Inexistem Criminosos

Inexistem Criminosos

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13 de março de 1999, 17h19

“Dominadores, vossa arrogância vos torna cruéis e sem piedade. Ela vos faz etnocêntricos, dogmáticos e fundamentalistas. Não percebeis que vos desumanizais a vós mesmos ? Reparai: onde chegais, fazeis vítimas de toda ordem por conta do caráter discriminador, proselitista e excludente de vossas atitudes e de vosso projeto cultural, religioso, político e econômico que impondes a todo mundo!”1

Transborda na literatura a paixão existente pelos ditos criminosos. Todos os agigantados escritores não se furtaram à experimentação de vivenciar seus sentimentos e angústias nas miseráveis folhas do conflito interior humano.

Não obstante, ausentando-se deste paradigma dramaturgo liricamente expresso pela arte, deparamo-nos com o realístico tratamento excludente destinado aos denominados, e, freqüentemente, fabricados “criminosos” em nossa sociedade.

Nenhum ser humano é “criminoso”, mas sim, ser humano. O princípio básico da criação humana é a possibilidade de mutação. Poder ser ex (ex-criminoso). Tal terminologia visa exteriotipá-lo, estigmatizá-lo, excluí-lo do meio social, por todo o sempre, como um desregrado permanente, uma enfermidade não mais passível de cura.

Nesta vertente, isento de qualquer resistência, surge Roberto Lyra, um dos maiores conhecedores da alma humana:

“A antítese – não há crimes, mas criminosos – constitui avanço sobre a tese – não há criminosos, mas crimes. É tempo de fixar a síntese – não há criminosos, mas homens”.2

O indivíduo – pessoa singularizada – ao praticar uma conduta discordante do ordenamento jurídico penal, não se torna criminoso, mas sim, autor de um fato tipificado como crime, e o será momentaneamente.

Aliás, esta é a inteligência de nossa legislação quando nega a reincidência vitalícia, determinando um lapso de tempo para o condenado ser considerado tecnicamente primário.

Na mesma esteira cerceadora, encontra-se a denominada “personalidade criminosa” – verdadeiro ingranzéu ressurgido pelo movimento da “lei e da ordem” -, sempre exposta nas sentenças como fator determinante à exasperação da pena.

Os caminhos do crime são tortuosos, díspares, resultado das carências particulares da alma humana, não se podendo, destarte, estabelecer fator determinante generalizado. O crime decorre da conjugação de fatores endógenos – adquiridos geneticamente – e exógenos – reflexos sociais -, inexistindo, consequentemente, fator absoluto pertencente a determinada classe ou raça humana. Procurar uma personalidade criminosa unívoca é esconder-se defronte da complexidade bio-psíquico-social do ser humano.

Cada ser humano no transcorrer da criação navegou por águas biologicamente diferentes (fator endógeno). E por mais que o rio (útero) fosse o mesmo, no caso de serem irmãos, suas águas, naquele momento, eram diferentes, formando, assim, um novo rio.

Ao desaguar, cada um de nós, já respaldado geneticamente, caminhou seu próprio trilhar, foi sendo, no trajeto, formando-se pelas influências sociais (fatores exógenos), lapidando a sua célula narcísica de acordo com as oportunidades que tivera em sua vida. Resulta, disto, a originalidade da obra divina.

É tempo de recordar o indomável Rui Barbosa:

“Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, o traço da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluído, os argueiros do mesmo pé, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros do céu, até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até os aljôfares do rocio na relva dos prados”.3

Ora, admite-se que não há no universo duas impressões datiloscópicas idênticas e continua-se desprezando a existência de características próprias na personalidade humana.

Como abrilhanta Roberto Lyra:

“Não há ‘personalidade de criminoso’ (…) Há a personalidade desse ou daquele autor de crime. Procura-se o criminoso e encontra-se o homem mesmo, sob a ação externa na personalidade ou a despersonalização pela ação externa. A própria palavra – personalidade – induz a peculiaridades”.4

Esta aglomeração de almas tem como escopo refletir para a sociedade uma visão de marginalidade personalizada, circunscrita na figura do autor do fato tipificado como crime, e não como reflexo de fatores múltiplos sociais.

O crime, neste espectro, resulta do homem, enquanto existência orgânica e não social. O crime é compreendido sob o ponto de vista personificado, como vontade exclusiva do seu autor.

E como é curial não existe célula sozinha. Ela é parte de um tecido, que é parte de um órgão, que é parte de um organismo, que é parte de um nicho ecológico, que é parte de um ecossistema, que é parte do planeta Terra, que é parte do Sistema Solar, que é parte de uma galáxia, que é parte do Cosmos, que é uma das expressões do Mistério ou de Deus.5

Aquele paradigma individualizador faz com que se transfira a discussão resolutiva da criminalidade para a expurgação daquele ser maléfico de nosso meio, afastando qualquer embate social a respeito das causas condutoras ao crime, que se encontram, em quantificação considerável, presentes no próprio Estado e na classe detentora do poder.

Substituímos o estudo da opressão social pela negação dos direitos humanos, as condições básicas para a formação do indivíduo pela pena de morte, e a recuperação pela segregação.

Aliás, fora pela teoria do individualismo que outrora procurou-se estabelecer um estudo científico-explicativo do crime. Porém, contemporaneamente utiliza-se a pseudo teoria bioantropológica para afastar o ser humano do seu habitat social, desviando as verdadeiras aguadouras do crime.

