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MP inicia ação contra Ratinho

Continuação: MP inicia ação contra Ratinho

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4 de novembro de 1998, 23h00

2.3 – Na esteira do exposto, com certeza é que se deve realizar uma interpretação do texto constitucional no concernente à comunicação social, ou seja, o conteúdo dos arts. 220 e 221. Estes, de fato, se estabelecem a liberdade de expressão, criação, pensamento e informação, não admitem a indenidade quanto a controles, na medida em que submetem seu exercício a limites impostos pela própria Carta Constitucional. Anunciados estão, aliás, os lindes entre os quais os exercícios dessas liberdades devem se suster, como afinal se verifica do disposto no art. 221, IV, ou seja, o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Essa opinião, a propósito, é manifestada também pelo sempre inolvidável Prof. José Carlos Barbosa Moreira, para quem, realmente, o art. 220, da Constituição Federal, depois de estabelecer que a manifestação é livre e que não há censura, estabeleceu também que há necessidade de meios legais para a proteção à pessoa, à família e os defendam dos programas que contrariem as normas regulamentares . A propósito, também é importante colacionar a relevantíssima opinião do não menos expressivo Prof. Rodolfo de Camargo Mancuso , para quem há efetivamente um direito coletivo à uma programação de qualidade, que se encontra intrinsecamente ligada, aliás, ao respeito aos valores mencionados éticos e morais referidos pelo constituinte, entendendo ele, inclusive, que a regra traçada pelo art. 221, da C.F. é de eficácia plena, sem que se cogite de dificuldades quanto à interpretação do que sejam em substância os valores aludidos porque “seria preocupante a situação de um povo ou uma nação que não o soubesse”. Nessa medida ele enfatiza em suas considerações que o próprio texto constitucional, no que diz respeito ao art. 225, estabelece um direito ao meio-ambiente sadio e equilibrado, e também o direito à qualidade de vida, a qual, segundo entende, abarca sem dúvida o “direito a um entretenimento saudável, propiciado por uma boa programação televisiva . Não é à toa, pois não, que o art. 221, I da C.F. impõe que a programação das emissoras deverá dar primazia a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Daí porque conclui o prestigiado autor, que:

“Esse mínimo ético e esse padrão básico de qualidade não configuram mera recomendação do constituinte, se não que a todo cidadão brasileiro fica assegurado o interesse difuso, ou, se se quiser, o direito subjetivo público ou ainda a liberdade pública de usufruir de uma programação televisiva nos moldes do que se contém nos dispositivos constitucionais antes citados”.

Aliás, voltando ao Prof. José Carlos Barbosa Moreira , ele lembra que não há liberdade absoluta, esclarece que “o ordenamento jurídico constitui, tem que constituir sempre, a expressão de um compromisso entre solicitações divergentes de proteção a valores suscetíveis de contrapor-se uns aos outros”. Na esteira desse ponto de partida ele não somente reafirma a existência de um direito coletivo à programação de qualidade, como ainda anota que o órgão judicial tem, sim, até a possibilidade de proibir a exibição de programas afrontosos aos termos do art. 221, da Constituição Federal, uma vez bem interpretado o art. 11, da Lei da Ação Civil Pública , salientando, ademais disso, que nem mesmo o fenômeno da bipolaridade, vale dizer, o confronto com o virtual interesse coletivo daqueles que cultivam a “grossura, o voyeurismo” pode constituir obstáculo à tutela jurisdicional, porquanto o dispositivo constitucional sob exame justifica, por sua importância e preponderância, o sacrifício de qualquer outro interesse contraposto àquele por ele fixado.

Os doutrinadores mencionados têm, sim, razão, na medida em que hoje já se cogita dos chamados direitos fundamentais de quarta geração, retratados pelo Prof. Paulo Bonavides aqueles relativos à democracia, ao pluralismo e à participação, que compreendem um direito à informação correta e a uma vivência indene à contaminação da mídia manipuladora, enfim, um direito à qualidade de vida em toda sua extensão, da qual não se exclui, de fato, o direito a um entretenimento saudável na programação da mídia eletrônica.

