Continuação: 1ª sentença para revisão dos contratos de leasing
18 de março de 1999, 0h00
Os contratos entre fornecedores e consumidores sofreram grande diminuição do princípio da autonomia da vontade. Hoje não se pode contratar o que bem se quiser. A propósito disso transcrevo a lição de um dos autores do livro que mencionei. Trata-se e Nelson Nery Júnior, de quem tenho a honra de ter sido aluno na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, jurista de nomeada, cujo texto pode ser lido na Internet, mais precisamente na revista Consultor Jurídico, cujo recomendável site é http://cf3.uol.com.br:8000/consultor/index.cfm.
Diz Nelson Nery Júnior, na obra Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado Pelos Autores do Anteprojeto, editora Forense Universitária, 5ª Edição, pág. 345:
No que respeita aos aspectos contratuais da proteção do consumidor, o CDC rompe com a tradição do direito privado, cujas bases estão assentadas no liberalismo que reinava na época das grandes codificações européias do século XIX, para: a) relativizar o princípio da intangibilidade do conteúdo do contrato, alterando sobremodo a regra milenar expressa pelo brocardo pacta sunt servanda e enfatizar o princípio da conservação do contrato (art. 6., n. V).
(Op. Cit. pág. 346) Isso porque as regras tradicionais do direito privado, fundadas na dogmática liberal do século XIX, não mais atendem às necessidades das relações jurídicas de hoje, notadamente em se tratando de negócios jurídicos de massa, realizados sob a forma de contratos padronizados e de adesão.
O excesso de liberalismo, manifestado pela preeminência do dogma da vontade sobre tudo, cede às exigências da ordem pública, econômica e social, que deve prevalecer sobre o individualismo, funcionando como fatores limitadores da autonomia privada individual, no interesse geral da coletividade.
O liberalismo acentuado que informou toda a construção legislativa do início do século XIX ensejou a dogmatização da teoria geral do contrato, fundada na autonomia privada, fazendo do contrato o mais importante e relevante dos negócios jurídicos celebrados entre pessoas. O princípio pacta sunt servanda foi elevado às suas conseqüências máximas.
(Op. Cit. pág. 347) Esse regime atendia as necessidades de uma sociedade estabilizada, tanto do ponto de vista político, como do sociológico e do econômico, mesmo que nela houvesse disparidades sociais e econômicas. Daí a razão da afirmação de que o Code Napoléon era, antes de sua mais significativa reforma, o “Código da Burguesia”.
Com o advento da 1a Guerra Mundial, a situação sociopolítica das sociedades européias até então estáveis se modificou, de sorte que a realidade impôs a adoção de regras que atendessem as necessidades oriundas da guerra, bem como conduzissem a sociedade do pós guerra de volta às tão esperadas estabilidade e paz social.
E é nesses períodos de grande comoção econômica (como acontece na atualidade), aliada às vicissitudes políticas e sociais, que surge o fenômeno do dirigismo contratual, como uma espécie de elemento mitigador da autonomia privada, fazendo presente a influência do direito público no direito privado pela interferência estatal na liberdade de contratar.
(Op. Cit. pág. 348) O dirigismo contratual não se dá em qualquer situação, mas apenas nas relações jurídicas consideradas como merecedoras de controle estatal para que seja mantido o desejado equilíbrio entre as partes contratantes.
(op. Cit. pág. 350) O contato não morreu nem tende a desaparecer. A sociedade é que mudou, tanto do ponto de vista social, como do econômico e, consequentemente, do jurídico. É preciso que o Direito não fique alheio a essa mudança, aguardando estático que a realidade social e econômica de hoje se adapte aos vetustos institutos com o perfil que herdamos dos romanos, atualizado na fase das codificações do século passado.
Atento a essa nova realidade, o Código de Defesa do Consumidor tem o propósito de instituir uma mudança de mentalidade no que respeita às relações de consumo, que tem de ser implementada por todos aqueles que se encontram envolvidos nessas relações, notadamente o fornecedor e o consumidor.
(Op. Cit. pág. 358) Com o crescimento da sociedade de consumo, que teve início marcante no início deste século, surgiu a necessidade de contratação em massa, por meio de formulários com cláusulas preestabelecidas de sorte a agilizar o comércio jurídico. Nesse contexto não há mais lugar para as tratativas contratuais, onde as partes discutiam tópico por tópico do contrato que viria a ser formado entre elas.
(Op. Cit. pág. 359) O CDC é a primeira lei brasileira que regula o contato de adesão, definindo-o, fornecendo seu regime jurídico e o método para sua interpretação.
(Op. Cit. pág. 360) Indissociáveis do fenômeno da contratação em massa (contratos de adesão), essas cláusulas gerais dos contratos têm sido largamente utilizadas entre nós, em todos os setores da economia, como v.g., nos contratos bancários, de seguros, de planos de saúde, de consórcios etc., mas praticamente ignoradas pelos nossos doutrinadores do Direito Civil e Comercial.
(Op. Cit. pág. 364) Um dos direitos básicos do consumidor é o de proteção contra cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos ou serviços (relações de consumo), conforme disposto no art. 6º, n. IV, do Código. O CDC enumerou uma série de cláusulas consideradas abusivas, dando-lhes o regime da nulidade de pleno direito (art. 51) Esse rol não é exaustivo, podendo o juiz, diante das circunstâncias do caso concreto, entender ser abusiva e, portanto, nula, determinada cláusula contratual.
(Op. Cit. pág. 365) A proteção contra cláusulas abusivas é um dos mais importantes instrumentos de defesa do consumidor, importância que se avulta em razão da multiplicação dos contratos de adesão, concluídos com base nas cláusulas contratuais gerais.
