áustria (1979), Irlanda (1980), Luxemburgo (1984), Espanha (1984) e Portugal (1985).
O Brasil, na mesma linha, edita, em 1990, a Lei nº 8.078 que, em seu art. 6º, V, expressamente prevê, como direito básico do consumidor, a possibilidade de revisão do conteúdo dos contratos em razão de fatos supervenientes que os tornem excessivamente onerosos. Ressalte-se que não é requisito para a revisão contratual a imprevisibilidade do fato novo, ensejador da vantagem exagerada. Basta que haja uma onerosidade excessiva para o consumidor.
Os contratos de leasing de veículos com reajuste da prestação vinculado ao dólar constituem-se, atualmente, situação que ilustra fielmente a onerosidade excessiva do contrato. Em janeiro, o dólar valorizou-se em aproximadamente 70% (setenta por cento) frente ao real, enquanto ainda se convive com inflação mensal próxima de zero.
No Brasil inteiro, o Judiciário tem concedido, em ações individuais e coletivas, liminares impondo a substituição do reajuste pelo dólar por índice que reflita a taxa inflacionaria.
Entre as discussões que o tema tem gerado, além da afirmação simplista e apressada de que o reajuste pelo dólar estava previsto contratualmente e, portanto, deve ser seguido, ouve-se outro argumento falho. As empresas captaram recursos no exterior para aquisição dos veículos arrendados. Possuem, portanto, obrigações em dólar, sendo injusto impor-lhes o ônus decorrente da desvalorização do real.
Ora, a instituição que realmente contraiu empréstimo no exterior fez por conta e risco próprios, intencionando pagar juros menores do que obteria no país. Com assessorias jurídicas muito bem estruturadas conheciam, ou deveriam conhecer, o art. 6º, V, da Lei nº 8.078/90, que consagra a possibilidade de revisão do contrato em favor do consumidor, caso este se torne excessivamente oneroso. Se, mesmo conhecendo esta circunstância específica da lei de proteção do consumidor, o empresário optou pelo dólar, eventual prejuízo será resultado do risco da atividade empresarial.
Antes de assumir o empréstimo, a empresa já sabia desta opção do legislador em proteger a parte mais fraca no contrato. A lógica jurídica é clara. O consumidor é destinatário final do produto. Adquire o bem por necessidade. A empresa fez a opção pelo dólar como estratégia empresarial para aumentar seus lucros. Ao contrário do dito popular, juridicamente, a corda deve arrebentar do lado do mais forte”.
A questão é realmente esta: o juiz deve escolher em sacrificar o consumidor ou o fornecedor. A minha opção é em favor do consumidor, pelas razões acima, minhas e de outras pessoas, além de outras que apresento abaixo.
Os agentes financeiros (Bancos, Financeiras, empresas de Leasing) têm profissionais da maior qualificação. Quem pode com maior razão a antever uma alta do dólar: eles ou o consumidor, que viu o câmbio ficar parado por vários anos e depois explodiu? Apesar de o consumidor aceitar a correção cambial, as prestações são sempre pagas em real e na publicidade o destaque era para o valor da prestação em real. Quem nunca viu um anúncio assim:
Seu carro zero por apenas 399 reais mensais. Compre agora!
Pois é, outras informações não eram omitidas porque o Código de Defesa do Consumidor não permite, mas as letras eram menores, estavas escritas na vertical, com asterísticos, etc.
As prestações atualizadas pelo dólar não cabem mais no bolso das pessoas, que dessa forma pagaria por carros populares preços de carros médios ou mesmo de luxo. Os Bancos ou as suas empresas de leasing podem ter tomado dinheiro no exterior. Não duvido disso, mas fizeram isso com muito mais consciência do risco. Aliás, o risco é inerente à operações que os bancos fazem. Às vezes eles ganham e às vezes eles perdem, mas no geral o resultado é sempre positivo, como os balanços publicados nos jornais nos mostram. É claro, eles são profissionais e sabem bem o que fazem. Digo até que merecem esses lucros.
