Não à torre de marfim

Presidente da OAB ataca a

Autor

27 de maio de 1999, 0h00

A maior fonte dos problemas do Judiciário é a “síndrome de assepsia”, que o distancia da realidade social vivida pelos brasileiros. Essa afirmação foi feita pelo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Reginaldo de Castro, na posse do novo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Carlos Velloso.

Castro também chamou a atenção dos parlamentares, para que a reforma do Judiciário seja tratada em regime de urgência. Para o presidente da OAB, a sociedade deve, não só acompanhar, mas influenciar nas mudanças que precisam ser feitas na Justiça.

Leia a íntegra do discurso de Reginaldo de Castro na posse do novo presidente do STF

É com grande honra e dentro das melhores expectativas de uma convivência democrática e sobretudo profícua que a Ordem dos Advogados do Brasil participa deste ato solene de posse do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Carlos Mário Velloso, bem como de seu vice-presidente, Ministro Marco Aurélio Mello.

Cabe-nos, magistrados e advogados, principais protagonistas da cena judiciária, o dever de estabelecer permanente sintonia e compreensão, tendo em vista o bem comum e o interesse público, sobretudo neste momento de tantas e tão intensas transformações na vida política, econômica e institucional do país.

O processo de aprimoramento democrático que estamos a experimentar desde o fim do regime militar, tem-se mostrado bem mais complexo em seus desafios e desdobramentos que a luta anterior, contra o arbítrio.

Naquela ocasião, tínhamos um adversário bem definido e uma meta nítida a conquistar. Queríamos o restabelecimento do estado democrático de direito e o fim do regime de exceção.

Hoje, nosso desafio não é mais a conquista da liberdade, mas algo bem mais sofisticado: dar a essa liberdade conquistada conteúdo social, ético e moral. Para que isso aconteça, é preciso aprimorar as instituições e os Poderes da República, torná-los eficazes e transparentes, sob efetivo controle da sociedade.

E é preciso que a sociedade civil acompanhe e influencie esse processo. Não pode ser mero agente passivo, sob a tutela de lideranças políticas ou de interesses meramente corporativos.

Através de suas entidades organizadas – e a Ordem Advogados Brasil é sem dúvida uma dentre as mais experientes e representativas -, a sociedade brasileira precisa interferir e ser ouvida nos debates, na discussão das reformas, no processo de aprimoramento das instituições, sabê-las efetivamente voltadas para o cumprimento de seus deveres, à altura da missão que lhes é atribuída.

O estado democrático de direito é, sem dúvida, uma conquista fundamental em nosso processo de evolução política. Mas não é um fim em si mesmo, senão ponto de partida para a construção de uma civilização digna desse nome, em que os fundamentos básicos e elementares da cidadania – aqueles que já estavam estabelecidos há mais de 200 anos pela Revolução Francesa – sejam incorporados ao cotidiano dos brasileiros.

Quando refletimos sobre nossos deveres institucionais, entre os quais avulta a conquista efetiva da cidadania, constatamos que ainda temos muito a caminhar. Estamos convencidos, porém, que esse movimento já se iniciou – e é irreversível. A sociedade civil brasileira, em que pesem todos os problemas e limitações que ainda enfrenta, é hoje bem mais madura e consciente de seus deveres e direitos. Apesar disso, há sinais preocupantes, como os revelados por recente pesquisa elaborada com a juventude do Rio de Janeiro, segundo a qual a maioria questiona a eficácia do regime democrático, optando claramente por soluções autoritárias.

Não tenho dúvida, porém, de que a partida já foi dada. Toda a confusão aparente de nosso processo político atual, com suas contradições e perplexidades, insere-se nesse movimento evolutivo, de construção de uma sociedade melhor. Dentro dele, e com o destaque indiscutível que lhe cabe no cenário institucional, está o Poder Judiciário.

Dos três Poderes da República, é o que detém as atribuições mais proeminentes no nosso sistema político-institucional, pois além de exercer a mediação sobre os demais, cabe-lhe de igual modo o papel de guardião e intérprete da Constituição e das leis. Bastam essas prerrogativas para situá-lo numa posição incontrastável no cenário institucional do país.

E é essa posição singular que, paradoxalmente, realça suas limitações e fragilidades. Não por acaso, a demanda por reformas estruturais no Judiciário é mais forte e mais antiga exatamente dentro da magistratura e da advocacia. Somos nós, advogados e magistrados, protagonistas principais deste cenário, os mais atingidos pelo anacronismo estrutural do Poder Judiciário brasileiro.

E a responsabilidade – moral, social e política – que nos cabe, nesta questão, é intransferível e por demais grandiosa. A ineficiência da Justiça alimenta a impunidade, que, por sua vez, é o combustível do descrédito das instituições. Quando a sociedade descrê de suas instituições – e sobretudo quando descrê da Justiça -, rompe-se a linha divisória entre ordem e caos.

Como a demanda por justiça supera, neste momento, em muito, a capacidade estrutural do Judiciário, predomina na sociedade brasileira o sentimento de impunidade, não raro convertido em impressão de ineficiência e ineficácia.

