STF sob novo comando

Guinada no STF: ministro Carlos Velloso toma posse.

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27 de maio de 1999, 0h00

A principal meta do novo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Carlos Velloso, é retomar com firmeza a defesa da magistratura brasileira.

Ele assumiu vocalizando o sentimento de irritação de seus colegas contra as posições assumidas pelo seu antecessor, Celso de Mello – que voltou-se vigorosamente em seu mandato contra os interesses corporativos da classe.

Em seu discurso de posse, claro e direto, Velloso defendeu o efeito vinculante que obrigaria todos os juízes do país a decidir de acordo com as súmulas do STF. A subordinação, afirmou, poderia ser estendida a todos os tribunais superiores.

Leia a íntegra do discurso do novo presidente do STF, ministro Carlos Velloso

“Este é um momento excepcional de minha vida. Volto ao passado e, nas dobras do tempo, deparo com o jovem estudante mal saído da adolescência que, visitando o Rio de Janeiro, quis conhecer o Supremo Tribunal, Casa que o seu pai, juiz do interior de Minas, ensinara a admirar. Todavia, não vestido convenientemente, a sua entrada no templo estava vedada. Mas o moço não se conformou e disse ao guarda que lhe barrava o ingresso, que viera de longe para conhecer o Supremo Tribunal. O homem se comoveu, de certa forma tal como ocorrido no episódio do guarda do estádio que Ortega Y Gasset se utilizou para exemplificar, em concreto, a tese de que a lógica do Direito é a lógica do razoável, e mandou que eu fosse pela escada principal e, no seu topo, à direita, veria eu o Plenário, onde os ministros estavam reunidos, em sessão. Mas se algum deles o vir, vou expulsá-lo daqui, acrescentou. O bom homem tornara-se meu cúmplice na transgressão do regulamento vigente até hoje. O guarda de Ortega Y Gasset fizera coisa semelhante e passara à história do Direito. No topo das escadas, pude ver o Supremo Tribunal reunido. Queria ficar um pouco mais, o coração batendo forte. O policial, entretanto, mandou-me embora. E foi assim o meu primeiro encontro com esta Casa. Cerca de quarenta e cinco anos após, depositário da confiança dos meus pares, sou investido na presidência da Casa que Levi Carneiro considerava ser “a jóia das instituições republicanas.

Procurarei, eminentes Colegas, não desmerecer a confiança que em mim depositaram. Serei o intérprete da vontade da Casa, respeitando e fazendo respeitar as suas tradições gloriosas, cujo comando recebo das mãos honradas do Ministro Celso de Mello, dos maiores juízes do Supremo Tribunal, que respeitamos e estimamos, e de cujos conselhos jamais prescindirei.

Na Suprema Corte norte-americana, modelo do Supremo Tribunal, que se faz representada nesta cerimônia pelo Juiz Peter Messitte, representante pessoal do “Chief-Justice” William Rehnquist, os juízes debatem à exaustão as questões. As discussões são vivas e são comuns as divergências. Mas a divergência, entre juízes, escreveu o “Justice” William Douglas, o grande liberal, “é tão inerente ao caráter da democracia quanto a própria liberdade de palavra”, e “se os juízes forem fiéis às suas responsabilidades e tradições, não hesitarão em falar franca e claramente sobre as grandes questões que lhes são submetidas“. Da mesma forma, os Juízes do Supremo Tribunal, registrei no meu livro “Temas de Direito Público”, jamais hesitam em expressar, claramente, suas posições sobre as questões que são aqui debatidas, sejam elas divergentes ou não da maioria. Todavia, lá como cá, predomina a compreensão, o cavalheirismo, o espírito de fraternidade. Ao cabo de cada sessão nos damos as mãos, certos de que, ombro a ombro, contribuímos para o aperfeiçoamento da ordem jurídica brasileira, para a felicidade do nosso povo.

É assim esta Casa, é desta forma que trabalham os ministros de cuja confiança sou depositário e que, já registrei, procurarei não desmerecer.