Só que o risco do fornecedor é maior e é dele, não podendo ser repassado para o consumidor. Explico. Quando um Banco toma dinheiro no exterior em dólares faz (ou fazia) isso porque as taxas externas eram menores, o que lhe permitia oferecer aos consumidores nacionais dinheiro a um menor custo, levando esses mesmos consumidores a contratar mais e com a indexação pelo dólar. Com isso os Bancos fizeram mais operações e ganharam mais com o spread, que nada mais é do que a diferença entre a taxa que o agente financeiro paga e recebe.
Que ninguém diga que o consumidor sabia que estava contratando em dólar e deve agora “pagar a conta” pela desvalorização explosiva. Não. O consumidor sabia sim qual era o indexador, mas tinha e tem em seu benefício, para impedir a sua quebra, o art. 6º, V, do CDC, o direito básico de rever o contrato por onerosidade excessiva decorrente de fatos posteriores.
Em outras palavras, o consumidor contratou em dólar, era e é um contrato válido e deveria ser respeitado, como sempre foi, até o momento em que ocorreu algo que tornou as prestações excessivamente onerosas. Para isto o Código de Defesa do Consumidor dá ao consumidor – e somente a ele – o direito de rever o índice contratual.
A lei protegia e protege o consumidor contra bruscas mudanças. A lei não dá a mesma proteção ao Banco, pois ele não é consumidor, ele não é desinformado, ele não é parte fraca na relação contratual, ele sabia e sabe de tudo o que acontece no mundo financeiro, como se vê da análise da economia internacional que está na contestação. A população de São Miguel Paulista, pobre periferia de São Paulo onde este juizado está, não lê The Wall Street Journal, The Economist, Gazeta Mercantil, Exame, The New York Times e nem dispõe da mais capacitada assessoria econômica e jurídica. Não.
É por isso que alguma empresas de leasing mandaram cartas aos seus clientes propondo uma renegociação para abaixar o valor da prestação por alguns meses, ficando a diferença para o fim. Com o mundo dá tantas voltas. Alguém poderia imaginar uma empresa coligada ao um Banco mandar uma carta para o cliente para abaixar o valor da prestação corrigida pelo dólar captado no exterior?
Isso tem uma explicação simples. As empresas de leasing sabem que o consumidor tem direito a rever o contrato por outro indexador sem resíduo no final. Mandam a carta de renegociação para que, mesmo depois de alta do dólar, seja a correção cambial ratificada pelo consumidor, que assim estaria como que abrindo mão de discutir na justiça o direito que ele tem a uma prestação justa. Em resumo, as empresas de leasing, tal qual um lobo em pele de cordeiro, para não perder tudo porque o prejuízo é delas, fazem essa verdadeira armadilha com aparência de respeito ao consumidor, mas que na verdade não passa da prática de dar os anéis para não perder os dedos. É quase um golpe.
As empresas de leasing, normalmente controladas por Bancos, sabiam que em caso de explosão da cotação do dólar não poderiam exigir dos consumidores – a maioria deles honestos e de boa fé, mas descapitalizados – a diferença. Eles sabiam e assumiram o risco. Quem assume o risco fica com o prejuízo. A lei está ao lado do consumidor. Desta vez a corda não vai arrebentar do lado mais fraco.
Nem se diga que a minha posição revela alguma prevenção contra os Bancos. Tenho decidido que o limite de 12% de juros não é auto-aplicável, tenho admitido a cobrança de correção monetária e comissão de permanência, desde que incidentes em períodos distintos, tenho considerado o contrato de cheque especial um título executivo, raramente julgo procedentes embargos à execução movida por Banco, que normalmente têm razão. Desta vez, repito, o direito está ao lado do consumidor.
Não venha a empresa de leasing dizer que captou o dinheiro no exterior. Isto é problema seu. Por que não trabalhou só com o dinheiro nacional? Para fazer mais operações de crédito e ganhar mais. Então fique com o prejuízo. No prazo médio isso será diluído e superado pelo lucro causados por gestões menos arriscadas.
Não vale o combinado? O contrato não deve ser cumprido? A resposta é sim para as duas perguntas, mas há exceções para todas as regras e uma delas é a tal da posterior onerosidade excessiva.