2.4 – Impõe ressaltar, a propósito, que o controle necessário dos meios de comunicação de massa, especialmente aqueles que mantêm em sua programação shows como o aqui examinado, não significa, em hipótese alguma, forma de censura. Como consigna o Prof. Rodolfo de Camargo Mancuso , não existe liberdade pública absoluta ou incondicionada, de tal maneira que ao vedar a censura o constituinte não abdicou da instituição de formas de controle, tanto que condicionou a liberdade de expressão, que, afinal, deve ser interpretada de modo a se permitir à sociedade a defesa de seus interesses frente àqueles que a desafiam. E na mesma toada, conforme dito anteriormente, se pronuncia o Prof. Barbosa Moreira, também negando o caráter absoluto da liberdade de expressão. Importa considerar que mesmo no direito comparado, outros países apresentam o mesmo nível de preocupação, o que determinou também a imposição de regramentos e limites à liberdade de expressão na televisão. Wolfgang Hoffmann-Riem, informa que o Tribunal Federal Constitucional Alemão tem entendido pela necessidade de normatização da matéria, sem qualquer significado de censura, fixado na idéia de que o regramento não vem coarctar a liberdade de expressão dos comunicadores, mas antes a estrutura, guarnecendo também, por outro lado, a liberdade dos telespectadores . E se trata de controle derivado diretamente das normas constitucionais. Na Itália, também, segundo informa Giampietro Mazzoleni , devido a um abuso dos meios de comunicação sobreveio uma legislação própria, desta década, na qual estabeleceram-se limites, com impedimento à programação que viesse afetar o respeito à dignidade humana, ou as representações abusivas de sexo ou violência. Essa matéria por lá é objeto de disciplina firme, e tanto quanto na Alemanha, inclusive no âmbito penal. A preocupação, assim, é recorrente em todos os cantos do mundo civilizado, havendo sempre uma disciplina jurídica sobre o assunto, mas com uma freqüente direção, qual seja, evitar que os meios de comunicação sejam instrumento de disseminação de sentimentos, idéias e práticas violentas, bem como impedir que sejam utilizados, em última análise, como meio de atentados à dignidade humana. No Brasil, aliás, conquanto não haja legislação específica para o assunto – providência que já não seria sem tempo -, os próprios responsáveis pelas empresas concessionárias desse serviço público, constituíram a ABERT-Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão, cujos associados, por iniciativa própria, e reconhecendo a necessidade de regulamentação do assunto, constituíram um “Código de Ética”, compromissando-se com a sociedade brasileira no sentido de “transmitir apenas o entretenimento sadio e as informações corretas”, objetivo referido também, e especificamente, no seu art. 5º O mesmo estatuto, concebido pela vontade autônoma dos empresários do setor, abomina nos arts. 7o, 8o, 9o e 10o a promiscuidade sexual, a exploração da boa-fé do público e a violência, podendo-se dizer que, malgrado unilateral, o ato jurídico em questão envolve os gestores dessas empresas com as obrigações que se impuseram, uma vez acatado por eles que apenas nessas condições estariam fazendo uso, dentro dos limites da função social da empresa, da concessão de serviço público que receberam. É certo que não fizeram previsão de reprimendas de maneira objetiva, mas não resta dúvida que no plano consuetudinário, pelo menos, as diretrizes normativas em foco apresentam-se como jurídicas.

2.5 – Torna-se obrigatório concluir, à vista disso, que o exercício a liberdade de expressão encontra limites, obstáculos nas normas de proteção à pessoa humana, que, como já mencionado anteriormente, já que indiscutível o princípio da intangibilidade da personalidade. Não somente isso, fica certo que a afronta a esse primado, ainda que sob o pretexto do exercício de uma liberdade pública, é intolerável perante a ordem jurídica posta, requisitando a intervenção judicial para as medidas corretivas , que afinal é o propósito maior da presente demanda.