Na sessão em que os meus eminentes pares me elegeram para o cargo em que ora sou empossado, expressei a minha divisa, a minha bandeira, na chefia do Poder Judiciário nacional. Procurarei, com a ajuda dos meus eminentes colegas, realizar o ideal da minha vida, pelo qual venho pugnando há mais de quatro décadas: que o Judiciário brasileiro seja cada vez mais forte, mais independente, mais respeitado, um Judiciário em que – busco no pensamento do inesquecível Ministro Luís Gallotti a inspiração – os seus juízes possam ter apenas um medo, “o medo de ter medo“, ou o medo “de faltar ao nosso dever.”

Afirmam que o Judiciário está em crise. Mas a crise parece ser um fenômeno nacional. A economia tem vivido momentos de crise, a previdência social também tem a sua crise, o mesmo ocorre com a universidade; o Legislativo e o Executivo não fogem à regra. Então, se o Judiciário não tivesse os seus problemas, as suas mazelas, não seria brasileiro. Acontece, e isto é preciso reconhecer e proclamar, que as mazelas da Justiça são menores do que se apregoam.


Forçoso é reconhecer que os nossos juízes são, na sua imensa maioria, homens honestos, competentes, homens dignos, que ingressaram na carreira pelo critério do mérito, mediante aprovação em concursos públicos de provas e títulos, concursos duríssimos. Os juízes, tenho repetido, não são anjos, são homens. Por isso, um ou outro se corrompe, um ou outro não honra a toga. Certo é que, com observância de princípios constitucionais tradicionais, vigentes aqui e nos países civilizados, sempre num devido processo legal, os maus juízes vêm sendo punidos, pelo próprio Judiciário.

A crise da Justiça brasileira não será solucionada com a criação de novos tribunais. Falar, por exemplo, na criação de uma Corte Constitucional, nos moldes das Cortes Constitucionais européias, é um contra-senso. Os europeus estão, em termos de controle de constitucionalidade, na metade do caminho. Nós praticamos, além do controle concentrado, desde 1965, o controle difuso, este a partir da República. O que é preciso fazer é retirar do Supremo Tribunal competência de direito comum, a fim de que possa a nossa Corte Constitucional debruçar-se sobre os magnos problemas constitucionais que vêm a sua apreciação no recurso extraordinário e nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas declaratórias de constitucionalidade.

Numa época em que cada vez mais há especialização do direito, falar na extinção da Justiça do Trabalho, ou na extinção do seu Tribunal Superior, é outro contra-senso. A extinção do TST passando os recursos de revista ao STJ, simplesmente exigirá a especialização, naquela Corte, de mais de uma Seção. É dizer, desmancharíamos o que está pronto para fazer tudo de novo. Precisamos, sim, aperfeiçoar a prestação jurisdicional trabalhista. Por exemplo: a representação classista não mais se justifica; Tribunais Regionais do Trabalho podem e devem ser extintos, voltando-se ao sistema da regionalização; e os recursos processuais devem ser reduzidos.

Não há falar, também, em extinção da Justiça Militar. Ela tem a sua razão de ser. As corporações militares assentam-se na hierarquia e na disciplina. Se claudicar a disciplina, aquelas corporações podem se transformar em bandos armados. A Justiça Militar deve julgar, com rapidez e com observância de peculiaridades inerentes à disciplina e à hierarquia militares, os crimes essencialmente militares. É claro que o conceito de crime militar deve ser aperfeiçoado, em termos científicos. De outro lado, o número dos juízes dos tribunais militares, inclusive do Superior Tribunal Militar, pode ser reduzido, tendo em vista o número de processos que são ali julgados.

Na verdade, o grande mal da justiça brasileira, o que vem sendo revelado em pesquisas de opinião, é a morosidade, a lentidão que, muita vez, leva à ineficácia da prestação jurisdicional.

