Método gramatical ou lingüisti

Um problema de hermenêutica jurídica

Autor

25 de maio de 1999, 0h00

O MÉTODO GRAMATICAL OU LINGUÍSTICO NA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Karla Ciarlini Rosado

I. INTRODUÇÃO

Se é certo que Longo e árduo é o caminho que conduz à aplicação do Direito, como registrou VICENTE RÁO em sua clássica obra “O Direito e a vida dos Direitos” . Mais certo é ainda, que para a consecução desse fim – qual seja a aplicação do Direito, imperioso que o intérprete lançe mão de métodos, ou seja, regras e processos especiais que iniciam-se com a análise direta do fato (diagnóstico do fato), sua qualificação perante o Direito (diagnóstico jurídico), a crítica formal e a crítica substancial da norma aplicável; para enfim chegar-se a interpretação normativa propriamente dita e no ápice do processo, à aplicação da norma ao caso concreto.

A interpretação é antes de mais nada uma atividade criadora de direito, que no dizer de CELSO RIBEIRO BASTOS, configura-se num processo no qual entra a vontade humana, onde o intérprete procura determinar o conteúdo exato de palavras e imputar um significado à norma. Nesse sentido, a interpretação é uma escolha entre múltiplas opções, fazendo-se sempre necessária por mais bem formuladas que sejam as prescrições legais. A atividade interpretativa busca sobretudo reconstruir o conteúdo normativo, explicitando a norma em concreto em face de determinado caso. Pode-se afirmar, ainda, que a interpretação é uma atividade destinada a expor o significado de uma expressão, mas pode ser também o resultado de tal atividade.

No presente estudo, nos ateremos à vasta e nebulosa problemática da interpretação das leis, mais precisamente ao método gramatical ou linguiístico, averbando desde já que poucas são as matérias de Direito, que como esta, apresentam tão grande variedade de doutrinas.

SAVIGNY, antes de 1814, já demonstrava preocupação com o significado textual da lei, interpretar era determinar o sentido expresso nas normas; daí surgiram as quatro técnicas:

” … a interpretação gramatical, que procurava o sentido vocabular da lei, a interpretação lógica, que visava ao seu sentido proposicional, a sistemática, que buscava o sentido global ou estrutural, e a histórica, que tentava atingir o sentido genético. “

Entretanto, é por demais difícil, senão impossível, expor acerca da interpretação literal sem, a contento, imiscuir-se nos métodos de interpretação lógica, histórica e sistemática. Pois, como asseverou o notável civilista NICOLA COVIELLO, “Os vários meios de interpretação só conduzem ao seu escopo quando operados harmonicamente entre si, e não tomados isoladamente. Deve rejeitar-se a distinção das várias espécies de interpretação em literal, lógica, história e sistemática. Toda interpretação deve fundar-se necessariamente e sempre, sobre as regras que fornam a palavra e sobre as do pensamento, já que a lei não é uma letra morta, mas tem um contexto espiritual; portanto, aquela deve ser ao mesmo tempo literal e lógica”

Dessa forma, os vários processos existem e reciprocamente se complementam, não subsiste hierarquia entre tais métodos, não se pode dizer que a interpretação gramatical prefere a lógica, ou que a histórica sobrepõe-se à sistemática – não há exclusão de uma, em detrimento de outra -, ao contrário, o processo é uno e incindível.

II. DA INTERPRETAÇÃO LITERAL OU GRAMATICAL

A priori, para apreender o sentido da lei, a interpretação busca reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e estilística, procura o sentido literal.

Poder-se-ia dizer, que a interpretação literal, gramatical ou filológica – como preferem denominar alguns -, corresponde ao estágio primeiro do processo interpretativo. Não restam dúvidas que é sobre a letra da lei e seu significado verbal que deve-se iniciar o processo, mas este é apenas o ponto de partida da atividade hermenêutica.

Se a princípio, acreditou-se que, para interpretar a lei, antes de mais nada, era necessário perquirir a vontade do legislador, daí por que o uso no Direito Romano da interpretação unicamente literal. Essa escola exegética cedeu espaço em virtude da própria dinâmica dos fatos sociais que interagem no campo do direito, bem como da evolução dos institutos, que exigiram a flexibilidade e o alcance que hoje nos ministram seus intérpretes.

No magistério de TERCIO SAMPAIO FERRAZ Jr., a questão da interpretação gramatical está indissoluvelmente arraigada nas questões léxicas, Parte-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para obter o correto significado da norma. Assim, dúvidas podem surgir quando a norma conecta substantivos e adjetivos ou usa pronomes relativos. Ao valer-se da língua natural , o legislador, está sujeito à equivocidades que, por não existirem nessas línguas regras de rigor (como na ciência), produzem perplexidades .


O elemento gramatical fornece o conteúdo possível da lei, mas seu resultado é impreciso, hipotético e incerto; todavia, é sobre essa insegura base que o intérprete depurará o sentido e a vontade do legislador.