3 – Os pedidos

3.1 – Reparação dos Danos Morais Coletivos

Não restam dúvidas, hoje, sobre o fato de que o aqui tratado “Programa do Ratinho”, com suas exposições freqüentes de pessoas simples em franca altercação e embate físico, assim como com a exposição de pessoas portadoras de deficiências, tem ocasionado um constrangimento social imensurável, despertando a indignação, o sofrimento de uma coletividade que conquistou direitos de alto porte – como é o caso dos Direitos Humanos Fundamentais – à custa de batalhas renhidas, petrificando-os, em conseqüência, no texto fundamental com a intenção de fazê-los eficazes e meritórios da atenção de todos, especialmente daqueles que na prestação de um serviço público deveriam não somente divulgá-los como cumpri-los retamente. Nessa conformidade, o fato da se permitir a existência de programas televisivos como o aqui mencionado representa, por si, um gravame quase insuportável para a cidadania, ferida de morte pela violação freqüente e amoralizada dos cânones sobre a qual ela se edificou. A ordem jurídica nestes tempos, felizmente, produziu remédios jurídicos eficazes para tais situações, dentre as quais a reparação aos danos morais, hoje de matiz constitucional (art. 5o, V e X), admitindo-se plenamente a possibilidade de que, inclusive, sejam passíveis de reparação os danos que tais quando atinjam a interesse coletivo ou difuso. A possibilidade, hoje legalizada com previsões específicas da Lei n.o 8078/90, Lei 7347/85, dentre outras, também vem sendo admitida em sede doutrinária e jurisprudencial. O Prof. Limongi Fança, por exemplo, assegura que o dano moral não somente aquele que afete a pessoa física ou jurídica, mas também aquele que afeta a coletividade . Assim também o Prof. Caros Calberto Bittar, em sua obra sobre o tema o admite. Frente a tanto, realmente, há que se verificar a importância da reparação do dano sob comentário, e de uma maneira que seja suficiente à repressão de condutas ofensivas ao Direito, sendo importante que há de se contemplar a proporcionalidade necessária entre as condições econômicas de quem tem o dever de reparar e a importância do bem jurídico ofendido. Dessa maneira, examinada com essa lente a matéria em causa, pede-se que, à vista das ofensas – comprovadas pelas fitas em vídeo que seguem a presente, além da documentação restante – relatadas, se arbitre o valor da reparação em R$ 35.000.000,00 (trinta e cinco milhões de reais ), quantia assim pretendida à vista da gravidade e dimensão nacional das ofensas. Tal valor guarda relação com o montante que transita em termos de verbas publicitárias e volume de receita dos acionados, sendo assim única quantia entendida suficiente para a reparação em foco.

De outra parte, ainda, e apenas alternativamente, com lastro no quanto dispõem os arts. 11, da Lei no 7347/85 e 461, do Código de Processo Civil, postula-se que, caso seja entendido por Vossa Excelência como mais consentâneo ou conveniente, que imponha aos acionados a obrigação de fazer, consistente na produção e exibição, pelo período de 24 meses, por trinta minutos, em dias alternados, e no horário do “Programa do Ratinho”, de programas informativos à comunidade sobre “Direitos Humanos”, “Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência”, “Direitos da Criança e do Adolescente” e “Direitos do Consumidor”, cujo roteiro deverá ser supervisionado pelas Comissões Estaduais respectivas – que representam a comunidade –, como forma alternativa e compensatória dos danos difusos ocasionados.

3.2 – Da Tutela Inibitória

Não se nega mais que hoje a ordem constitucional, no campo dos direitos individuais ou coletivos, impõe uma tutela consentânea com a natureza do direito envolvido – daí as chamadas tutelas diferenciadas -, tanto quanto impõe-se que ela seja oferecida de modo a condizer com a premência em se conter a possibilidade de lesão a direitos. Nesses termos, a chamada tutela inibitória, voltada a prevenção do ilícito, ainda que danos não se verifiquem, é algo imprescindível à efetividade do Direito, à materialização do acesso à Justiça. E ela encontra-se respaldada pelo texto constitucional (art. 5o, XXXV), tanto quanto pela legislação processual, notadamente os arts. 11, da Lei 7347/85 e 461, do Código de Processo Civil, na medida que ambos permitem que decisão de caráter mandamental, faça cessar a atividade nociva, ou, vale dizer, ilícita. À vista disso, cabe afirmar que duas condutas são sem dúvida ilícitas e intoleráveis:

a) o confronto físico e a discussão entre pessoas que ali se apresentam;

b) a exibição de pessoas portadoras de deficiências físicas.

Dessa maneira, requer-se a determinação para a emissora e o apresentador, da obrigação de abstenção de ditos comportamentos, sob pena de multa a ser estipulada no valor de R$ 100.00,00 (cem mil reais) nas hipóteses de desobediência.

Outrossim, à vista da prova farta do alegado e do juízo de certeza possivel sobre os fatos aqui mencionados, nos termos do art. 273, do Código de Processo Civil, postula-se a tutela antecipada no concernente a tal pedido, determinando-se desde logo, por via de liminar, a mencionada abstenção, haja vista o gravame da repetição incontida e os danos irreparáveis aos interesses coletivos em pauta.

Requer-se, assim, o recebimento da presente, determinando-se a citação dos acionados a fim de que respondam aos seus termos, protestando-se pela produção de provas por todos os meios permitidos, com a condenação de ambos ao final, nos termos ora propostos.

Atribui-se à causa o valor de R$ 35.000.000,00 (trinta e cinco milhões de reais).

São Paulo, 5 de novembro, de 1998

Clilton Guimarães dos Santos

Promotor de Justiça

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Bug do milênio

• Continuação:

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18 de maio de 1998, 0h00

Continuação

17. Qualquer que seja a relação jurídica em análise, vale destacar que o “bug do milênio” gerará, ao prejudicado, direito à indenização. Em nosso direito, vige o princípio segundo o qual todo aquele que causa lesão a outrem é obrigado a repará-la.