(Op. Cit. pág. 370) As operações bancárias estão abrangidas pelo regime jurídico do CDC, desde que constituam relações jurídicas de consumo.
(Op. Cit. pág. 377) Por derradeiro, a atividade bancária tout court é considerada como de comércio, por expressa disposição dos arts.119, do Código Comercial, 2º das S.A. e 2º da Lei 4.595/64, de como que os bancos são considerados fornecedores porque exercem comércio, subsumindo-se na atividade designada no caput do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor. Portanto, o banco é sempre fornecedor.
(Op. Cit. pág. 378) A preocupação atual dos países ocidentais é dotar as leis de melhor proteção contra as atividades bancárias e creditícias. Dizer que bancos estão fora do sistema de proteção do consumidor é remar contra a maré, é andar na contramão da história e da economia mundial. A este propósito, com o objetivo de fazer com que a submissão dos bancos ao CDC seja questão transitada em julgado, o Prof. Dr. Newton de Lucca, no Congresso Internacional de Direito de Direito do Consumidor (Brasília-DF, abril de 1994), apresentou sugestão, que o plenário aprovou por votação unânime, com a seguinte redação: “Os bancos e as atividades bancárias se encontram sob o regime jurídico do Código de Defesa do Consumidor”.
(Op. Cit. pág. 379) Constitui direito básico do consumidor a “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. (art. 6º, nº V, CDC). Esse princípio modifica inteiramente o sistema contratual do direito privado tradicional, mitigando o dogma da intangibilidade do conteúdo do contrato, consubstanciado no antigo brocardo pacta sunt servanda.
No sistema do CDC, entretanto, as conseqüências do princípio pacta sunt servanda não atingem de modo integral nem o fornecedor nem o consumidor. Este pode pretender a modificação de cláusula ou revisão do contrato de acordo com o art. 6º, nº V, do CDC; aquele pode pretender a resolução do contrato quando, da nulidade de uma cláusula, apesar dos esforços de integração do contrato, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes (art. 51, § 2º, do CDC).
Nosso Código Civil contém alguns dispositivos que, de alguma forma, indicam que o sistema do direito privado brasileiro não é infenso ao revisionismo contratual, como se pode notar dos arts. 401, 928, 954, 1.190, 1.205, 1.399. Nada obstante, existem alguns dispositivos que parecem repelir a revisão do contrato (arts. 1.246 e 1.453 do Código Civil; art. 131, nº 5 do Código Comercial).
(Op. Cit. pág. 380) Mas o princípio maior da interpretação dos contratos de consumo está insculpido no art. 47 do CDC: “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. Isso quer significar que não apenas as cláusulas ambíguas dos contratos de adesão se interpretam em favor do aderente, contra o estipulador, mas o contrato de consumo como um todo, seja “contrato de comum acordo”(contrat de gré à gré), seja de adesão será interpretado de modo mais favorável ao consumidor.
Na obra que já mencionei no início desta sentença é mencionado que a primeira preocupação com o consumidor foi de John F. Kennedy, em 1962, o que bem mostra que o direito do consumidor é extremamente novo (e desconhecido). O curioso é que o direito do consumidor nasceu exatamente num país onde há talvez a maior liberdade de mercado no mundo. Nem mesmo lá, todavia, a liberdade é absoluta. O consumidor é respeitado porque ele tem direitos como aqui. Com a importante diferença que é muito mais consciente deles. Haveremos de chegar a esse ponto e espero que esta sentença para isso contribua.
O fenômeno tão recente chamado sociedade de consumo iniciou-se somente neste século com Henry Ford e desenvolveu-se com a publicidade e os meios de comunicação, que são mais recentes ainda. O televisor, o computador e a Internet são coisas muito recentes. A primeira pessoa a aparecer em uma tela de TV no Brasil está até hoje trabalhando na TV e chama-se Hebe Camargo.
Pois bem, para explicar um direito moderno, atual e recente a ré mencionou o ensinamento de um jurista respeitável, mas cujas lições são da década de 50. O Brasil de 1950, o mundo de 1950 não existem há muito tempo. A sociedade rural, onde as pessoas se conheciam, onde tudo era feito na base da confiança não existe mais. Hoje temos contatos e até contratos com pessoas que jamais vimos e jamais veremos pessoalmente (Internet, videoconferência, etc.). Vivemos numa sociedade de massa, de consumo, numa selva de pedra, numa competição desenfreada, com desemprego, com violência, num estresse que afeta até as crianças, muitas das quais não sabem o que é brincar na rua. Deixar o consumidor a mercê do fornecedor num cenário desses é algo igual a pedir que uma raposa faminta tome conta de galinhas.
Alguém espera que a parte mais forte em um contrato – e só se pode fazer um contrato de leasing com empresas de leasing, que são poderosíssimas e ainda têm uma associação só para defender os seus interesses (Associação Brasileira das Empresas de Leasing – ABEL) – vai redigir um contrato de adesão com a preocupação de proteger o consumidor? Não. E quem protege o consumidor, que raramente tem consciência de seus direitos ou faz parte de alguma associação como o respeitável IDEC (http://www.uol.com.br/idec)? A resposta é: o Código de Defesa do Consumidor, que jamais fará o que a própria Constituição Federal dele espera, se não plenamente aplicado por todos operadores do direito, principalmente os juízes. O Código de Defesa do Consumidor não pode ser mais uma lei a não “pegar”.
Rever o contrato, mas especificamente a cláusula da correção cambial, é um direito do consumidor. Repito: é um direito, um direito básico, fundamental do consumidor. E direito se exige, se respeita, não se implora, não se mendiga.
Continua em Comunidade Jurídica.
Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 1999.
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