São várias as causas dessa lentidão. A primeira delas é o crescente aumento do número de ações, uma verdadeira explosão de processos, que decorre do fato de que, à medida em que se acentua a cidadania, as pessoas procuram mais os tribunais. Ademais, a Constituição de 1988, Constituição democrática, quer que os indivíduos fiscalizem a res publica, efetivando-se essa fiscalização mediante o aforamento de medidas judiciais. Foram reconhecidos, em nível constitucional, os direitos de 3ª geração, os interesses difusos e coletivos. O número de ações, pois, cresce a cada dia. De outro lado, o apoio administrativo aos juízes de 1º grau costuma não ser satisfatório, o número de juízes de 1º grau é deficiente e há, ademais, déficit de juízes, já que os concursos não conseguem preencher todas as vagas existentes. Finalmente, a causa que me parece principal: o formalismo excessivo das leis processuais e o sistema de recursos, que me parece irracional.

Quais seriam as soluções?

O efeito vinculante, já existente, expressamente, para as decisões proferidas nas ações declaratórias de constitucionalidade, acabaria com a massa de processos repetidos. O Supremo Tribunal já recebeu, neste ano, perto de 19.000 processos. Dessa massa de processos, 80 a 85% são casos repetidos. É dizer, o Supremo Tribunal decide uma questão de direito mil vezes. O efeito vinculante seria da súmula da jurisprudência, aprovada mediante o voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal. Ela poderia ser estendida ao Superior Tribunal de Justiça, ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Tribunal Superior do Trabalho.

O efeito vinculante vincularia, sobretudo, a administração pública e as grandes corporações, campeãs dos recursos repetidos. Ao juiz, pouco interessaria a súmula vinculante, dado que a imensa maioria destes decidem de conformidade com a jurisprudência dominante.

As leis processuais precisam ser simplificadas e o sistema de recursos racionalizado. É preciso, por exemplo, impor ônus na sucumbência recursal. Recursos podem ser suprimidos e recursos interpostos de decisões não terminativas devem ser julgados quando do julgamento do recurso da decisão final. A sentença deve ter caráter mandamental. É dizer, precisamos acabar com a ação de execução. Tudo deve ser feito numa só fase, a denominada fase de conhecimento. Não é possível que, terminada a ação, após uma série de percalços, comece tudo de novo.


Os juízes federais e os juízes de Varas de Fazenda estão sendo transformados em cobradores de tributos. A cobrança deve ser feita pela Fazenda Pública, extrajudicialmente. No caso de o devedor contestar o débito, os autos seriam remetidos à Justiça, a fim de que esta realize a sua exata missão, que é a de fazer valer a vontade concreta da lei.

O recurso constitucional é outra medida que me parece importante. Existindo controvérsia a respeito de determinado tema constitucional, que vem sendo debatido em Juizados ou Tribunais, o juiz ou o tribunal, a requerimento do Procurador-Geral da República, ou do Procurador-Geral de Justiça, poderia, paralisando o feito, remeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal, para decisão. Teríamos, de uma certa forma, o que, no Tribunal Constitucional alemão, é denominado de controle concentrado de normas em concreto.

É hora de pensarmos na argüição de relevância. O Supremo Tribunal e os Tribunais Superiores devem julgar questões que interessam a milhões de brasileiros e não a meia dúzia de pessoas. Esta não é uma solução artificial, registrou Victor Nunes Leal, em 1965, mas solução inspirada na “experiência da Corte Suprema dos Estados Unidos, consoante a reforma ali realizada, em 1925, por sugestão dos próprios Ministros“. Reporto-me à proposta do Supremo Tribunal, de 1965, formulada pela Comissão constituída dos Ministros Luis Gallotti, Cândido Mota e Victor Nunes Leal, na presidência do Ministro Ribeiro da Costa.

Relativamente aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade deve a Constituição prever a possibilidade de o Supremo Tribunal emprestar efeito ex tunc ou ex nunc a essa declaração, tal como ocorre com o Tribunal Constitucional de Portugal (Constituição de Portugal, art. 282, 4).

É preciso conferir ao juiz de 1º grau o seu verdadeiro valor. É ele o juiz que vive os fatos da causa, a realidade da causa. Cerca de 30 a 40% das demandas podem ser decididas, em definitivo, quanto à matéria de fato, no 1º grau. O recurso, nessas causas, a partir daí, seria, então, puramente jurídico: ofensa à lei.

