Reforma deve ser profunda

Celso de Mello defende mudanças radicais na Justiça

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14 de março de 1999, 0h00

O ministro Celso de Mello, do STF, não opina sobre a proposta de criação de uma CPI para investigar irregularidades do Judiciário. Diz apenas que é preciso verificar, antes, se o Congresso tem a competência constitucional para investigar outro poder. Ainda assim, o presidente do Supremo considera positivo que o senador Antonio Carlos Magalhães, em discurso feito no mês passado, tenha reaberto o debate sobre a reforma do Judiciário.

Para ele, as mudanças não podem ser apenas técnicas e burocráticas: “A reforma deve traduzir a exigência legítima dos cidadãos que querem a instituição no país de um sistema de administração da justiça que seja politicamente independente, processualmente célere, tecnicamente eficiente e socialmente eficaz”.

Celso de Mello propõe que o Congresso discuta essa questão “sem preconceitos, sem restrições e sem exclusões” refletindo inclusive sobre reformulações de ordem estrutural.

Para o ministro, a reforma judiciária é um tema importante demais para ser debatido apenas entre os profissionais do direito. “A controvérsia ilumina o debate” – argumenta ele – “E o debate funciona como fator de legitimação das decisões a serem tomadas pelo Congresso Nacional”.

Como instância constitucional qualificada para proceder à ampla revisão do sistema judiciário do país, o Congresso tem o papel de estender a discussão a toda a sociedade, entende Celso de Mello. “Só a manifestação crítica do conjunto dos cidadãos dará a necessária legitimidade político social a esse sistema, já que o seu principal destinatário é exatamente o cidadão”.

Quando se propõe a supressão de órgãos, por exemplo, afirma o ministro, não se está fazendo um juízo de mérito sobre as pessoas que lá estão. “Sempre defendi o fim da Justiça Militar, mas nunca deixei de reconhecer que os juízes a ela pertencentes são homens dignos, profissionais de mais alta qualificação.”

Mas nada justifica subsistência da Justiça Militar, cuja competência deve ser atribuída à Justiça comum.

A medida sequer oneraria o Estado uma vez que o volume processual dessa esfera é estatísticamente inexpressivo. O mesmo ocorreria em relação ao âmbito federal. Crimes contra as Forças Armadas, são crimes contra a União, e para isso já existe a Justiça Federal comum.

O ministro, diferentemente do senador Antonio Carlos Magalhães, considera irrecusável a importância social da Justiça do Trabalho. Acha fundamental mantê-la, mas defende modificações, como a supressão, em todos os graus de jurisdição, da representação classista.

“Ela se tornou historicamente anacrônica. Foi criada sob a égide de uma doutrina – o corporativismo – já completamente superada”, afirma o ministro, que opta por uma composição inteiramente togada.

Em sua visão, por outro lado, é importante prestigiar os instrumentos de auto-composição dos conflitos coletivos de trabalho, estimular inclusive a solução consensual mediante negociações coletivas.

“Só quando se frustarem as tentativas de entendimento através da mediação ou do arbitramento é que esses conflitos ingressariam na instância judiciária, como está previsto nos parágrafos 1º e 2º do artigo 114 da Constituição.”

Na opinião do ministro, a mediação é o instrumento ideal para fortalecer as representações sindicais, “para que estas não sejam subjugadas pelos sindicatos patronais no processo de negociação”.

No mesmo contexto, ele entende essencial discutir o poder normativo da Justiça do Trabalho. Hoje usado para solucionar conflitos coletivos de natureza jurídica e econômica, deveria se limitar unicamente à resolução dos conflitos de natureza jurídica.

Entre as posições existentes – a mais conservadora que sugere a manutenção do sistema vigente e a mais radical que é a da supressão da justiça trabalhista – o ministro acredita que o bom senso está na solução intermediária.

“Esse debate deve ser amplificado para legitimar o sistema e, sobretudo, para aperfeiçoar institucionalmente o aparelho judiciário.” Para esse objetivo, acredita ele, é essencial prestigiar a primeira instância que “injustificadamente tem sido excluída de todos os debates e relegada a um plano injustamente secundádrio.”

Celso de Mello considera também fundamental criar mais cargos de juiz para corrigir a proporção insatisfatória juiz/população.

Outro aperfeiçoamento seria a supressão progressiva das hipóteses de prerrogativas de foro nas infrações penais. O ministro admira sistemas como o norte-americano, onde até mesmo o presidente da República é processado a partir da primeira instância.

Ele lembra que todas as constituições republicanas, até a Carta Federal de 1969, não outorgavam a deputados e senadores, por exemplo, prerrogativa de foro. “E nem por isso, em quase cem anos, a regra afetou a independência dos parlamentares nem jamais conspurcou a dignidade dos membros do Congresso Nacional”.

O ministro considera lamentável o desdobramento dessa prerrogativa que, nos Estados, foi estendida a um grande número de ocupantes de cargos públicos.

Celso de Mello examina inclusive a hipótese de se rever o sistema de nomeação de juízes e ministros, à luz da experiência de outros países.

Ele cita, como exemplo, o caso do Japão onde, desde 1947, o juiz da suprema corte, uma vez nomeado fica sujeito à reavaliação dos cidadãos, nas eleições para o Legislativo. Na cédula, o eleitor responde se deseja ou não manter o juiz. Embora não se tenha notícia de nenhuma destituição, a norma respeita a vontade da população, democraticamente.

O controle social, na visão do ministro, é uma necessidade indissociável do regime republicano. “Nas dimensões executiva legislativa ou judiciária, não tem sentido que o exercício do poder se faça sem controle. Ninguém pode pretender-se excluído da fiscalização social, porque ninguém é imune a erros ou críticas”.

A fiscalização, no seu ponto de vista, não compromete a liberdade nem a independência do fiscalizado. No caso da magistratura, ele faz a ressalva da ação jurisdicional: “O juiz deve ser essencialmente independente para que o cidadão seja livre. É clara a relação de causa e efeito entre o direito do cidadão à liberdade e o reconhecimento da independência do magistrado”.

Mas nem por isso deve-se excluir o juiz da fiscalização pelo corpo social, insiste: “O cidadão tem direito a um governo honesto, tem o direito inquestionável de ter administradores íntegros, legisladores probos e juízes incorruptíveis”.

Para reforçar a tese de que a fiscalização externa não ofende a independência dos corpos judiciários, Celso de Mello lembra que ela que já existe no sistema constitucional brasileiro. “Quando o Tribunal de Contas fiscaliza os gastos, inclusive do STF; quando o Legislativo faz o controle financeiro, estamos sendo fiscalizados; quando o Ministério Público, pelo que estabelece o artigo 129, inciso II, exerce sua competência, estamos diante de fiscalização externa. Então, a pergunta que fica é: ´Quem tem medo da fiscalização externa?`”.

Essa fiscalização tanto não compromete o índice de necessária independência dos magistrados que os juízes do STF estão expostos ao crivo mais radical: “Por denúncia popular, feita por qualquer eleitor, os ministros do STF podem ser julgados por outro poder, o Senado, e podem ser destituídos, sendo considerados inabilitados para qualquer outra função”.

E nem por estarem sujeitos ao impeachment, insiste Celso de Mello, os ministros se sentem constrangidos ou limitados em sua função.

A Argentina deu exemplo, recentemente, ao regulamentar a emenda que criou o Conselho da Magistratura, integrado por juízes, deputados, senadores, advogados e professores de Direito. O Conselho tem ampla autonomia administrativa e pode processar e julgar desvios éticos.

Revista Consultor Jurídico, 14 de março de 1999.

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