Corroborando esse pensar, arrematou o precitado jurista:

“A letra da norma, assim, é apenas o ponto de partida da atividade hermenêutica. Como interpretar juridicamente é produzir uma paráfrase, a interpretação gramatical obriga o jurista a tomar consciência da letra da lei e estar atento às equivocidades proporcionadas pelo uso das línguas naturais i suas imperfeitas regras de conexão léxica”

Raras vezes, para não dizermos nunca, a interpretação literal equaciona o escorreito sentido da norma. Mesmo em casos desse jaez, urge submeter a norma aos demais métodos de interpretação para ratifica-la, ou amiúde , retifica-la, imprimindo-lhe seu real sentido, ou seja, aquele que melhor condiz com a vontade do legislador e a conjuntura sócio-econômica do Estado.

II.1 REGRAS NORTEADORAS DO PROCESSO GRAMATICAL OU FILOLÓGICO

Várias regras gramaticais são estipuladas no intuito de extrair o conteúdo das expressões legislativas. No entanto, como o presente estudo não se presta a aspirações exaurientes, quando muito a um perfunctório trabalho acerca desse relevantíssimo aspecto da hermenêutica, qual seja, a interpretação das leis, e mais especificamente, a interpretação das leis nessa fase embrionária.

O mestre Vicente Ráo, enumera como regras principais para o exame gramatical, as seguintes:

1º) As palavras não devem ser, nunca, examinadas isoladamente, mas em seu conjunto, e postas em confronto umas com as outras , consideradas como partes integrantes do texto; in civile est nisi tota lege perspecta una aliqua particula ejus judicare vel respondere (Celso L. 24, D.1, 3) ;

2º) se determinada palavra tem um sentido na linguagem comum e outro na linguagem jurídica, preferir-se-á este último, porque o Direito tem sua linguagem própria, que o legislador deve conhecer ;

3º) mas possível é que o legislador haja empregado a linguagem comum e não a do Direito, neste caso o exame da disposição, em seu todo, segundo a natureza jurídica da relação sobre a qual versa, revelará esta circunstância e determinará a adoção conseqüente do sentido comum do termo;

4º) as palavras, comuns ou jurídicas, também podem ter sido usadas com impropriedade, equivocidade ou imprecisão; e assim, sucedendo, cumpre ao intérprete demonstrar a existência desses vícios e restabelecer a natureza da relação jurídica contemplada.

SERPA LOPES , estatui outras regras para o processo de interpretação gramatical, assim compreendidas:

I

Deve-se Ter em consideração a colocação da norma, como por exemplo, uma disposição incluída no capítulo relativo à tutela, como indicativa de que se destina a regular essa forma de incapacidade, não se revestindo todavia essa regra, de caráter absoluto, pois que rubrica legi non est lex..

II

Havendo antinomia entre o sentido gramatical e os sentidos lógico, teleológico, histórico-evolutivo ou sistemático, o intérprete deve deixar de lado o sentido gramatical e verificar quando as outras várias interpretações divergirem, qual delas melhor se harmoniza com as exigências do bem comum.

III

O sentido da palavra deve ser tomado em conexão com o da lei, não só com o do contexto no qual figura a palavra, mas, ainda, com o de outras disposições sobre a matéria.

IV

Havendo palavras que apresentem vários sentidos literais deve o intérprete , em primeiro lugar, verificar qual desses sentidos literais se poderá harmonizar com os resultantes da interpretação lógica, teleológica, histórico-evlutiva e sistemática. Se nenhum dos sentidos gramaticais se harmonizar com qualquer dos segundos, estaremos no caso da regra II.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, já preconizava:

“EMENTA. HERMENÊUTICA. DISPOSITIVOS APARENTEMENTE ANTAGONICOS DE UMA MESMA LEI. SE POSSÍVEL, DEVE-SE OPTAR PELA INTERPRETAÇÃO QUE SE CONCILIA.” (RMS-15825/PE, RelatoR Ministro Lafayette de Andrada. Publicação DJ DATA-19-10-66)

Esses filigramas gramaticais, pontificam:

A um, a necessidade de que as palavras hão de ser entendidas no seu contexto, a lei deve ser entendida no seu todo, e não pela extração de fragmentos isolados, o que, sem embargo, desvirtuaria o seu comando abstrato.

A dois, a convicção de que no Direito existem algumas palavras que se revestem de um conteúdo técnico, diferente do seu significado na linguagem popular. Nesses casos, ante uma situação de dúvida, deve-se eleger a significação da técnica jurídica em detrimento da popular, pois subentende-se que o legislador preferiu a primeira.

A três, diante de situações contraditórias, deve-se recorrer aos demais métodos para conferir a segurança de uma interpretação consetânea com a vontade legislativa e com os primados basilares do sistema jurídico.