Os Juizados especiais, que aproximam a Justiça do povo, devem ser estimulados.

Finalmente, temos que pensar, seriamente, no controle de qualidade da magistratura e dos serviços da Justiça. Isto importaria, em primeiro lugar, a criação de Escolas da Magistratura. O candidato, a juiz, tal como ocorre na França, na Espanha e em Portugal, prestaria concurso para a Escola. Ali, após dois anos, com aulas teóricas e práticas, estágios junto a tribunais e a órgãos públicos, se concluísse com aproveitamento o curso, seria declarado juiz.

Numa outra perspectiva, o controle de qualidade seria exercido pelo Conselho Nacional da Magistratura, presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal e integrado por ministros dos Tribunais Superiores, por desembargadores dos Tribunais de Justiça, por representantes dos Regionais Federais e do Trabalho – um de cada – por juízes de 1º grau e por dois advogados indicados em lista tríplice pelo Conselho Federal da OAB e nomeados pelo Presidente do Supremo Tribunal. O Procurador-Geral da República oficiaria, como fiscal da lei, junto ao Conselho. O órgão executivo deste seria o Corregedor-Geral, com poderes de investigação em qualquer órgão do Judiciário, da União ou dos Estados-membros. O Conselho teria, dentre outras competências, a de expedir normas a respeito da remuneração de magistrados e servidores e, no que toca ao Judiciário da União, elaborar e executar o orçamento. O Conselho Nacional da Magistratura teria semelhança com o Centro Judicial do Judiciário federal norte-americano, que se incumbe da administração da Justiça naquele país.

Meus Senhores. Não apresento soluções prontas. Ponho em mesa, para debate, as idéias ora expostas. Tal como proclamou o Ministro Sepúlveda Pertence, no discurso de sua posse nesta cátedra, é preciso repensar a Justiça. Todavia, repito as palavras de S.Exa., “só há um ponto fora da discussão possível para nós: o da independência do Poder Judiciário, da qual emergem, afora a liberdade de julgar, os atributos fundamentais do seu auto-governo, que visam a assegurá-la concretamente e só se podem sujeitar aos limites ditados pelos freios e contrapesos do regime constitucional intocável da separação dos poderes“.

É hora de encerrar este discurso que foi bem mais longo do que esperava.

Agradecemos, o Ministro Marco Aurélio e eu, as belas palavras com que nos honraram e sensibilizaram o eminente Ministro Octavio Gallotti, de estirpe notável, a quem aprendi a admirar no convívio diário, o douto Procurador-Geral da República, Professor Geraldo Brindeiro, constitucionalista de escol, e o ilustre e caríssimo Presidente do Conselho Federal da OAB, Dr. Reginaldo Oscar de Castro, autêntico representante desses homens altivos, que são os advogados, que dão vida ao direito e que são os juízes dos juízes.

Permitam-me, Senhores, ao fim e ao cabo, evoque eu a memória de meu pai, o Juiz Achilles Teixeira Velloso, cujo exemplo me fez juiz. Que eu fale, agradecido, de sua grande companheira, minha mãe, Maria Olga da Silva Velloso. E que deixe público, também, o meu agradecimento e o meu grande amor à minha mulher, Maria Ângela Penna Velloso, aos meus filhos, aos meus genros e noras, e aos meus netos, meus últimos amores.

E que, num devaneio, eu me transporte ao meu Estado-natal, a minha Minas, a minha Minas libertária, que Tancredo proclamou que o seu segundo nome é a liberdade, onde nasci e me fiz, e em cujas montanhas misteriosas e em cuja gente, que, segundo Guimarães Rosa, “traz mais individualidade que personalidade” e que “acha que o importante é ser, e não parecer, não aceitando cavaleiro por argueiro nem cobrindo os fatos com aparatos”, e que “sabe que agitar-se não é agir“, vou buscar inspiração e ajuda nos momentos de dificuldade.

Reiteramos a nossa profissão de fé no Judiciário brasileiro e a nossa firme determinação de fazer, junto com a comunidade jurídica nacional, com que esse Judiciário seja cada vez mais forte, mais independente, mais respeitado.”

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