O crime repercute negativamente no meio social, afligindo e desestabilizando os seus integrantes, que buscam no Estado – legítimo garantidor da paz – a solução para findar com a insegurança existente. O Estado, objetivando a mantença da estabilidade e do status quo da classe dominante, ausenta-se do discurso das causas criminais – o que necessariamente faria trazer à baila o seu atuar omissivo, projetando criminosos, marginais e facínoras biológicos -, transferindo a revolta “sociedade-estado” para “sociedade-indivíduo”, isentando-se de qualquer participação na socialização do denominado criminoso.

Este atuar segregador estatal, violador do princípio da dignidade humana (art. 1º, inc. III CR), não possui vestígios de originalidade neste encerrar de luzes do século XX. Trata-se, em verdade, de uma forma de colonização que se assenta no interregno da história da humanidade.

Basta-nos transcorrer os olhos pelos processos de colonização para percebermos que os colonizadores ofuscavam a violência de suas conquistas depredando a dignidade dos seus colonizados, qualificando-os como seres inferiores, ignorantes, bárbaros, razão pela qual justificava-se o seu atuar dominador.

Outrora, buscavam através deste processo a dominação de um povo, em busca de seus territórios. Hodiernamente, transferem o mecanismo dominador à classes que se incompatibilizam com os mandamentos da ordem estabelecida.

Neste mesmo diapasão, estrito sentido, repousa os dizeres de um jurado, retratado na obra cinematográfica 12 angry men:

“Aquela gente nasceu para mentir. Eles são assim, nenhuma pessoa inteligente pode negar. Não conhecem a verdade ! São diferentes. Pensam diferente, agem diferente e não precisam de motivo para matar ! É verdade, todos sabem ! (…) Olhem, não os culpo. Eles são assim de natureza. São violentos, e a vida humana não tem muito valor para eles ! Reproduzem-se feito animais ! Conheço alguns decentes, mas são a exceção ! Nenhum deles, nenhum presta ! nenhum deles ! Ouviram ? Vamos pegá-lo antes que a raça dele nos pegue. Estou me lixando para a lei ! Para que me importar ?”6

Vejamos a “colonização do criminoso” – emite-se à sociedade sua imagem como desregrado do sistema, ser inferior, diferente, que, possuidor do livre arbítrio, escolheu o percurso da criminalidade. Estas informações – corroboradas pela difamação real e unipresente exercida – propagam-se na imaginação dos receptores. Faz-se mister retroceder para recordar que a imaginação é formidável provedora do real e corre solta pelas ruas e pelo correio. Não tem o menor bom senso, e não se lhe é impossível indicar o caminho da verdade. Nisso reside seu encanto, e seu perigo. Ela ilude e seduz.7

Destarte, já influenciada, ou melhor, seduzida pela separação dos seres, esta sociedade “transfere” ao Estado o poder de extirpar, definitivamente, estes indivíduos do seu convívio. Aqueles que não se coadunam com os anseios da classe dominante, são colonizados (presos), não mais interferindo em seus trajetos verdejantes.

Neste paradigma discriminador, os homens dividem-se em bons e maus, pretos e brancos, ricos e miseráveis, e esta seleção decorre da estigmatização exercida, dentre outros métodos, através da nomenclatura desvirtuante.

Como leciona Louk Hulsman, é preciso mudar a linguagem. Não conseguiremos superar a lógica do sistema penal, se não rejeitarmos o vocabulário que a sustenta. As palavras crime, criminoso, criminalidade, política criminal etc… pertencem ao dialeto penal, refletindo-os a priori do sistema punitivo estatal. O acontecimento qualificado como ‘crime’, desde o início separado de seu contexto, retirado da rede real de interações individuais e coletivas, pressupõe um ator culpável; o homem presumidamente ‘criminoso’, considerado como pertencente ao mundo dos ‘maus’, já está antecipadamente proscrito…8

Em prosseguimento, demonstra-nos a importância na utilização das palavras, afirmando que todo mundo sabe o quanto muda interiormente o status social de uma pessoa que não é mais uma serviçal, mas uma empregada doméstica, ou que deixa de ser uma concubina para se tornar companheira. Não é menos verdade que, ainda quando utilizadas num contexto que se pretende científico, palavras como criminologia, sociologia criminal, ciência criminal, etc… estão desagradavelmente ligadas aos conceitos discriminatórios e inconscientemente aceitos do sistema penal…9

Obviamente, não se trata de simples mudança terminológica, mas sobretudo, de se impor uma libertação de consciência à sociedade que vive obstaculada pela insegurança social. Necessitamos exacerbar o valor liberdade, salvaguardando, consequentemente, as camadas mais sacrificadas neste sistema penal colonialista, honrando, destarte, as diretrizes constitucionais desta terra pátria e, principalmente, os inúmeros “garantistas” que insculpiram nosso Estado de Direito.

“Quando nos falam de homens de cujos ataques o Estado nos defende, subentende-se que se trata de criminosos. Neste caso, sabemos que não se trata de seres extraordinários, de lobos entre ovelhas, mas sim de homens como nós mesmos, tão renitentes em cometer crimes como em sofrê-los” (Leon Tolstoi, A Insubmissão)

Notas:

1 – Leonardo Boff, A águia e a galinha. Uma metáfora da condição humana, 3ªed., 1997, p.21.

2 – Roberto Lyra, Direito Penal Científico. 1974, p. 178.

3 – Ob. cit., pág. 181.

4 – Ob. cit., pág. 179.

5 – Leonardo Boff, Ob. cit., pág. 73.

6 – 12 homens e uma sentença (Brasil) – Metro-Goldwin-Mayer, 1997.

7 – Jean d’Ormesson, Quase nada sobre quase tudo, (Presque rien sur presque tout) 1925, págs. 173/174.

8 – Penas Perdidas, o sistema penal em questão, 1ªed., 1993, p. 95/96.

9 – Ob. cit., pág. 96.

Revista Consultor Jurídico, 13 de março de 1999.

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