Esse quadro de desalento coletivo favorece as soluções alternativas que, por serem fronteiriças, podem resultar em graves riscos para ordem constitucional, além de permitir à parcela menos politizada da sociedade a idéia de que é possível absolver ou condenar fora do âmbito do Poder Judiciário e à revelia dos ritos princípios inerentes ao devido processo legal.

E o perigo aí está.

Os regimes de exceção se servem, com freqüência, de atalhos processuais para fazer justiça com as próprias mãos. Começam por aplacar o inconformismo popular, para, na seqüência, instalar o regime da injustiça plena, que, sem qualquer exceção à regra, caracteriza os regimes autoritários. Basta ver o que nos aconteceu a partir de 1964.

Ou, para mencionar exemplo mais recente e próximo a nós, o que aconteceu no início da década no Peru, de Alberto Fujimori.

Daí a importância de se politizar cada vez mais a sociedade. Quanto mais consciente ela for, menor a chance de triunfo das ações que ultrapassem os limites da ordem jurídica. Mas de nada valerá o esforço se não tivermos, juízes e jurisdicionados, governantes e governados, um Poder Judiciário adequado ao nosso tempo e que possa em prazo razoável solucionar os conflitos que são apresentados a seu julgamento.

Daí a importância e o caráter de urgência de que se reveste a reforma do Poder Judiciário, que tramita neste momento na Câmara dos Deputados.

É para ela que se voltam as atenções da advocacia brasileira, que anseia por uma Justiça moderna, funcional, transparente e acessível a toda a população. Com um Judiciário forte, à altura de seus desafios, o país aumenta sua capacidade de aperfeiçoar suas instituições e de promover a justiça social, objetivos fundamentais da nação brasileira consagrados no art. 3º de nossa Carta Política.

Registro, com satisfação, que, quanto a essa reforma, magistrados e advogados possuem numerosos pontos de convergência. Recentemente OAB e Associação dos Magistrados do Brasil remeteram à Comissão Especial da Câmara dos Deputados que examina a reforma do Judiciário suas respectivas propostas que, em alguns pontos, são consensuais. Dispenso-me de relacioná-los, posto que a imprensa já as divulgou e são do conhecimento geral.

Cumpre-me a essa altura frisar que, apesar de todos os problemas suscitados nesta manifestação, sou otimista quanto ao Brasil. Constato que os agentes do processo político-institucional estão cientes desses desafios e não continuarão a retardar sua solução. Muitas das causas que nos angustiam são históricas, herdadas de muitas e muitas gerações; outras são recentes, resultantes das profundas transformações que atingem todo o planeta, entre as quais a globalização das economias. Devemos ter o necessário e permanente empenho no sentido de, sem timidez, enfrentá-las com a grandeza e a criatividade que caracterizam nosso país, fazendo-o respeitado no concerto das nações não apenas pelas vantagens que a elas possa oferecer, mas pela intransigente preservação dos inalienáveis interesses nacionais.

Em nome dos advogados brasileiros, saúdo o ministro Carlos Mário Velloso, cujo saber jurídico, experiência profissional e profundo senso ético e democrático ajustam-se às necessidades e desafios da hora presente. Conheço Sua Excelência de longa data e posso testemunhar sobre seu apreço pela liberdade, expresso em memoráveis e corajosos votos contrários à censura e à apreensão de jornais e periódicos, ao tempo do regime militar, quando era ministro do extinto Tribunal Federal de Recursos.

Acompanhamos todos as posições que S. Exa. tem assumido nas discussões que envolvem a reforma do Poder Judiciário. E, pessoalmente, com elas me tranqüilizo, na medida em que revelam equilíbrio e sensibilidade em relação às profundas transformações políticas e sociais da vida contemporânea.

Não há mais hoje, às vésperas do século XXI, em plena era da informação, condições de imaginar instituições do Estado impermeáveis à vigilância da sociedade. Instituições sem transparência correm o risco de serem dominadas pelos que não têm a dimensão de seu papel. E isso é trágico.

A independência dos Poderes tem por meta servir ao povo e não ao próprio Poder – e essa evidência, nem sempre levada em conta, deve ser avaliada constantemente por todos nós, que militamos na vida pública.

Compartilho do ponto de vista do professor e jurista argentino Eugenio Raul Zaffaroni, que defende uma magistratura liberta da torre de marfim, despojada da síndrome de assepsia que historicamente a distancia da realidade social e constitui a fonte maior de seus problemas.

Saúdo igualmente o ministro Marco Aurélio Mello que assume a vice-presidência desta Suprema Corte. Sua Excelência tem-se revelado, ao longo de sua carreira, um magistrado de forte personalidade, além de estudioso atento da realidade brasileira. Com tais atributos, é natural que pague algumas vezes o ônus da incompreensão. Audácia, porém, não é defeito, mas qualidade de quem cultua a independência sem se alhear da realidade da qual emerge o fato jurídico a apreciar.

Recebam ambos, em nome da Ordem dos Advogados do Brasil, os mais sinceros e efusivos votos de êxito na empreitada que os aguarda. Que Deus os ilumine.

Muito obrigado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!