Na verdade, o art. 6º, V, do CDC permite, na sua parte inicial, a modificação do contrato quando as prestações são desproporcionais, mesmo quando livremente pactuadas, ainda no início do contrato e independente de qualquer mudança. Se alguém compra à vista um Corsa pelo preço de um Vectra pode, em tese, sair da loja com o contrato que acabou de assinar e ir ao fórum pedir uma devolução parcial. Não imagino que isso aconteça, mas se acontecer, esse direito existe. Não pode o dono da loja dizer: “Eu pedi. Ele pagou. O problema é dele”. Nada disso. A direito não tolera o abuso do direito. Se o mesmo problema ocorre depois, em razão da alta explosiva do dólar, a solução dada pelo direito e pela lei (não fui eu que inventei esse direito) é a mesma. Não é por outra razão que tantas liminares foram concedidas.
Alguém pode perguntar? E se o dólar tivesse subido para apenas 1,40, caberia a revisão? Resposta: Não, porque neste caso não haveria uma onerosidade excessiva prevista no Código de Defesa do Consumidor.
A ré perguntou no final de sua contestação se ela poderia pedir a revisão do contrato, em seu favor, na hipótese de o dólar ter despencado para 0,50. A resposta qualquer um sabe: Não.
Se alguém indagasse: “Mas como, se aumenta muito ele pede para abaixar a prestação, mas se desce muito eu não posso pedir para subir?” A resposta é não pela singela razão de que as partes não têm nas relações de consumo direitos iguais. E não há qualquer injustiça nisso. A verdadeira igualdade está em tratar desigualmente os desiguais. Confira-se a respeito a obra de Celso Antonio Bandeira de Mello chamada, salvo engano, O Conteúdo do Princípio Jurídico da Igualdade (isonomia). Ruy Barbosa disse que a democracia não é o regime político que se caracteriza pela plena igualdade de todos perante a lei, mas pelo tratamento desigual dos desiguais.
O consumidor pode rever o contrato e a empresa de leasing não. Ela sabia disso, assumiu o risco e não pode querer que a justiça transfira o seu prejuízo, a conseqüência de sua irresponsabilidade para a parte mais fraca da relação de consumo. O Código é de Defesa do Consumidor e não do fornecedor, que de defesas especiais não precisa. Para o fornecedor vigora o Código Comercial, o Código Civil em alguns casos, as normas do Banco Central. O consumidor tem (quase) sempre razão e o empresário que não tem competência não se estabelece. São ditados sábios e até mesmo anteriores ao Código de Defesa do Consumidor.
O mesmo departamento que hoje atravessa as noites em claro fazendo teses muito bem escritas, sedutoras até, mas inconsistentes, deveriam ter prevenido os diretores das empresas de leasing os riscos para a empresa da captação em dólar no exterior para receber em reais pela cotação do dia. Isso valia e vale, mas não para a hipótese de explosão de cotação geradora de excessiva onerosidade, nos termos do art. 6º, V, do CDC.
Se o art. 6º, V, do CDC não for aplicado agora, pergunto: ele é para ser usado somente em casos de guerra? Estaria ele apenas a adornar o CDC com falsos direitos do consumidor? É claro que não. O Código de Defesa do Consumidor é um diploma moderno, inspirado em vários outros, principalmente o francês, mas que vai influenciar muitas e muitas legislações futuras. O lobby feito para que muitos de seus dispositivos não fossem aprovados ou fossem vetados não conseguiu que esse verdadeiro baluarte dos consumidores, dos cidadãos, fosse mutilado. Isso não foi feito pelos demais poderes e não será o Poder Judiciário que o fará agora.
O autor tem o direito de trocar o indexador dólar pelo INPC e, pagando as prestações por este novo índice, não restará qualquer resíduo no final.
Assim, julgo procedente o pedido formulado por MARCOS ANTONIO MODESTO DE ABREU em face de FINASA LEASING ARREMDAMENTO MERCANTIL S.A., para o fim de substituir no contrato de leasing celebrado entre as partes a correção cambial pela cotação do dólar para o índice do INPC.
P.R.I.
São Paulo, 09 de março de 1999.
José Luiz Germano
Juiz de Direito
Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 1999.
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