II.2 DA INAPLICABILIDADE DO BROCARDO “IN CLARIS CESSAT INTERPRETATIO”

O brocardo jurídico “in claris cessat interpretatio”, de origem medieval, representou o mais absoluto império da lei, no processo interpretativo. Sua origem e seu prestígio estavam ligados ao receio ao arbítrio do juiz e ao respeito religioso ao texto da lei, erigidos em dogmas do liberalismo revolucionário.

Preconizava-se que, quando a lei fosse clara, cuja leitura não mostrasse nenhuma obscuridade ou ambigüidade, não haveria necessidade de interpretação.

A doutina é uníssona quanto a não aplicabilidade da máxima, haja vista que tanto as leis reputadas claras quanto as dúbias comportam interpretação, como bem ressaltou a professora MARIA HELENA DINIZ.

Nesse sentido já se manifestava F. FERRARA :

“Mesmo quando o sentido é claro , não pode haver logo a segurança de que ele corresponde à vontade legislativa, pois é bem possível que as palavras sejam defeituosas ou imperfeitas (manchevole), que não produzam em extensão o conteúdo do princípio ou, pelo contrário, sejam demasiado gerais e façam entender um princípio mais alto do que o real, assim como o por último, não é excluído o emprego de termos errôneos que falseiem abertamente a vontade legislativa”.

Essa exegese, complementada pelo art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, que determina ao juiz atender aos fins sociais a que a disposição aplicável se destina e às exigências do bem comum, não estipulou discrímen entre lei clara e lei obscura .

Logo, ressai sobranceiro que o sobredito brocardo há muito não demonstra préstimo para a Ciência do Direito, e tão pouco se coaduna com os princípios basilares que regem o Ordenamento Jurídico Pátrio e norteiam a atividade jurisdicional.

III. INTERPRETAÇÃO LÓGICA OU RACIONAL

Não poderíamos, ao abordarmos aspectos relevantes da interpretação gramatical, deixar de tecer algumas considerações, mesmo que em apertada síntese, acerca da interpretação lógica e seus elementos integrativos ¾ racional, sistemático e histórico ¾ , vez que a interpretação gramatical e a lógica, se complementam para expressar a justa voz legislativa.

A interpretação lógica ou racional “remonta ao espírito da disposição, inferindo-o dos fatores racionais que a inspiram, da gênese histórica que a prende a leis anteriores, da conexão que a enlaça às outras normas e de todo o sistema”.

Pelo elemento racional, abstrai-se o escopo prático que a norma visa atingir e as circunstâncias históricas determinantes para a criação da lei. O elemento sistemático, a seu turno, preconiza que a norma surge dentro de um sistema de princípios e corolários, e sofre influxos desse sistema, compatibilizando sua individualidade com estes. Por fim, o elemento histórico assevera que a norma jurídica é o produto de uma lenta evolução, e que para a inteligência dum texto, mister se faz perquerir acerca da sua origem histórica.

À guiza de fechamento, compete-nos aclarar que somente da conjugação dos elementos supracitados, é que se extrai verdadeiro valor da norma jurídica.

IV. CONCLUSÃO

A função primordial do Estado moderno é a pacificação social, possibilitando a convivência harmônica entre os homens, atribuindo-se a si a exclusividade na solução dos conflitos de interesses, como tentativa de realização de Justiça através de um sistema de normas imperativo-atributivas.

A lei, como fonte principal do direito, aquiesce com vários sentidos e, vigorando indefinidamente, acena com a possibilidade de ter mais de uma interpretação ao longo dos tempos, desde que seja esta a cada tempo racional e visando unicamente o bem comum.

Pois como já dizia SÃO TOMAS DE AQUINO toda lei deve ser ordenada à salvaguarda comum dos homens. O fim da lei é o Bem Comum. Isidoro já dizia:

“Não é em vista de um interesse privado, mas da comum utilidade dos cidadãos que uma lei deve ser escrita” ( Etimologias, II, 10, PL 82, 131; V, 21, 82, 203).

É por isso que, a ciência do direito não pode prescindir de eficazes métodos de interpretação da lei, como pressupostos de sua justa e perfeita aplicação.

Mas o emprego exclusivo da interpretação gramatical ou filológica, estagnam e mumificam o sentido dos textos, impedindo sua adaptação às necessidades sociais, sempre mutáveis e sempre revestidas de modalidades novas .

Lúcida é a lição de FRANCESCO FERRARA , para quem “Entender uma lei, portanto, não é somente apreender de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as direções possíveis: Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem (17, Dig. 1,3).” (Interpretação e aplicação das leis, trad. Port. Do Prof. Manuel de Andrade, p.20).

Em sendo assim, o intérprete do direito não pode ficar preso à literalidade do comando normativo, é preciso sopesar os metódos de interpretação integrando-os e complementando-os para evitar os abusos e extremismos sob pena de cometer-se injustiças e desigualdades, pois como bem profetizou o Papa João Paulo II , a experiência da história resultou na formulação do axioma summum ius, summa iniuria : o sumo direito é a suma injustiça, pois a justiça não basta por si só e pode levar, até mesmo à negação e à própria ruína.

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