18. Até o início do século XX nosso sistema adotava o regime da responsabilidade subjetiva, ou seja, não bastava o dano, mas deveria também ter ficado caracterizada a atitude culposa do agente causador.

19. No início do século XX, nossa legislação teve forte influência de países europeus e dos EUA, adotando, pouco a pouco, a responsabilidade objetiva para diversas relações e situações.

20. Hoje em dia podemos citar como exemplo da responsabilidade objetiva: transportes em geral, consumo, relações com o Poder Público, infrações à ordem econômica etc.

21. Por outro lado, relevante acrescentar que a responsabilidade por danos causados e/ou por infração a normas é estabelecida em três níveis distintos, a saber: civil, administrativo e penal.

22. Qualquer atribuição de sanção ao agente causador do dano, em um dos níveis retro mencionados, não impede ou inibe a imposição de sanção para os demais âmbitos de atuação.

23. Dessa forma, caso um administrador de instituição financeira negligencie a adaptação da empresa ao “bug do milênio” poderá ele sofrer sanções civis, decorrentes de ação de acionistas ou de terceiros contratantes; poderá ele também sofrer sanção (administrativa) com imposição de penalidade pelo Banco Central do Brasil. Ademais, em tendo ficado caracterizada a má gestão, em tese poderia ele estar submetido a uma sanção penal.

24. Urge identificar em primeiro lugar qual seria o ato ilícito, contrário ao direito.

24.1. Em face do que foi exposto, cumpre à empresa ou agente econômico adaptar seus sistemas de informática ao denominado “bug do milênio”. Essa obrigação decorre da própria natureza da atividade e da necessidade de não causar danos a outrem.

24.2. Ora, se o agente econômico não promove a eficiente e completa adaptação do “hardware”/”software” ao “bug do milênio” está ele omitindo-se em providência que constitui sua obrigação.

Na realidade, poderemos ir mais longe. Como são notórios os problemas decorrentes do “bug do milênio”, o agente econômico estaria agindo com dolo, assumindo o risco do evento danoso.

25. Os danos não precisam ser repetidos, pois, nos exemplos dados no início do presente trabalho, bem ficou evidenciada a potencialidade de danos com o “bug do milênio”.

26. Em resumo, comprovado que a pessoa causou dano a outrem, agindo com culpa ou dolo (salvo nas hipóteses de responsabilidade objetiva), resta a sua obrigação de indenizar.

27. Por outro lado, nos casos em que se caracteriza a responsabilidade objetiva, a apuração da culpa e/ou do dolo é dispensada, bastando provar-se o ato danoso e as conseqüências. Essa apuração é aplicável a todas as relações que denominamos de “externas” ao agente econômico.

28. Com relação às relações internas, seja no âmbito societário, seja no âmbito trabalhista, a responsabilização é mais complexa.

29. Internamente, respondem por danos causados à empresa aqueles que tem o poder de decisão/gestão.

Dependendo da estrutura societária adotada, tal responsabilidade reclama a apuração de culpa do administrador.

30. Na estrutura das sociedades por ações, são inseridos na qualidade de administradores os diretores, membros do Conselho de Administração (responsabilidade colegiada) e também os membros do Conselho Fiscal (art.161, Lei 6.404/76 e alteração da Lei 9.457/97).

31. Constitui, inequivocamente, característica do “dever de diligência” (art. 153, LSA), a deliberação a respeito dos efeitos do “bug do milênio” sobre os negócios e atividades da Companhia.

32. A responsabilidade decorreria do artigo 158, inciso I e 165, da LSA.

33. No caso de instituições financeiras, além da aplicação do dispositivos da LSA, incidirá também o disposto na Lei 6.024/74, artigos 39 e 30.

Vale ressaltar a esse respeito, que o Banco Central do Brasil editou recentemente a Circular no. 2.803, de 4 de fevereiro de 1.998, determinando que as Instituições Financeiras e seus respectivos administradores emitissem declaração a respeito de sua adequação ao “bug do milênio”, juntamente com parecer do auditor.

Nesse mesmo sentido, a SUSEP emitiu a Resolução no. 3, de 23 de abril de 1.998.

34. Vê-se, pois, que, além da apuração do ilícito civil, os administradores estariam sujeitos a aplicação de sanção administrativa pela Comissão de Valores Mobiliários, Banco Central do Brasil, SUSEP e demais agências estatais fiscalizadoras de atividades específicas, acrescida das implicações penais.

35. No que se refere às empresas públicas, a responsabilidade pode ser apurada no âmbito administrativo (sindicância), civil e penal.

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